901kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

"Às vezes sinto que tenho que andar o tempo todo a correr, porque se faz tarde, e a Angela [Álvarez, cantora cubana de 95 anos] disse-me que nunca é tarde para se fazer algo", revela-nos a artista mexicana
i

"Às vezes sinto que tenho que andar o tempo todo a correr, porque se faz tarde, e a Angela [Álvarez, cantora cubana de 95 anos] disse-me que nunca é tarde para se fazer algo", revela-nos a artista mexicana

"Às vezes sinto que tenho que andar o tempo todo a correr, porque se faz tarde, e a Angela [Álvarez, cantora cubana de 95 anos] disse-me que nunca é tarde para se fazer algo", revela-nos a artista mexicana

O ano da graça da "cancionera" Silvana Estrada: "A ver agora como me reinvento"

Em 2022, Silvana Estrada lançou um álbum, um EP e ganhou o Grammy Latino de Best New Artist. Prestemos atenção a esta mexicana, que tem em si a voz e as lutas de tantas outras mulheres.

    Índice

    Índice

“’Tristeza’ é uma oração à tristeza que não é triste”, ouvimo-la dizer no início de junho, no Theatro Circo, em Braga, na sua primeira passagem por Portugal. Atuando aí a propósito do festival Musa, na mesma noite que Sílvia Pérez Cruz – com quem interpretou “Tonada de Luna Llena”, de Símon Díaz, dueto de improviso, lágrima periclitante e sensibilidade extrema – Silvana encantou uma sala cheia apenas com a sua voz e o seu cuatro venezuelano nos braços (numa comparação simplista, o cuatro uma espécie de cruzamento entre uma guitarra de 3/4 e um cavaquinho).

A tristeza é, como canta em “Mas o Menos Antes”, sua aliada. A ela lhe suspira, pedindo que a deixe em paz, como quem pede o regresso impossível de um amor sem o qual não consegue viver. Silvana Estrada quer que a tristeza se vá, é verdade, mas precisa de a sentir colada à garganta, precisa de a espremer bem para de facto encontrar a paz. “Déjame em paz” é ela a suplicar “vai-te”, “queda-te”, faz de mim a mulher que irremediavelmente eu sou e todas as que já fui.

[o vídeo de “Tristeza”:]

Nos seus 25 anos, há um olhar de menina que se arregala com tudo o que é belo, mas também uma gravidade secular. A sua voz tem o peso de Chavela Vargas, Soledad Bravo ou Toña la Negra cantando “Veracruz”, o pedacito de pátria de ambas. A elas – e a Mercedes Sosa e María Grever – Silvana recorre quando se entrega às suas canções, de um modo que é quase um pedido humilde para que lhe permitam perpetuar os seus legados no seu cantar.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Abraçando deste modo visceral e deferente tais referências, torna-se quase poético que na gala do passado mês de novembro dos Grammy Latinos, em Los Angeles, Silvana tenha vencido o prémio de Best New Artist empatada com a cantora cubana Angela Álvarez, de 95 anos. “Foi muito bonito”, diz-nos a partir da sua casa soalheira no México, dando conta que não esperava ter sido nomeada, muito menos galardoada. “Aprendi muito com essa senhora. Ela falou-me sobre os sonhos e sobre a idade. Às vezes sinto que tenho que andar o tempo todo a correr, porque se faz tarde, e ela disse-me que nunca é tarde para se fazer algo”.

“Sendo de uma família de músicos, os meus pais sempre tiveram o cuidado de fazer com que a música, para mim, trouxesse alegria. Tenho muitas memórias de eles a cantar nas festas de família, nas festas populares, nas quais todas as pessoas tocavam, cantavam e dançavam. Por isso, a música entrou na minha vida de uma maneira muito social, coletiva e quotidiana."

Percebe-se que há uma urgência em Silvana Estrada em mostrar ao mundo as suas canções, ela que começou a escrever aos 15 anos. Marchita, lançado em janeiro, já levava três anos de palco antes da editora norte-americana Glassnote resolver pegar nele para o editar. Paralelamente, Silvana não parou de compor e isso explica o facto de nos ter presenteado em setembro com Abrazo, um EP de quatro canções simples, mas poderosíssimo. “Este ano tive muita pressa de lançar coisas novas, porque durante a pandemia senti a falta dos concertos, das digressões e de viajar. Então, foi como um gesto meu para honrar e celebrar a música.”

