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Getty Images/iStockphoto/Jasmin Awad

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"Num casamento, o piloto automático pode durar anos". Guia para lidar com o divórcio

O que acontece antes de tomar a decisão de se separar. Como e quando contar aos filhos. Que apoio esperar dos amigos e familiares. E quando refazer a vida. Entrevista com a psicóloga Cláudia Morais.

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“Continuar a ser família depois do divórcio”. É este o título e a premissa do novo livro da psicóloga clínica e terapeuta familiar Cláudia Morais, com uma carreira de quase 20 anos. Ao longo de quase 300 páginas, fala sobre o processo do divórcio de uma forma desmistificada e humilde, com base na experiência em consultório que duas décadas de clínica já lhe emprestaram. Dúvidas, medo, tristeza e culpa — Cláudia Morais olha para o divórcio como uma perda e um terramoto. Os motivos que levam à separação, o surgimento da terceira pessoa, as relações abusivas, os filhos de casais separados, a difícil tarefa de encarar a família e como reencontrar o amor são alguns dos tópicos do livro, também eles explorados nesta conversa ao longo de 90 minutos.

Livro da editora Horizonte (16,98 euros)

Divórcio: antes de tomar a decisão

No livro, escreve que o divórcio é quase sempre uma experiência demasiado dura para ser vivida sem apoio. É um processo com mais consequências do que podemos inicialmente pensar?
Essa é uma questão que é mesmo importante desconstruir. A determinada altura no livro refiro-me ao facto de ser relativamente fácil — até pelos números do divórcio — olharmos para os casos de divórcio quase como episódios de uma telenovela. É fácil fazer juízos de valor, é fácil “adivinhar” aquilo que está por detrás. Depois, é fácil desvalorizarmos as emoções de quem passa por este tipo de situações. De facto, o divórcio é sempre, sempre, gerador de uma perda de grande magnitude, por isso é que esse turbilhão de emoções pode ser vivido durante a própria relação e, portanto, em alguns casos acontece que o divórcio é “só” a oficialização — o sofrimento já aconteceu maioritariamente ao longo da relação, na prática houve um divórcio emocional durante a relação.

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Isso é comum acontecer, haver esse “processo de divórcio” ainda numa relação?
Pode acontecer e pode acontecer sobretudo nos casos em que há uma desconexão emocional, o casal vai-se desconectando. Muitas vezes, os problemas são reconhecidos por um dos membros do casal que vai fazendo os seus apelos, de forma mais ou menos clara, e a determinada altura deixa de o fazer…

Desiste?
Exatamente, começa a desistir. Não é por nós desistirmos de lutar pela relação que deixamos de gostar da pessoa que está ao nosso lado. Às vezes, os membros do casal mantêm-se naquilo a que vou chamar de “paz podre”: não há discussões, os dois não estão realmente conectados. A pessoa que costumava fazer os apelos, se calhar sob a forma de discussões, deixa de o fazer e passa involuntariamente a mensagem errada de que já não há insatisfação —  a pessoa vai utilizar, não de forma intencional, o tempo daí para a frente para se ir desligando. Não é um processo intencional. A determinada altura, constata que já não há sentimentos românticos. Está pronta para a rutura.

Isso para surpresa do outro membro do casal?
Sem dúvida. Há muitas pessoas que me pedem ajuda precisamente porque foram confrontadas com um pedido de divórcio e não estão a conseguir lidar com o impacto da notícia. Dizem-me que há uns dois ou três anos, por exemplo, havia problemas sérios. Mais recentemente, por não haver conflitos tão acesos, tão abertos, pensavam que até estavam num período mais pacífico.

Isso pode ter a ver com as exigências pessoais de cada um?
De uma maneira geral, temos mais ou menos as mesmas necessidades. Mesmo quando alguém me diz que é muito exigente, ou que o outro é exigente, muitas vezes aquilo que acontece é que a forma como os apelos estão a ser feitos podem não ser emocionalmente os mais inteligentes. Mas nós precisamos todos mais ou menos das mesmas coisas. A base de tudo é a certeza de que a pessoa que está ao nosso lado se importa com aquilo que sentimos. Quando achamos que estamos a mostrar de forma clara o que sentimos e a outra pessoa não responde com afeto e atenção — responder com afeto não é concordar com tudo o que se diz ou se pede –, sentimo-nos sós na relação. Sentimo-nos desamparados. Não é porque sejamos mais exigentes do que o outro, é porque, de facto, estamos a prestar atenção às nossas necessidades. Alguns de nós crescem e amadurecem no sentido de serem capazes de valorizar as próprias necessidades. Outros de nós não tanto.

