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Na Idade Média, a palavra “amor” não era apenas utilizada no sentido de “paixão”, implicava muitos outros significados e sentimentos além daqueles que hoje lhe associamos. Era paixão, sim, mas também estabilidade, cumplicidade, amizade, companheirismo e tolerância. Podia ser um sentimento partilhado entre irmãos, pais, mães, amigos e amantes. Na pena dos cronistas, o amor entre casais podia ser cego, como o de D. Fernando por D. Leonor Teles, mas também racional e ponderado, como o de D. João I por D. Filipa de Lencastre. O primeiro era capaz de levar o reino à ruína, o segundo de gerar coisas extraordinárias. Para a Igreja e também para a legislação da época, o amor tinha de ter regras e penas duras para quem não as cumprisse.
É por esta razão que o amor na Idade Média é “um tema escorregadio, difícil”, mas não o suficiente para fazer a investigadora Ana Rodrigues Oliveira desistir dele. A autora de O Amor em Portugal na Idade Média falou com o Observador sobre como se amava nessa época e como os amantes não olhavam a meios e medidas para levar a sua avante, mesmo que isso implicasse perder a própria vida. “Essa é talvez a grande diferença que encontro em relação à atualidade”, admitiu a especialista em História Cultural e das Mentalidades. “Hoje tudo é livre — o amor é livre, as relações são livres, as pessoas praticamente não arriscam. Na altura, arriscavam, inclusivamente a própria vida.”
Geralmente associamos a palavra “amor” ao “amor-paixão”, embora possa também significar outras coisas, como o amor entre irmãos, entre familiares. Quando voltamos atrás no tempo, as coisas complicam-se um pouco. Na Idade Média, tinha muitos outros significados.
Tinha muitos outros significados e muitas limitações. O amor na Idade Média também podia ser relativo ao amor conjugal mas, normalmente, implicava outros significados ou outros sentimentos além daqueles que hoje lhe conotamos. Implicava estabilidade, cumplicidade, amizade, companheirismo, tolerância. Hoje também engloba essas coisas todas, só que, quando falamos em amor, remetemos logo para um amor mais de paixão. Na altura, a mesma palavra tinha muitas outras componentes. Podia ser a paixão, sim, mas também podia ter todos os outros significados. Temos de ter em atenção as palavras ou o significado das palavras, que não são os mesmos ao longo dos séculos. A grande preocupação do historiador é não entrar nesse anacronismo de conotar logo o amor com o amor sensual, como o amor-paixão.
Até porque, mesmo no caso dos casais, o amor conjugal não era o único que havia.
Claro. E se calhar o amor conjugal era o que havia menos porque, como se sabe, nesta altura, pelo menos ao nível da realeza e da nobreza, os casamentos eram alianças que se faziam para criar, preservar e manter uma linhagem. Muitas vezes as pessoas nem se conheciam. O casamento surgia porque os pais assim o queriam e não porque os intervenientes gostavam ou não [da pessoa com quem iam casar]. O amor poderia surgir depois. Outras vezes [isso] não [acontecia]. Por isso é que existiam tantos amores extraconjugais, tanto adultério, e se corriam tantos riscos, porque aquela pessoa com quem se tinha sido obrigado a casar não era a pessoa de quem se gostava.
E esses amores extraconjugais eram perfeitamente normais naquela altura.
Eram e se, por um lado, o adultério era fortemente penalizado, ou seja, se os reis faziam legislação que o penalizava e muito, por outro, eles próprios tinham as suas mancebas, eles próprios cometiam esse adultério. É o que se costuma dizer: “Faz o que eu digo, não faças o que eu faço”. Tal como o incesto — eles também o cometiam. Ou em relação à bigamia. Tivemos um rei bígamo [D. Afonso III], e francamente bígamo, que inclusivamente foi excomungado pela Santa Sé [por se ter casado uma segunda vez, com Beatriz, filha do rei Afonso X de Castela]. E foi-o até à morte da primeira mulher [a condessa Matilde de Boulogne-sur-Mer]. É um paradoxo — a legislação era tão punitiva e quem a fazia também cometia essas transgressões. Praticamente todos os nossos reis da Idade Média tiveram amantes, à exceção de D. Afonso IV, do qual não se conhece, e de D. Sancho II. De resto, todos foram férteis em adultério.
