Quando ao final da tarde deste sábado Marcelo Rebelo de Sousa chegava a Castanheira de Pera, cumpria um ritual que foi repetindo algumas vezes durante este ano que passou: regressar ao local, aos vários locais devastados pelos fogos de 2017. Há um ano, o Presidente da República foi, porventura, o político que mais rapidamente percebeu a dimensão do choque em que o país havia mergulhado e fez desta tragédia, que começou antes do verão e que voltou a repetir-se às portas do outono, uma das grandes causas — a maior? — do seu mandato.
Se, num primeiro momento, quando se contavam já 19 mortos, também ele entrou no turbilhão das declarações pouco fundamentadas a que se assistiu às primeiras horas dessa madrugada (“Fez-se o máximo que se podia ter feito”), depressa tomou o pulso aos acontecimentos e acabou a fazer, na sequência dos fogos de outubro, o discurso político mais duro desta presidência. Pedrogão Grande começou a arder há exatamente um ano. “Parece um tempo imenso ao ritmo a que se vive hoje, mas é ainda curto para o luto dos que não esquecem a tragédia”, diz Marcelo ao Observador.
É também tempo suficiente para olhar para a frente, falar da vida e, sobretudo, reconstruí-la”.
Aquilo que parece uma mensagem de esperança é, ao mesmo tempo, um caderno de encargos para este governo e para o próximo que vier. Até 2023, o Presidente da República quer que se resolva de vez o problema das desigualdades nos “portugais desconhecidos”, aqueles que estão mais longe das prioridades da comunicação social, da economia, da sociedade e da política. É preciso tempo, reconhece Marcelo, mas esse tempo é limitado e só dura até ao final da próxima legislatura. “Se formos capazes, Portugal será diferente, se não, perdemos uma oportunidade histórica e falhámos como país”, diz aos jornalistas já em Castanheira de Pera onde arranca esta visita que vai fazer durante todo o fim-de-semana às zonas mais afetadas pelos fogos.
Dias antes, o Observador tinha desafiado o Presidente da República a recordar algumas das imagens mais fortes desses meses, captadas pelo olhar do jornalista João Porfírio. Na véspera de partir para Pedrogão Grande, Marcelo já não as tem à frente, mas fala delas como se estivesse a ver tudo outra vez. Há comentários meramente descritivos e depois há outros onde mede cuidadosamente as palavras que escolhe. Nada é improviso, há uma mensagem que o Presidente quer passar: a de que há um Portugal “metropolitano”que, durante anos, votou ao esquecimento um outro Portugal.
As fotografias, escolhidas pelo Observador, são do registo de vários meses de reportagem, com diferentes equipas a percorrer as estradas e as terras por onde passou o fogo em 2017. As legendas são feitas pelo Presidente que acredita que o país ganhou “uma consciência aguda” depois da tragédia, e que parece ainda trazer as imagens desse momento bem frescas na memória.
A primeira imagem da estrada da morte
Marcelo: “Uma estrada que atravessei várias vezes, antes de deixar de ser da morte para passar a ser da vida”
Ainda não eram 7 da manhã quando os repórteres do Observador chegavam à EN236-1. Não há ainda mais jornalistas no local. Só militares da GNR e as equipas da Polícia Judiciária que se preparavam para selar a estrada que ficou conhecida como a estrada da morte. Esta imagem é o registo desse momento, quando as autoridades ainda recolhiam provas, entravam dentro dos veículos carbonizados para verificar se havia corpos lá dentro, colocavam pequenas placas amarelas junto aos carros para sinalizar que encontraram vítimas mortais. Houve mais vítimas, 22, que morreram enquanto tentavam fugir. Nestas primeiras horas da manhã, há silêncio e fumo tóxico no ar. Cheira a madeira queimada. E a chumbo, e a ferro e a plástico. Um militar da GNR autoriza o trabalho do jornalista João Porfírio: “pode fotografar à vontade, desde que não nos mostre a nós”. E já a chorar, regressa ao trabalho que estava a fazer.