Porque é que escreve que o divórcio é uma questão de “saúde pública”?
Precisamente porque quando olhamos à nossa volta damo-nos conta dos números, damo-nos conta em particular do número de crianças que são filhos de pais separados, de pais divorciados, e damo-nos conta do desamparo da maior parte destas pessoas. Para a esmagadora maioria das pessoas estas decisões ainda são tomadas sem que haja apoio especializado — não estou a sugerir que todos precisem desse apoio, mas deveriam poder contar com ele, adultos e crianças. Num processo de divórcio, e por mais bem intencionados que os pais sejam, os níveis de tensão estão normalmente lá em cima e é praticamente impossível que os adultos — neste caso o pai e a mãe — consigam oferecer às crianças toda a atenção de que elas precisam. Quando tudo isto é vivido dentro do núcleo familiar, a probabilidade de haver alguém a precisar de ajuda sem estar a recebê-la é muito elevada. Podemos falar também dos membros da família alargada, do papel dos amigos e do papel da desinformação… A maior parte de nós nem sequer se questiona sobre a possibilidade de termos um papel na vida destas pessoas. Para mim, por exemplo, que converso com adultos que são filhos de pais separados, fica claro que qualquer um de nós pode ter esse papel e pela positiva. Às vezes, os pais não estão efetivamente no seu melhor, não estão capazes de devolver às crianças a segurança de que elas precisam, mas há outros adultos que o podem fazer. Às vezes, são os membros da família alargada, outras vezes são os amigos e até os professores.

Não é fácil avançar para um processo de divórcio. Há quem viva em piloto automático e saiba disso e há quem não saiba. É mais fácil ficar em piloto automático?
Nós precisamos do piloto automático para muita coisa na nossa vida. As pessoas que conduzem sabem que o piloto automático dá jeito. Mas quando este toma conta de nós deixa de dar jeito, porque também deixamos de saborear a vida. Voltando à condução: uma coisa é não precisarmos de pensar que vamos pôr a primeira e depois a segunda, outra é já não repararmos na viagem. E uma viagem pode ter muita coisa interessante e entusiasmante. Mesmo as pessoas que têm a noção de que estão a viver em piloto automático não têm verdadeiramente a noção do que estão a perder. Começam a dar-se conta dos danos do tal piloto quando, por um lado, há sinais claros de que a mente está sobrecarregada — quando a pessoa não consegue dormir ou quando há muitos esquecimentos — ou quando, por outro, são confrontadas pelo que considero serem perguntas relativamente simples, mas para as quais podem não ter resposta.

"Nós precisamos do piloto automático para muita coisa na nossa vida. As pessoas que conduzem sabem que o piloto automático dá jeito. Mas quando este toma conta de nós deixa de dar jeito porque também deixamos de saborear a vida. Voltando à condução: uma coisa é não precisarmos de pensar que vamos pôr a primeira e depois a segunda, outra é já não repararmos na viagem. E uma viagem pode ter muita coisa interessante e entusiasmante."

Por exemplo?
“O que é que quer?” É uma pergunta que considero ser relativamente simples. À partida todos sabemos dizer o que queremos — conseguimos identificar objetivos e sonhos. Para algumas destas pessoas são perguntas que podem ser complicadas.

Que mais exemplos de perguntas pode dar?
Muitas das perguntas têm a ver com a intencionalidade. Há outra que é relativamente simples: “Para quê?”. Às vezes coloco-a em sequência. Por exemplo: “Para que é que acumula tantos trabalhos?”. E a pessoa responde “Para pagar o colégio dos meus filhos.” Para quê? “Para que eles tenham mais hipóteses na vida.” Para quê? “Para que eles sejam mais felizes”. Se houvesse essa consciência, haveria também mais escolhas no dia a dia que promovessem essa intenção. É preciso é ir fazendo algumas pausas que nos ajudem a ter maior consciência da nossa realidade. O facto de pararmos e olharmos à nossa volta pode permitir que identifiquemos outros recursos que nos facilitem a vida. Isso não vai acontecer se continuarmos no piloto automático.