Mas como é que isso era possível? O adultério não deixava de ser moralmente condenável.
Temos de fazer uma diferenciação entre adultério e mancebas. Entendia-se por adultério quando, por exemplo, o homem saía de casa, largava a mulher e ia viver com outra. Ou vice-versa. Isso era adultério. No caso dos reis, não pode ser encarado como adultério, mas sim como ter mancebas. Era como se chamava — ter mancebas ou ter uma barregã. Eles nunca largavam formalmente a sua rainha, nunca saíam de casa, nunca a abandonavam. Iam tendo as suas mancebas. Há aqui uma nuance, que é mais uma vez uma nuance das palavras: uma coisa era o adultério, outra coisa era ter barregãs ou mancebas. Na prática, acabavam sempre por ter outras mulheres, mas uma coisa era deixar a mulher e ir viver com outra; outra coisa era ter a sua mulher e ter os outros devaneios. Na mentalidade da época, claro.
No caso dos reis, as mancebas e os seus filhos eram até deixados numa situação bastante privilegiada.
As mancebas dos reis ficavam muito bem na vida. Elas e os filhos ilegítimos, que podiam ser legitimados. De uma maneira geral, havia essa preocupação. O nosso D. Dinis, por exemplo, que teve várias mancebas e vários filhos ilegítimos, deixou-os a todos muito bem. Por alguma razão elas eram mancebas do rei. Se calhar, isso também era fomentado pelas famílias dessas mulheres, porque sabiam que isso lhes traria benefícios, privilégios. Ser manceba de um rei não era propriamente ser manceba de um zé ninguém [risos]. À partida, ficariam sempre bem na vida. Elas e os filhos que dele tivessem.
Na prática, como é que era a vida destas mulheres? Apesar de tudo, eram “a outra”.
Mas às vezes uma “outra” que tinha mais privilégios do que a legítima. E talvez não houvesse muito essa mentalidade da “outra”, porque a mancebia era muito vulgar. As rainhas, cujos maridos tinham mancebas, muitas vezes tinham tido tido conhecimento das mancebas dos pais. Hoje em dia não encaramos isso tão bem, mas era uma coisa muito, muito vulgar na época. [No livro,] até falo num caso que, embora não se tratando de um português, aconteceu com uma rainha portuguesa, que foi o de Afonso XI de Castela. Este rei era casado com D. Maria, filha do nosso Afonso IV, e pura e simplesmente pô-la de lado e passou a viver com a sua manceba, Leonor Nunes de Gusmão, com a qual teve dez filhos. Essa foi praticamente elevada ao estatuto de rainha. Segundo diz o cronista, ele tudo fazia, tudo despachava em casa dela. Este é talvez dos raros casos da Idade Média em que a rainha é posta à margem.
Mas isso não era visto com bons olhos.
Não, claro que não. Aliás, os cronistas, uma das fontes básicas para procurar o amor, acham muito bem as mancebas, falam delas de uma forma normal, mas quando adquirem o estatuto de rainha, já não são bem encaradas, bem vistas ou bem escritas. Portanto, manceba sim, mas só até determinado patamar. Quando era ultrapassado, as coisas já não eram bem vistas. Isto no caso da realeza, claro.
A culpa recaía sempre sobre as mulheres?
Normalmente. Temos de ver a mentalidade medieval em relação à mulher, muito fomentada pela Igreja. Não nos podemos esquecer do grande peso que a Igreja tinha. Era uma sociedade muito religiosa, muito temente a Deus. A mulher era normalmente encarada numa perspetiva dual — ou era Eva ou era a Virgem, ou era pecadora ou era a santa. E as mulheres eram muitas vezes conotadas com o vício, o pecado, a luxúria, isso tudo. Havia uma mentalidade muito pecaminosa associada à mulher.
