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“’Tristeza’ é uma oração à tristeza que não é triste”, ouvimo-la dizer no início de junho, no Theatro Circo, em Braga, na sua primeira passagem por Portugal. Atuando aí a propósito do festival Musa, na mesma noite que Sílvia Pérez Cruz – com quem interpretou “Tonada de Luna Llena”, de Símon Díaz, dueto de improviso, lágrima periclitante e sensibilidade extrema – Silvana encantou uma sala cheia apenas com a sua voz e o seu cuatro venezuelano nos braços (numa comparação simplista, o cuatro uma espécie de cruzamento entre uma guitarra de 3/4 e um cavaquinho).
A tristeza é, como canta em “Mas o Menos Antes”, sua aliada. A ela lhe suspira, pedindo que a deixe em paz, como quem pede o regresso impossível de um amor sem o qual não consegue viver. Silvana Estrada quer que a tristeza se vá, é verdade, mas precisa de a sentir colada à garganta, precisa de a espremer bem para de facto encontrar a paz. “Déjame em paz” é ela a suplicar “vai-te”, “queda-te”, faz de mim a mulher que irremediavelmente eu sou e todas as que já fui.
[o vídeo de “Tristeza”:]
Nos seus 25 anos, há um olhar de menina que se arregala com tudo o que é belo, mas também uma gravidade secular. A sua voz tem o peso de Chavela Vargas, Soledad Bravo ou Toña la Negra cantando “Veracruz”, o pedacito de pátria de ambas. A elas – e a Mercedes Sosa e María Grever – Silvana recorre quando se entrega às suas canções, de um modo que é quase um pedido humilde para que lhe permitam perpetuar os seus legados no seu cantar.
Abraçando deste modo visceral e deferente tais referências, torna-se quase poético que na gala do passado mês de novembro dos Grammy Latinos, em Los Angeles, Silvana tenha vencido o prémio de Best New Artist empatada com a cantora cubana Angela Álvarez, de 95 anos. “Foi muito bonito”, diz-nos a partir da sua casa soalheira no México, dando conta que não esperava ter sido nomeada, muito menos galardoada. “Aprendi muito com essa senhora. Ela falou-me sobre os sonhos e sobre a idade. Às vezes sinto que tenho que andar o tempo todo a correr, porque se faz tarde, e ela disse-me que nunca é tarde para se fazer algo”.
Percebe-se que há uma urgência em Silvana Estrada em mostrar ao mundo as suas canções, ela que começou a escrever aos 15 anos. Marchita, lançado em janeiro, já levava três anos de palco antes da editora norte-americana Glassnote resolver pegar nele para o editar. Paralelamente, Silvana não parou de compor e isso explica o facto de nos ter presenteado em setembro com Abrazo, um EP de quatro canções simples, mas poderosíssimo. “Este ano tive muita pressa de lançar coisas novas, porque durante a pandemia senti a falta dos concertos, das digressões e de viajar. Então, foi como um gesto meu para honrar e celebrar a música.”
Para 2023 já há outro trabalho na calha, mais luminoso, doce e com sonoridades novas a lembrar o indie e as “guitarras bonitas” da sua adolescência, desvenda. “Agora quero lançar tudo o que andei a fazer estes anos, quero partilhar as minhas canções”.
Dançando na linha ténue da poesia
Mas isso, em princípio, só vai acontecer no outono e até lá temos ainda dois registos frescos para ouvir com atenção. Um é, de certo modo, a continuação do outro, com Abrazo a abrir um pouco mais a esperança já contida em Marchita, essa flor murcha que se quer ver outra vez bonita, passada a tormenta dos desamores. “Como compositora, o meu trabalho sempre foi – ou tento que seja – o de pôr luz sobre temas mais obscuros. Marchita é um disco muito obscuro, mas acaba por ser uma viagem até à sanação”.