É verdade que o piloto automático pode durar anos?
Pode durar uma vida inteira. Podemos viver a nossa vida inteira sem nos questionarmos. Às vezes acontecem situações — e o divórcio pode ser um desses eventos marcantes — que, por mais dramáticas que sejam, funcionam como oportunidades para olharmos para a nossa vida de um ângulo diferente. Na prática todos os eventos emocionalmente significativos incluem essa possibilidade. Sempre que alguma coisa de marcante acontece, temos a possibilidade de olhar para a nossa vida porque tivemos de parar.

Pedir o divórcio equivale a proclamar o fim do “projeto familiar”?
Sem dúvida. De uma maneira geral, quando há uma relação duradoura, há um projeto — isto não tem a ver apenas com objetivos específicos, falo sobretudo de um propósito. Quando estamos numa relação que nos satisfaz, há uma ideia de rumo. Há qualquer coisa que queremos construir. Quando acontece um divórcio, esse rumo e os sonhos que ele inclui vão por água abaixo, tornam-se inviáveis. É por isso que também há um luto que deve ser feito. Luto esse que também tem de ser feito pela pessoa que toma a iniciativa.

Escreve que hoje nos divorciamos para “sermos mais felizes”…
Olhamos para as nossas relações amorosas com muito mais expectativas. É paradoxal: estamos, aparentemente, cada vez mais ligados do ponto de vista do digital, mas sentimos que as relações vão sendo mais superficiais e depositamos na pessoa que está ao nosso lado a maior parte das nossas fichas. Isso faz com que muitas vezes queiramos que ela seja algo que ninguém vai poder ser. Não é só uma questão de idealização, mas de contarmos com esta pessoa para tudo e estarmos à espera que seja inclusivamente capaz de mudar todas as suas limitações e imperfeições para poder ser à nossa medida. Quando assim é, é mais provável que, mesmo que não haja problemas sérios no sentido de irmos amadurecendo a decisão do divórcio, as pessoas deem por si a questionar a própria felicidade. “Será que é só isto?” Todas as relações vão ter problemas, como é evidente. Mas se tivermos esta consciência, é mais provável que consigamos ir trabalhando sobre os problemas da nossa relação e ir verificando se a pessoa que está ao nosso lado é, de facto, aquela que é capaz de nos oferecer o que precisamos, por oposição ao que nos apetece.

Aquilo que nos apetece, até considerando um estado de euforia, não é necessariamente aquilo que precisamos no sentido do sempre. Podemos sentir falta da adrenalina, da novidade, e isso é mais facilmente associado a uma nova relação. É a história das borboletas no estômago. Agora, podemos tentar trazer a novidade para as nossas relações. É mais fácil, e um caminho mais curto, questionarmos a relação que temos. A felicidade pode dar mais trabalho do que aquilo que tantas vezes julgamos. Podemos não ter a consciência de tudo o que a relação que temos nos está a oferecer — e isso tem a ver com o foco. Não tem nada a ver com contentarmo-nos com menos, tem a ver com a capacidade de olharmos para a realidade como ela é e de reconhecermos aquilo pelo qual podemos sentir-nos gratos.

Cláudia Morais trabalha como psicóloga clínica há 18 anos. JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mas às vezes não é difícil separarmos as águas? 
É. Mas é mais provável que façamos essa distinção se não estivermos no tal piloto automático. Quando estamos num modo acelerado, estamos no modo fazer: “Preciso de fazer alguma coisa”. Às vezes, a única coisa de que precisamos é de parar e olhar para o lado: “Qual é a minha realidade?”. Às vezes, parar é assustador. Ao pararmos vamos ter de reparar no que está realmente a acontecer.