Que só era conotada com a Virgem se cumprisse o seu papel?
Claro. Se soubesse estar no seu lugar, no seu lugar de mulher medieval — casta, pura, submissa. Temos mulheres que foram levadas aos píncaros pelos nossos cronistas [precisamente porque correspondiam a essa imagem]. D. Isabel, D. Filipa de Lencastre — foram mulheres castas, submissas, que nunca interferiram na vida dos seus maridos e que viveram para eles. Esse é o lado positivo da mulher [na Idade Média]. Depois é engraçado que a mesma palavra — “amor” — podia ter significados diferentes na pena dos mesmos cronistas. É por isso que o amor na Idade Média é um tema escorregadio, difícil. Fernão Lopes fala do amor que D. João I teve por D. Filipa de Lencastre. Esse amor equivale à paz, estabilidade e harmonia do reino e à criação de filhos magníficos, a “ínclita geração”. Quando, por outro lado, fala do amor que D. Fernando tinha por D. Leonor Teles, já o conota com a desordem, o enfraquecimento do reino. Porque o rei amava tanto D. Leonor, estava tão enfeitiçado por ela, que só fazia o que ela queria. Isso trouxe instabilidade, desordem e guerra.
E o amor que unia D. Filipa de Lencastre e D. João I era totalmente diferente do que unia D. Isabel de Aragão e D. Dinis, outro casal muito conhecido.
Sim. A relação de D. Isabel com D. Dinis sempre foi muito complicada. Qualquer destes casamentos foi de conveniência, de razão, não foi de amor, mas é um facto que D. Isabel e D. Dinis nunca se deram bem. Houve sempre uma conflitualidade latente entre eles. Basta dizer, por exemplo, que nos conflitos que o marido teve com o filho [Afonso IV], ela nunca o apoiou. Normalmente, D. Isabel estava sempre do lado oposto ao de D. Dinis. Talvez [isso fosse devido ao] próprio caráter de cada um. D. Isabel era uma pessoa muito religiosa, que passou a vida em jejuns e orações. D. Dinis era um homem muito homem, um macho latino [risos]. Logo aqui, talvez houvesse alguma dificuldade de entendimento.
Já D. Filipa e D. João I acabaram, ao longo do tempo, por ganhar alguma empatia um com o outro, algum amor. Trabalhavam os dois para o mesmo, não havia conflitualidade. Nos casamentos de conveniência, de razão, houve alguns casais que conseguiram alcançar esse amor entre eles, essa amizade, cumplicidade, benquerença. Outros não, outros toda a vida se digladiaram. Por exemplo, o casamento de D. João II e de D. Leonor também foi sempre muito complicado, muito hostil. Estavam em lados opostos. O amor às vezes vinha, outras vezes não. O amor era consequência do casamento, não era a causa.
Há pouco, quando falou de D. Leonor Teles, disse, citando os cronistas, que o rei estava “enfeitiçado”. Esta ideia do feitiço está também muito associada à mulher na Idade Média.
Sim, a mulher tinha esses poderes diabólicos. Também há situações nas crónicas e na documentação consultada em que as mulheres vão ter com feiticeiras ou com alguém que conhece mezinhas para reatar o amor do seu companheiro. Também é uma maneira de ver que havia ali algum amor — aquela mulher gostava tanto daquele homem que foi ter com alguém que pudesse fazer poções mágicas que o trouxessem de volta. Mas há muito esta conotação da mulher como maléfica, como ligada a estes domínios da magia, do enfeitiçamento, do encantamento. Mesmo nas crónicas, quando um cronista quer dizer um bocadinho mal de certa mulher, diz que ela enfeitiçou o marido. Temos o caso de D. Leonor Teles e de D. Sancho II e da sua rainha, a sua Mécia, da qual ele gostaria muito, tanto que casou com ela contra aquilo que era suposto. O cronista também diz que D. Mécia enfeitiçou D. Sancho e que isso levou à perdição do reino. O reinado de D. Sancho II foi muito complicado, tal como o de D. Fernando. Cá está mais uma vez a noção de amor ligada à estabilidade ou à instabilidade que essas mulheres podiam trazer ao reino.