Entender e falar sobre a dor e sobre a perda e a transformação do amor é, para Silvana, um exercício extremo. Assim, ela refugia-se na poesia e na música para se conseguir expressar e seguir em frente. “É importante dar nome às coisas para as poder sanar e a canção sempre foi a minha maneira de dar nome às coisas que não consigo definir no dia-a-dia. Nesse sentido, estou sempre a jogar entre o triste e o alegre, a desesperança e a esperança, porque é justamente nessa balança que existe uma linha muito ténue de poesia”.
A partir desse jogo, Silvana Estrada vai abrindo “gretas de luz”, uma imagem que a acompanha no ato de composição e que é sentida em cada uma das 11 canções de Marchita. A voz e a palavra estão e são o centro de tudo. Os restantes elementos giram à volta de Silvana como se fossem planetas a girar à volta do sol. Ela é a estrela de fogo, o lamurio maior que se basta a si e a um pequeno cuatro, esse instrumento que, no seu dedilhar singelo e delicado, é a ponta de esperança a que nos agarramos quando a voz da música mexicana se enforma num sofrimento que, de tão humano, é quase animal.
Se soubesse que para ti eu era tão pouco, teria sido prudente ao entregar-te o meu coração, canta no tema que dá nome ao disco. Já em “Sabré Olvidar”, cerra os dentes como quem vai à luta, “pois sorrir é um remédio de valentes”, rasgando cada memória que a estorva. A esperança faz-se suspiro em “Te Guardo” — “te guardo un poquito de fé / para abrir los ojos y verte” — ou em “Ser de Ti”, uma canção que deixa a porta aberta ao perdão: “cuando tú quieras, vulve”.
[“Sabré Olvidar”:]
O álbum termina com “La Enfermedad Del Siglo”, um instrumental com uma trompete arrastada, chorando no seu monólogo, e um órgão atrás, carregado de religiosidade. Quando desaparecem, instala-se um vazio que, ao invés de austero, é gentil e nos parece querer preparar de mansinho para abrirmos espaço para uma “Tenderly” de Billie Holiday. O carinho de uma brisa é também ele um afago poderoso para curar a dor.
Entre o jazz, o clássico e as histórias da sua comunidade
Falamos de Billie Holiday como poderíamos ter falado de Ella Fitzgerald, porque se é verdade que Silvana carrega na voz a tradição das grandes vozes femininas da América Latina, é também verdade que nas inflexões que faz tem muito da herança das divas do jazz norte-americano. Ela, efetivamente, estudou jazz no conservatório da cidade mexicana de Xalapa, mudando-se depois para Nova Iorque, o que explica a liberdade com a qual se entrega à interpretação, sempre tão solta quanto o canto de um pássaro.
Porém, cedo sentiu que esse caminho não era para si: “Como era tudo em inglês, não senti que fosse aportar muito à história do jazz. A minha comunidade não precisava que eu cantasse ‘All The Things You Are’. Quando comecei a contar as minhas histórias, aí senti que tinha uma espécie de compromisso de narrar a minha realidade, que é a realidade de muitas pessoas”.
A narração faz-se acompanhar de um lado clássico que está expresso essencialmente nos arranjos de cordas sentidos durante todo o álbum. Isso leva-nos a falar da infância de Silvana, dos pais que são músicos clássicos e construtores de instrumentos – a mãe de violas e violinos, o pai de contrabaixos e violoncelos. Nos concertos Tiny Desk da publicação NPR Music, ela apresenta-se precisamente na oficina dos pais.
“Sendo de uma família de músicos, os meus pais sempre tiveram o cuidado de fazer com que a música, para mim, trouxesse alegria. Tenho muitas memórias de eles a cantar nas festas de família, nas festas populares, nas quais todas as pessoas tocavam, cantavam e dançavam. Por isso, a música entrou na minha vida de uma maneira muito social, coletiva e quotidiana. Não havia tanto a figura do artista, mas sim a de alguém que no seu tempo livre queria fazer música para seu próprio prazer.”