No livro lê-se esta citação: “Vivemos num período em que somos tremendamente livres para amar; para escolher e para romper e, simultaneamente, é-nos cada vez mais difícil cumprir o sonho de viver um amor para a vida toda”. Ainda vale a pena viver um amor para a vida toda? O amor também é disciplina e compromisso?
Sem dúvida e sem dúvida. Quando digo que sem dúvida que vale a pena viver um amor para a vida toda… isso não é para todos. A maior parte de nós é isso que ambiciona. Para alguns de nós, não é isso que vai acontecer, mas é algo parecido. Talvez não vivamos um amor para a vida toda, mas talvez vivamos dois ou três amores muito significativos. Isso também tem a ver com o facto de vivermos cada vez mais tempo e de haver relações que se esgotam e que, ao mesmo tempo, nos abrem a possibilidade para viver outra relação significativa. Porque nós vamos crescendo e amadurecendo ao longo da vida. Pode acontecer que um determinado projeto se esgote e que aquelas duas pessoas cresçam de alguma maneira em sentidos separados e que ambos possam reconstruir a sua vida afetiva. Aquilo que toda a investigação mostra é que somos todos tão mais felizes na medida em que consigamos de facto construir relações significativas, no fundo, relações nas quais nos sintamos livres. Livres para sermos exatamente quem somos, livres para verbalizarmos aquilo que sentimos. Relações nas quais tenhamos a convicção de que a pessoa que está ao nosso lado é a pessoa que mais se importa com tudo isso. Relativamente à segunda parte da pergunta: as relações também dão trabalho.

"Aquilo que nos apetece, até considerando um estado de euforia, não é necessariamente aquilo que precisamos no sentido do sempre. Podemos sentir falta da adrenalina, da novidade, e isso é mais facilmente associado a uma nova relação. É a história das borboletas no estômago. É mais fácil, e um caminho mais curto, questionarmos a relação que temos."

Também escreve que a ideia de que a maior parte das separações acontece na sequência de uma traição é um mito.
Há um bocadinho esta ideia: sempre que alguém se separa é porque há uma terceira pessoa envolvida. Não é de todo o caso. Mesmo quando há uma terceira pessoa, na maior parte das vezes os motivos que levam a uma traição são exatamente os que podem levar a uma separação: desconexão emocional, afastamento físico…

Somos preconceituosos em torno de uma traição ao invés de tentarmos ser mais compreensivos? A sociedade vilipendiou a pessoa que trai?
Por um lado, sim. Por outro, também somos preconceituosos em relação a quem escolhe ficar numa relação. É mesmo muito fácil apontarmos o dedo quando estamos de fora. Trabalho com muitas pessoas que traíram e que até essa experiência juravam a pés juntos que não seriam capazes de o fazer. Não estou a querer justificar nada, mas uma coisa é aquilo que dizemos antes de vivermos o que quer que seja, outra é a nossa experiência de vida. Antes de fazermos julgamentos, importa que assumamos uma postura mais humilde. Uma infidelidade é sempre um terramoto e até pode ser traumática para quem é traído, mas os nossos juízos de valor não vão acrescentar nada de positivo. Só acrescentam vergonha, pressão e culpa.

É possível apaixonarmo-nos por uma terceira pessoa estando já numa relação?
Claro que sim. Em muitos casos de infidelidade aquilo que as pessoas me dizem é que de facto se apaixonaram. Se depois esta paixão evolui, isso já é uma coisa completamente diferente. Agora, em muitos casos a pessoa reconhece esse estado de paixão. Isso tem a ver com aquilo que vai acontecendo dentro da relação, ou seja, um apagamento — não me refiro apenas à atenção que a outra não nos dá, mas também ao investimento que deixamos de fazer em relação às nossas necessidades. Uma pessoa pode ser apanhada desprevenida pela existência de sentimentos românticos por uma terceira pessoa.

Como é que uma traição afeta os dois membros do casal? Que tipo de sequelas ficam?
É fácil de perceber como é que a pessoa que é traída é afetada. Há alguns estudos que nos mostram aquilo que muda em nós com a existência de uma relação conjugal estável, há autores que falam numa espécie de “fusão molecular” porque o nosso bem-estar físico está literalmente dependente do bem-estar do outro. Quando estamos numa relação segura, a nossa felicidade está associada à felicidade daquela pessoa. Quando é ela que nos puxa o tapete, que mostra um comportamento que era completamente inimaginável, há um grande terramoto. Às tantas não é só a questão “quem é esta pessoa?”, é também “em quem é que posso confiar?”. Na minha experiência, a maioria das pessoas que trai e pede ajuda está arrependida, tem sentimentos de culpa e quer reconstruir a relação. Quando alguém se desvia daquilo em que acredita, é evidente que há sentimentos de profunda tristeza e culpa, que são naturais e adaptativos — só se eu me sentir culpada, no sentido de empatizar com a dor do outro, é que vou conseguir mostrar a essa pessoa que me importo, ainda que o meu comportamento recente mostre exatamente o contrário.