O casamento era sagrado aos olhos da Igreja (mas não tanto aos dos homens)
Foi na idade Média que se estabeleceu o casamento como laço sagrado e indissolúvel.
Sim, no século XII.
Como é que era antes disso?
Antigamente tudo era muito mais simples. A partir do século XII é que a Igreja instituiu o casamento como um sacramento e depois o ritualizou e institucionalizou como a única forma de união, indissolúvel. Embora, ao longo da Idade Média, tenha havido outros tipos de casamento, mais ou menos como temos hoje: o casamento de juras, o casamento conhecido. Se estivessem juntos há sete anos ou mais, era válido como casamento, mais ou menos como é hoje a união de facto. Estes casamentos eram legais à face da legislação, mas não à face da igreja.
D. Pedro e D. Inês ter-se-ão casado recorrendo a uma dessas formas alternativas de casamento. Foi esse o argumento usado pelo rei para legitimar a união.
Uma das formas de casamento que existia era o casamento de juras. [Neste,] bastava dizerem um ao outro “tomo-te por minha, tomo-te por meu, quero-te para meu, quero-te para minha”; bastava dizerem estas palavras rituais do casamento na presença de uma testemunha, que poderia ser ou não um membro do clero, e eram considerados casados. Foi isso que D. Pedro diz que fez com D. Inês, na sua câmara, na presença de algumas testemunhas. O que é facto é que houve testemunhas que disseram terem estado presentes e terem assistido ao casamento de juras, não de bênção, de D. Pedro e D. Inês.
Existiam casos de violações que acabaram em casamento. Fala de alguns no seu livro.
Que eram altamente penalizados e que podiam levar o marido à morte. A violação era vulgar na época. Mulheres sozinhas, que andavam pelos caminhos [eram potenciais vítimas]. Muitas vezes [homens] invadiam as casas e violavam-nas. Era uma sociedade muito mais violenta, muito mais agressiva do que a de hoje, e as mulheres eram mais indefesas. Existem casos em que, depois da violação, [o homem e a mulher] acabavam até por ficarem a viverem juntos, por se gostarem e terem filhos. Mas, se fosse descoberto, o homem acabava por ser morto. Isso aconteceu muito, por exemplo, no reinado de D. Pedro. As crónicas falam de casos desses. Quando ele sabia que determinado casamento tinha começado com uma violação, independentemente dos pedidos da mulher e dos filhos, o homem era condenado. A violação era punida com a pena de morte, e D. Pedro não deixava escapar [os criminosos], não fosse ele o Justiceiro.
As penas aplicadas a estes e outros crimes eram muito duras, mas parece que isso não demovia os criminosos.
Havia várias penas. A mais cruel era a pena de morte, mas podiam também ser condenados ao degredo. O que é facto é que arriscavam, e as cartas de perdão, que se faziam ao rei a invocar o perdão ou a comutação da pena, provam que estas transgressões existiam, e muito. Quando falamos em violação, adultério, falamos também em homossexualidade, em mistura étnica, de religiões e estatutos sociais diferentes, porque tudo isso era proibido. Era proibido ter relações sexuais com um mouro, um judeu, mas isso acontecia. Portanto, as pessoas arriscavam e arriscavam muito. Essa é talvez a grande diferença que encontro em relação à atualidade. Hoje tudo é livre — o amor é livre, as relações são livres, as pessoas praticamente não arriscam. Na altura, arriscavam, inclusivamente a própria vida. Quando o marido descobria ou tinha conhecimento de que a mulher era adúltera, podia matá-la e ao amante que nada lhe acontecia. Era tudo muito mais penalizado, mais grave, do que hoje. Mas existia. Talvez não tivessem tanto medo de dar esse salto da transgressão. Ou então era o amor que as motivava a isso. Queremos acreditar nisso. Outra coisa que, por exemplo, também era penalizada e que acontecia muitas vezes era o rapto, que podia não ser rapto e acontecer com a própria conivência da mulher. No povo, quando se tratava de um amor não autorizado pelos pais, muitas vezes acabava por se raptar [a mulher]. Mas o rapto também tinha uma penalização que podia ir até à pena de morte.