Deixar a casa de madrugada
Marcelo: “Em plenos dias da tragédia”
São 4 da manhã da madrugada de 17 para 18 de junho. Arde desde as primeiras horas da noite. Pobrais é a aldeia mesmo ao lado da EN236-1 e depressa fica cercada pelas chamas. A Proteção Civil bate à porta de cada um dos moradores e grita-lhes que têm de sair. Não há tempo para levar nada, é seguir pelo caminho indicado em direção ao grupo de bombeiros e de GNR que os aguardam. É isso que faz o homem na fotografia, foge de casa enquanto as chamas ardem ao fundo. Conseguiu salvar-se a ele. E ao cão.
Manuel da Costa não sabe do filho
Marcelo: “Uma imagem que muitos no Portugal metropolitano não entendem — onde há morte, qualquer que seja, há razão de viver atingida”
No momento em que esta imagem é captada, Manuel da Costa sente que perdeu quase tudo. Tinha sete cabeças de gado, restam três, duas ovelhas e uma cabra. Mostra ao Observador o cadáver de uma ovelha, que parece intocada pelas chamas, enquanto desabafa a preocupação pelo filho de 21 anos que não vê desde meio da tarde do dia anterior. Fugiu de carro e talvez esteja longe, com medo de regressar a casa por causa das chamas. “Esperemos que ele ande bem, se Deus quiser, ele está bem.” Havia pouco mais de 30 habitantes na aldeia onde vive Manuel, 11 morreram nos incêndios, e calhou ser ele a encontrar dez dos corpos. Faltou-lhe um, o do próprio filho.
Em fila, à espera do abraço do Presidente
Marcelo: “O olhar da quase impotência”
Já é outubro, o Presidente da República está na zona de Tondela. Não anunciou a visita na agenda oficial divulgada aos jornalistas. O plano é percorrer as zonas afetadas sem a comunicação social atrás. Mas a imprensa não abandona esta zona por estes dias e consegue testemunhar a chegada de Marcelo a Santa Comba de Vouzela. Aqui impressiona o silêncio. E a fila de habitantes que já está à espera do Presidente. Marcelo abraça cada um à vez, e à vez vão chorando. Depois vem outro, e depois outro, sempre à vez, como se houvesse um protocolo. Nesta imagem vê-se o habitante mais novo da aldeia. O único que não verte uma lágrima. “Obrigado por ter vindo”, dizem uns. “Como é que isto voltou a acontecer?”, perguntam outros.
No horizonte, vê-se o pouco que sobra da passagem do fogo
Marcelo: “O retrato da desolação”
A zona industrial de Oliveira de Frades faz lembrar uma zona de guerra. Marcelo fala com empresários da região, apura os estragos e quer ver como estão as coisas. Esta fotografia foi tirada no que restava da Toscca, uma empresa de construção de madeira e de mobiliário de jardim. “Não tivemos bombeiros, é certo, mas se tivéssemos, acho que isto teria ardido na mesma”, diz o empresário Pedro Pinhão. “E foi tudo?” pergunta Marcelo. “Tudo, tudo. Não ficámos com uma folha de papel”. Sem esperar que os seguranças vão à frente, o Presidente avança pelos destroços de uma das fábricas. Os homens da segurança estão nervosos, porque o terreno “não é seguro”. Marcelo ignora e é guiado por um dos empregados pelo esqueleto da fábrica. Entra numa das salas — talvez tivesse sido um escritório — e fixa o olhar no horizonte. Fica assim durante mais de um minuto.
Manuel não tem palavras
Marcelo: “O abraço ao agricultor que não queria abandonar a sua terra”
Na aldeia de Alambique, Marcelo é levado a um quintal para ver as oliveiras queimadas. Mas o que impressiona o Presidente nessa altura, é um pequeno carro parado. Ao volante, está Manuel Nascimento, de 82 anos. Ato imediato, Marcelo abre a porta do pendura, senta-se e abraça o homem que, se já chorava sozinho, está agora desfeito em lágrimas. “Não tenho palavras senhor professor.” Perdeu animais e várias máquinas agrícolas. “É uma vida a trabalhar para nada.” Meses mais tarde, uma equipa do Observador regressou ao local, voltou a encontrar Manuel e escreveu que continuava a chorar, como havia feito no ombro de Marcelo. “Faz-me falta alguém que me ouça”.
Morreu Manuel Nascimento, o homem que chorou no ombro de Marcelo