Como e quando contar aos filhos

Tanto para as crianças como para os pais, o divórcio pode ser equivalente a um trauma?
É importante distinguir a perda do trauma. Perda há sempre, é inevitável, mesmo que estejamos a falar de uma família caótica em que, por exemplo, os filhos desejem que os pais se separem tal não é a aflição. Mesmo aí há perda, quanto mais não seja porque há a perda dos sonhos que ficam por concretizar. Agora, não lidamos com a perda sempre de forma depressiva ou traumática. Às vezes sentimo-nos tristes durante muito tempo, mas não resulta dali qualquer trauma. Além da perda, há muita tristeza, vergonha e sentimentos de culpa. Isto tanto em adultos como nas crianças.

Olhando em particular para as crianças, o que acontece, e que se calhar a maior parte de nós não imagina, é como uma criança ou um adolescente poder sentir-se culpado de algo que não escolheu. É muito mais frequente do que possamos imaginar. Pode acontecer numa fase mais inicial, ou seja, na infância, porque as crianças dão-se conta que os pais discutem e chamam a si essa responsabilidade — quando, por exemplo, os pais discutem porque não têm dinheiro para pagar o colégio isso pode levar a criança a pensar que é o foco do problema. Na fase da adolescência também há, por vezes, sentimentos de culpa a propósito daquilo que o adolescente não está a conseguir fazer por cada um dos progenitores. Isto tanto pode acontecer em situações em que há chantagem emocional, como pode acontecer nas situações em que os adultos estão de tal forma fragilizados que, no fundo, pedem ajuda aos filhos para os ampararem, para cuidarem deles. É sempre um fardo para um adolescente. Trabalho com adultos que vivem com as sequelas desse período.

[O trauma] Acontece mais provavelmente quando em causa estão relações de décadas — e há cada vez mais separações entre casais que estão juntos há 30 ou 40 anos –, nas quais a pessoa com quem estamos passa a fazer parte da nossa identidade. Ao fim de tanto tempo é praticamente indissociável, é como se fosse um braço ou uma perna. Muitas vezes o trauma resulta de ainda existir uma ligação romântica — isto da parte de quem é deixado. Há aqui uma outra variável que tem a ver com aquilo que em Psicologia se chamam os padrões de vinculação. Alguns de nós são mais ansiosos do que outros e essa ansiedade, esse padrão de vinculação mais ansioso, pode efetivamente dificultar o tal processo de dissociação desta identidade. Há pessoas que descompensam, que precisam até de um acompanhamento que inclui internamento. Há casos destes.

"Olhando em particular para as crianças, o que acontece, e que se calhar a maior parte de nós não imagina, é como uma criança ou um adolescente pode sentir-se culpado de algo que não escolheu. É muito mais frequente do que possamos imaginar."

É sempre melhor contar aos filhos que os pais se vão divorciar?
É importante normalizar: esta é a conversa que ninguém quer ter. Tudo na vida é mais fácil quando reconhecemos esta humanidade comum: não é mais difícil para mim, é difícil para todos. É uma conversa muito difícil, porque não se trata só de anunciar uma decisão, é o confrontar a reação dos filhos, que pode ser mais ou menos emotiva. Na esmagadora maioria dos casos, pais e mães tentam adiar ao máximo esta conversa. Adiam também porque querem preparar-se, querem oferecer aos filhos a segurança possível. Nesta ânsia de oferecerem todas as respostas, acabam por adiar a conversa mais do que seria desejável. O que a minha experiência me mostra é que quanto mais cedo, melhor.