Alguns desses raptos eram feitos com o auxílio de familiares.
Pois, às vezes. Normalmente eram familiares do rapaz. O rapaz catrapiscava aquela rapariga mas o pais [dela] não queriam [o casamento]. Há casos em que se sabe que os próprios pais do rapaz acabaram por ajudá-lo a raptar a rapariga e que depois acabou por ficar tudo bem. Há alguns casos que têm finais felizes [risos].
Não havia só desgraças naquele tempo.
Não, não havia só desgraças [risos]. Temos de ter um pensamento positivo em relação à época. Já basta a Idade Média ser tão conotada com o obscurantismo, as trevas e com tudo o que é mau. Não, também havia coisas boas. Também havia amor e também havia finais felizes.
De facto, ainda existe esta ideia da Idade Média como uma altura terrível, obscura, de guerras, de violência extrema.
Isso é um daqueles estereótipos que se criam. A Idade Média abarca um período de mil anos — vai desde o século V ao século XV. Ao longo deste período, muita coisa mudou — os conhecimentos, as mentalidades, as culturas, os comportamentos. Nada é igual durante mil anos. A primeira parte da Idade Média, sensivelmente desde o século V ao século X, é realmente um período complicado, de invasões, de muita morte, de destruição. Quando entramos na segunda, que vai mais ou menos do século XI ao século XV, as coisas começam a mudar. Não foi sempre o obscurantismo de que normalmente se fala. É um estereótipo que se colou à Idade Média, tal como a história do amor aos filhos. [Costuma dizer-se que] os casais tinham tantos filhos que, se morresse um ou outro, ninguém dava por isso, as mães não sentiam desgosto. Não é assim. Também investiguei isso e, realmente, quer se fosse pai, mãe, se se tivesse um ou dez filhos, sentia-se muito a morte [de um deles] e fazia-se tudo para curar uma criança que estivesse doente. Às vezes é difícil demover estes estereótipos da cabeça das pessoas. É claro que existia amor como existe hoje, sem dúvida alguma. Amor conjugal, maternal, filial, fraternal. Claro que existia. Hoje também temos casos de pais que tratam mal os filhos, de filhos que tratam mal os pais. Não podemos pôr isso tudo só na Idade Média. Havia situações semelhantes às atuais.
As condicionantes é que eram outras.
Exato, e as penalizações também eram. Não nos podemos esquecer das penalizações da legislação, mas também das penalizações da Igreja. Atendendo à mentalidade das pessoas medievais, tão tementes a Deus, não sei quais é que seriam piores.
Quando o amor batia à porta do mosteiro, a porta também se abria
Falando em Igreja: a vida nos mosteiros e conventos, tal como a vida fora deles, nem sempre se regia pelas regras estabelecidas, ao contrário do que se possa pensar.
É a tal história: quando o amor batia à porta do mosteiro, se calhar a porta abria-se [risos]. Nesta investigação, encontrei muitos casos de frades e de freiras que não seguiam a via da castidade como a religião impunha. Fosse pelo amor ou fosse por costumes algo dissolutos, o que é facto é que havia muitas situações de frades e freiras que tinham amores e que tinham filhos.
Também encontrou vários casos de homossexualidade.
Que facilmente se compreendem quando surgem em meios exclusivamente masculinos ou femininos. Era muito penalizado. No caso da homossexualidade, a penalização até era a morte pelo fogo para se exterminar completamente a transgressão. Mas é claro que existia muito e era muito mal visto, sobretudo a masculina.
Era mais mal vista do que a feminina?