Essas memórias fizeram-lhe desenvolver uma relação muito saudável com a música: “Sempre foi uma coisa de toda a gente, da família e dos amigos, ninguém ficava de parte”. Talvez por isso ela comece Abrazo com “Brindo”, uma canção leve que é um brinde aos amigos, às almas que se foram, ao amor, ao afã de liberdade e à firme esperança de mudar.
[“Brindo” numa versão de rua:]
Ao tirarem-lhes tudo, tiraram-lhes o medo
Com “Brindo”, a sanação de Marchita assume contornos mais precisos e é também aqui que percebemos que o canto de Silvana Estrada se abre para uma dor que não é tão pessoal, mas coletiva. Isso é especialmente sentido na faixa que fecha o EP, “Si me matan”, um protesto tão amargo quanto doce que aborda o feminicídio no México. “As famílias das mulheres assassinadas quase nunca têm o direito de contar as verdadeiras histórias dessas mulheres. A imprensa inventa sempre uma história narrada por um homem, mas agora há uma vontade de sermos nós a contar as nossas histórias e de vivermos as nossas vidas segundo os nossos próprios parâmetros.”
Perguntamos-lhe se não tem medo de cantar versos como “Si me matan (…) / Yo seré semilla para las que vienen / Que ya nadie nos calla / Ya nada nos contiene”, quando no México há em média 10 feminicídios por dia (o da música Jazmín Zárate, de 27 anos, foi um dos últimos a registar) e Silvana faz-se simples e firme na resposta: “Penso que todas temos medo, mas fazemos as coisas na mesma, pois há que fazê-las”. No fundo, o que Silvana nos quer dizer já está contido na própria canção: “Nos han quitado tanto / Nos quitaron el miedo”.
[“Si Me Matan”:]
Quando o medo deixa de o ser, emerge uma força poderosíssima expressa no movimento de novas vozes femininas que estão a surgir no México e que têm em Chavela Vargas e Toña la Negra as suas referências de protesto. Veja-se, por exemplo, Natalia Lafourcade, que este ano lançou também um álbum lindíssimo (De Todas Las Flores), Julieta Venegas, já com uma carreira mais consolidada, ou a pop juvenil de Ximena Sariñana, que ficou conhecida por ter interpretado “Lucky” com Jason Mraz. “Este é um momento muito feminino no México, porque se por um lado estamos a viver um período de muita violência de género, por outro há um montão de festivais em que os cabeças de cartaz são mulheres e há muita representatividade feminina”.
O México, explica-nos, é este contraste de extremos. “É tudo ao mesmo tempo. Há muito medo e tristeza, mas, simultaneamente, há muita coragem e esperança”. Assim é também a música de Silvana Estrada, uma mescla de desamor e de alento, de jazz, clássico e de poesia ranchera, de força e sabedoria das grandes mulheres da história da música latino-americana, que sabem que nunca é tarde para começar uma luta ou um sonho, e de inocência e urgência de uma voz de 25 anos que idealiza um dia vir a colaborar com Rosalía: “Encanta-me o seu trabalho, porque é uma mulher muito clara na sua visão. As mulheres tendem a deixar o instinto de lado e a fazer o que devem, ao invés de fazerem o que querem. E a Rosalía só faz o que quer”.
Silvana, segreda-nos, queria também cantar com Caetano Veloso, com Juan Luís Guerra ou com Devendra Banhart. “Mas nunca me atrevi a escrever um e-mail, ‘olá, queres fazer uma canção comigo?’ A ver se no próximo ano mudo isso, a ver agora como me reinvento”. Como diria Rosalía, “yo me transformo”. Para o ano, com ou sem parcerias, é possível que a voltemos a ver em Portugal, aquando da digressão europeia de verão. Fica a promessa de alguém que se apaixonou pelo fado, pela música de Salvador Sobral e do pianista João Pedro Coelho e pelo país. Por aquilo que testemunhámos em Braga, cremos que o país também se apaixonou por ela.