Porquê?
Porque o segredo é absolutamente tóxico. Infelizmente, conheço vários casos em que as crianças tiveram de lidar com esta notícia sozinhas, sem que houvesse adultos que lhes pudessem devolver a segurança, que lhes pudessem dizer que isto não tem nada a ver com elas, que não é culpa delas…

Porque se aperceberam disto sozinhas?
Sim. Aperceberam-se sozinhas: ou ouviram alguma conversa entre o pai e a mãe, ou ouviram várias pequenas conversas. Há crianças que, ao contrário do que os pais pensam, não estão a dormir e passam até a ter mais dificuldades em adormecer a partir do momento em que percebem que o pai e a mãe têm conversas sérias quando elas se vão deitar. Há crianças que ouvem um comentário entre a avó e mais não sei quem — porque os adultos conversam entre si quando a decisão é oficial. A partir do momento em que a informação se espalha, pode acontecer que as crianças acedam a ela e tenham de a gerir sozinhas.

Ocultar a realidade pode gerar uma quebra de confiança entre pai e filho?
Em primeiro lugar, ocultar a realidade faz com que a criança tenha de lidar com isso sozinha. Este assunto é avassalador para qualquer adulto, quanto mais para uma criança. É evidente que quando o pai e a mãe estão a gerir isto tudo sem contar à criança, ela não sabe até que ponto pode confiar naqueles adultos — porque eles estão ali a “tramar” alguma coisa e não estão a conseguir ser claros e honestos. Não estão a partilhar a informação que devolva à criança a segurança de que precisa.

A psicóloga é também autora do livro "Os 25 hábitos dos casais felizes". JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mas como contar?
Acho importante desconstruir a ideia de que o pai e a mãe tenham de ser super-homens ou super-mulheres. Os adultos têm muito medo de desmoronar à frente das crianças: “Nós somos os cuidadores, não vamos chorar, não vão ser as crianças a confortar-nos”. É importante distinguir duas coisas: uma é o pai ou a mãe chorarem, outra é o pai ou a mãe pedirem colo aos filhos. O pai e a mãe têm todo o direito de manifestar a sua tristeza, o que é muito diferente de atribuir culpas ao outro progenitor. Quando o pai ou a mãe mostram as suas emoções de forma clara, de forma autêntica, estão também no fundo a dizer aos filhos que eles estão autorizados a fazer o mesmo. Pelo contrário, quando reprimimos as nossas emoções, involuntariamente podemos estar a ensinar os nossos filhos a fazerem o mesmo, a serem fortes. Vão tentar ser tão fortes quanto possível para que os pais não tenham ainda mais essa preocupação.

O que são “crianças parentificadas”, expressão que utiliza no livro?
São crianças que se sentem obrigadas a cuidar dos pais ou a assegurar tarefas que habitualmente são desempenhadas pelos adultos. Crianças que, por exemplo, sejam expostas à fragilidade dos adultos e sintam necessidade de tomar conta deles. Em alguns casos, há efetivamente pressão nesse sentido, alguma chantagem emocional — “Fica comigo”. Noutras vezes, há um processo de vitimização da parte da pessoa que é deixada e, na incapacidade de cuidar emocionalmente das crianças, mostra-se tão fragilizada que os mais novos sentem necessidade de não dar trabalho na escola ou de não dar trabalho em casa para, no fundo, não criar [mais] problemas. Pode acontecer a criança ser forçada a tomar decisões que não lhe competem decidir. Isto também inclui as questões relacionadas com a guarda dos filhos: é aos pais que compete tomar aquela decisão, no limite com a ajuda do tribunal.

Uma “criança parentificada” vai ser que tipo de adulto?
Pode tornar-se num adulto habituado a chamar a si responsabilidades que não sejam suas. Isto tanto é válido para as relações amorosas — podemos ir ao ponto da codependência –, como para as profissionais. São de facto adultos que estão pouco habituados a definir limites, neste caso, limites que nos permitem ter relações saudáveis seja em que contexto for.

"Ocultar a realidade faz com que a criança tenha de lidar com isso sozinha. Este assunto é avassalador para qualquer adulto, quanto mais para uma criança. É evidente que quando o pai e a mãe estão a gerir isto tudo sem contar à criança, ela não sabe até que ponto pode confiar naqueles adultos -- porque eles estão ali a "tramar" alguma coisa e não estão a conseguir ser claros e honestos. Não estão a partilhar a informação que devolva à criança a segurança de que precisa."