Sim. Repare, de uma maneira geral, qual era o destino da mulher? Era casar e ter filhos. Portanto, se tivesse assim um affaire com uma mulher, nada se perdia, porque continuava casada e continuava a ter filhos. No caso do homem, não. Era um atentado à virilidade masculina e, à face da Igreja, perdia-se a semente. A única função da relação sexual era a procriação. Não havia outra justificação. Quando duas pessoas do mesmo sexo tinham relações sexuais, neste caso o homem, perdia-se inutilmente aquela semente que podia ser utilizada para procriar. Para a Igreja, era isso que era muito grave. Era mais mal encarada a homossexualidade masculina do que a feminina, sem sombra de dúvidas. Até porque, em relação à mulher, era menos visível. A homossexualidade [feminina] aparece nas cantigas de escárnio, tal como a homossexualidade masculina, embora esta também surja nas cartas de perdão. As cantigas são uma ótima fonte documental.
Apesar das regras que explicavam como deviam ser os relacionamentos, até mesmo no que dizia respeito às relações sexuais, houve autores que mostraram uma grande preocupação com a sexualidade e com uma vida sexual saudável.
Isso tem a ver com as várias posições que a Igreja foi assumindo ao longo dos tempos. A pouco e pouco, a Igreja foi assumindo a necessidade do prazer sexual, e isso tem a ver com a evolução das mentalidades e com a tal história de a Idade média não ser sempre igual. No início, recusava-se qualquer tipo de prazer. A relação sexual era exclusivamente para a procriação e o prazer estava proibido. Se eventualmente alguém sentisse algum resquício de prazer, isso devia ser respondido com uma penitência. Isso era a Igreja primitiva — nunca o prazer, só a procriação. A pouco e pouco, a Igreja foi assumindo que o prazer acabava por ser saudável para o casal, embora o amor devesse ser controlado, contido. A Igreja condenava um homem que amasse muito a sua mulher. Era considerado um pecado, um adultério, que o homem amasse a sua mulher com um amor excessivo, com um amor ardente. E estamos a falar da sua mulher, não da “outra”. Não se podia amar uma mulher como se fosse uma amante, uma maneira de pensar que vigorou, infelizmente, até muito tarde no nosso país. Uma coisa era a mulher, outra coisa era a amante. Havia coisas que se podiam fazer com uma amante, mas que não se podiam fazer com a mulher.
Era também por essa razão que existiam as casas de prostitutas.
Exato. Ao fim e ao cabo, era uma ironia — as prostitutas salvaguardavam a mulher honesta, honrada, dos desvarios dos homens. As prostitutas eram toleradas precisamente porque eram uma salvaguarda para a mulher honesta.
Nem se podiam estabelecer perto das mulheres honestas.
Havia uma quantidade de regras para a localização das casas de prostituição. Não podiam estar perto das casas das mulheres honestas, não podiam estar perto das igrejas, porque as prostitutas tinham uma linguagem muito desbragada.
Um amor que raramente é achado em tempo algum
Das várias histórias de amor de que fala no seu livro, qual é a sua favorita?
A minha história de amor favorita é, sem dúvida, a de Pedro e Inês [risos]. É um chavão, mas sem dúvida o Pedro e Inês. Da parte dela não sei, mas da parte dele foi sem dúvida um amor muito grande, que deixou na literatura poesia tão linda, tão linda, que continua a ser um gosto o amor do Pedro e de Inês. Basta olhar para os túmulos que ele mandou fazer para os dois [no Mosteiro de Alcobaça] e que têm tanto para contar. São tão importantes. Não é só serem bonitos, é toda a mensagem que transparece daqueles relevos, daqueles túmulos. Acho que continuo muito agarrada ao amor de Pedro e Inês.
Diz-se que os túmulos foram dispostos daquela maneira para que, no dia do Juízo Final, possam olhar um para o outro.
Serão os primeiros a ver-se novamente. E depois toda a simbologia daqueles túmulos, é uma maravilha. Aqui, mais uma vez, parafraseio Fernão Lopes. Ele diz que, amor como este, raramente é achado em tempo algum.