Falou de guarda partilhada e é difícil não falar em alienação parental… Continua a ser um problema?
Continua a ser um problema. Quando falamos de alienação parental, falamos quase sempre da dificuldade de um adulto, normalmente a mãe, em dissociar o papel conjugal do papel parental. O que acontece é que a dor daquela pessoa toma conta dela ao ponto de ser incapaz de discernir sobre o interesse das crianças, que vão ser literalmente utilizadas com o objetivo de castigar o outro progenitor. Algumas vezes, o adulto pode estar convencido de que a criança fica melhor consigo, o que não significa que isso corresponda à realidade. Na verdade, na medida em que haja uma relação anterior ao divórcio, quer com o pai quer com a mãe, a criança vai sempre precisar do contacto regular com um e com o outro. Isto é válido para qualquer pai ou mãe: a ideia de se passar a estar de forma intermitente com os filhos é aterradora. Não estou a dizer que a guarda partilhada seja o melhor para todas as crianças, mas sim para a maioria das crianças. Mas o que importa é que consigamos olhar caso a caso, criança a criança.

Num processo de divórcio, é regra de ouro não falar mal dos progenitores?
Sem dúvida. Refiro-me à importância de dar atenção ao impacto que os nossos comentários possam ter na vida daquelas crianças. É evidente que os adultos erram — de uma maneira geral, num processo de divórcio há mesmo muitos erros que são cometidos –, mas isso não significa que sejam os piores pais do mundo. Quando um pai ou uma mãe dá o seu melhor, está a oferecer aos filhos a possibilidade de manterem o que é essencial, a inocência e o vínculo ao outro progenitor.

Que apoio esperar dos amigos e familiares

Anunciar um divórcio implica sempre estar sujeito a julgamento de terceiros…
É particularmente frequente que os pedidos de ajuda em clínica tragam também essa motivação: “Como é que vou enfrentar os meus pais? Como é que vou enfrentar a minha família?”. É sempre infinitamente mais difícil enfrentar o que quer que seja quando nos sentimos desamparados. Os juízos de valor são tão mais importantes na medida em que venham das pessoas de quem mais dependemos do ponto de vista emocional. Às vezes falamos da família mais próxima, mas também podemos estar a falar dos amigos — pessoas que, no fundo, constituem a nossa rede de suporte.

Trabalho com muitas mulheres que estão numa relação abusiva e que se sentem profundamente julgadas a propósito da mera equação de um divórcio. Estando de fora vamos fazendo juízos de valor, temos a nossa própria opinião independentemente daquilo que a outra pessoa nos diz. É normal e saudável. O que deixa de ser saudável é quando nos agarramos com unhas e dentes à nossa opinião, ao nosso olhar sobre aquela relação, sobre aquela família, e deixamos de escutar o que a pessoa nos está a dizer. Há situações em que estes juízos de valor são mais impactantes. A nós todos compete-nos amparar as pessoas de quem gostamos e isso passa por tentarmos perceber como é que aquela pessoa se está a sentir. Não estamos cá para decidir nada, não temos esse direito. Não há ninguém que queira divorciar-se. Seguramente, quando há filhos ninguém tem vontade de o fazer. Quando alguém começa a equacionar essa possibilidade é porque algo não está bem. Ninguém quer verdadeiramente passar por esse processo. Se alguém de quem gostamos nos fala sobre esta possibilidade, é importante que escutemos.

É um bom exercício de amizade ouvirmos a outra pessoa sem tentar incutir os nossos julgamentos na conversa?
Diria que isso é para tudo na vida. Quando colocamos perguntas é mais provável que conheçamos a realidade da outra pessoa. Se não colocarmos perguntas e nos limitarmos a fazer os tais juízos de valor, no fundo a analisar, arriscamo-nos a estar apenas a fazer isso, uma análise sem conhecermos a realidade daquela pessoa.

"É particularmente frequente que os pedidos de ajuda em clínica tragam também essa motivação: "Como é que vou enfrentar os meus pais? Como é que vou enfrentar a minha família?". É sempre infinitamente mais difícil enfrentar o quer que seja quando nos sentimos desamparados. Os juízos de valor são tão mais importantes na medida em que venham das pessoas de quem mais dependemos do ponto de vista emocional."

Num casal, o mais comum é sempre haver um dos membros a pedir o divórcio. Há estigma nessa decisão. A sociedade olha de uma forma mais preconceituosa para quem pede o divórcio?
Sem dúvida. É importante lembrar que a sociedade somos todos nós, inclusive a pessoa que toma a iniciativa de se divorciar e que diz a si mesma coisas horríveis. A compaixão começa em nós. Imaginemos que daqui a 20 anos o nosso filho anuncia que se vai divorciar. Imaginamo-nos a dizer ao nosso filho o que dizemos a nós próprios nas mesmas circunstâncias? A dizer :”Tu é que és o culpado, tu é que estás a impedir os teus filhos de ter uma família tradicional”, etc? É muito importante que reparemos nas coisas que dizemos a nós mesmos. Há juízos de valor que são muito duros porque, como dizia há pouco, ninguém deseja divorciar-se. Mas também ninguém deseja crescer numa família em que o pai e a mãe não estejam felizes.

Quando refazer a vida

Quando é que estamos realmente prontos para voltar a ter uma nova relação?
Depende. O divórcio emocional pode acontecer ao longo da própria relação e, para algumas pessoas, essa nova paixão surge ainda antes do divórcio. E acaba por funcionar como um acelerador. Outras vezes, a pessoa sai da relação, até já fez uma parte significativa do luto, mas diz a si mesma que agora quer estar sossegada e, de repente, é apanhada na curva. Outra vezes, a pessoa não está propriamente a fazer um luto, não está com disponibilidade para prestar atenção aos sentimentos e vai saltar rapidamente de relação em relação — isto acontece mais frequentemente com os homens do que com as mulheres, e também está relacionado com a forma como lidamos com a própria solidão. De resto, as mulheres normalmente têm uma rede de suporte mais sólida, não necessariamente mais relações, mas têm mais frequentemente relações mais significativas que lhes possam dar a tal sensação de amparo.

"Reconhecer que há uma pessoa é uma coisa, apresentá-la é outra. Obrigar a criança a conviver durante muito tempo com aquela pessoa é outro campeonato."

Como e quando é que se deve introduzir uma nova pessoa na vida das crianças?
O segredo é tóxico, é sempre importante lembrarmo-nos disso. Agora, uma coisa é sermos honestos com a criança e procurarmos introduzir uma pessoa no sentido de reconhecermos a sua existência — quando estamos apaixonados passamos algum tempo a pensar em quem gostamos, sendo que as crianças, que são particularmente sensíveis aos nossos estados emocionais e aos nossos comportamentos, dão-se conta com relativa facilidade de que há novidades. É importante que prestemos atenção. Se houver o mínimo risco de as crianças saberem alguma coisa, mais vale trazer a honestidade — e honestidade não é necessariamente detalhe. Reconhecer que há uma pessoa é uma coisa, apresentá-la é outra. Obrigar a criança a conviver durante muito tempo com aquela pessoa é outro campeonato. Esse capítulo pode e deve esperar, para que a pessoa possa amadurecer os seus sentimentos e não expor a criança a múltiplas ruturas. Por outro lado, as crianças podem ter, em função das suas inseguranças e medos, muita relutância em ligar-se inicialmente àquela pessoa e isso é tão mais provável na medida em que sejam forçadas a passar muito tempo com aquele adulto, sobretudo se esse tempo for roubado ao tempo que têm em exclusivo com o progenitor.

Por último, para haver um divórcio nem sempre é preciso haver casamento…
Sim, sim. De resto, e até a propósito do número decrescente de casamentos, é cada vez mais comum ouvir casais que não são oficialmente casados referirem-se ao seu casamento, à sua mulher, ao seu marido. Uso “divórcio” mais no sentido de remeter para uma relação significativa. O divórcio acaba por ser uma expressão impactante. A palavra separação é mais facilmente associada a relações não tão significativas. Agora, o processo é exatamente o mesmo. Todo o impacto emocional de que falámos aqui hoje é exatamente o mesmo.

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