Para 2023 já há outro trabalho na calha, mais luminoso, doce e com sonoridades novas a lembrar o indie e as “guitarras bonitas” da sua adolescência, desvenda. “Agora quero lançar tudo o que andei a fazer estes anos, quero partilhar as minhas canções”.

Dançando na linha ténue da poesia

Mas isso, em princípio, só vai acontecer no outono e até lá temos ainda dois registos frescos para ouvir com atenção. Um é, de certo modo, a continuação do outro, com Abrazo a abrir um pouco mais a esperança já contida em Marchita, essa flor murcha que se quer ver outra vez bonita, passada a tormenta dos desamores. “Como compositora, o meu trabalho sempre foi – ou tento que seja – o de pôr luz sobre temas mais obscuros. Marchita é um disco muito obscuro, mas acaba por ser uma viagem até à sanação”.

Entender e falar sobre a dor e sobre a perda e a transformação do amor é, para Silvana, um exercício extremo. Assim, ela refugia-se na poesia e na música para se conseguir expressar e seguir em frente. “É importante dar nome às coisas para as poder sanar e a canção sempre foi a minha maneira de dar nome às coisas que não consigo definir no dia-a-dia. Nesse sentido, estou sempre a jogar entre o triste e o alegre, a desesperança e a esperança, porque é justamente nessa balança que existe uma linha muito ténue de poesia”.

As capas do álbum "Marchita" e do EP "Abrazo". Ambos os discos foram editados este ano

A partir desse jogo, Silvana Estrada vai abrindo “gretas de luz”, uma imagem que a acompanha no ato de composição e que é sentida em cada uma das 11 canções de Marchita. A voz e a palavra estão e são o centro de tudo. Os restantes elementos giram à volta de Silvana como se fossem planetas a girar à volta do sol. Ela é a estrela de fogo, o lamurio maior que se basta a si e a um pequeno cuatro, esse instrumento que, no seu dedilhar singelo e delicado, é a ponta de esperança a que nos agarramos quando a voz da música mexicana se enforma num sofrimento que, de tão humano, é quase animal.

Se soubesse que para ti eu era tão pouco, teria sido prudente ao entregar-te o meu coração, canta no tema que dá nome ao disco. Já em “Sabré Olvidar”, cerra os dentes como quem vai à luta, “pois sorrir é um remédio de valentes”, rasgando cada memória que a estorva. A esperança faz-se suspiro em “Te Guardo” — “te guardo un poquito de fé / para abrir los ojos y verte” — ou em “Ser de Ti”, uma canção que deixa a porta aberta ao perdão: “cuando tú quieras, vulve”.

[“Sabré Olvidar”:]

O álbum termina com “La Enfermedad Del Siglo”, um instrumental com uma trompete arrastada, chorando no seu monólogo, e um órgão atrás, carregado de religiosidade. Quando desaparecem, instala-se um vazio que, ao invés de austero, é gentil e nos parece querer preparar de mansinho para abrirmos espaço para uma “Tenderly” de Billie Holiday. O carinho de uma brisa é também ele um afago poderoso para curar a dor.

Entre o jazz, o clássico e as histórias da sua comunidade

Falamos de Billie Holiday como poderíamos ter falado de Ella Fitzgerald, porque se é verdade que Silvana carrega na voz a tradição das grandes vozes femininas da América Latina, é também verdade que nas inflexões que faz tem muito da herança das divas do jazz norte-americano. Ela, efetivamente, estudou jazz no conservatório da cidade mexicana de Xalapa, mudando-se depois para Nova Iorque, o que explica a liberdade com a qual se entrega à interpretação, sempre tão solta quanto o canto de um pássaro.

Porém, cedo sentiu que esse caminho não era para si: “Como era tudo em inglês, não senti que fosse aportar muito à história do jazz. A minha comunidade não precisava que eu cantasse ‘All The Things You Are’. Quando comecei a contar as minhas histórias, aí senti que tinha uma espécie de compromisso de narrar a minha realidade, que é a realidade de muitas pessoas”.

The 23rd Annual Latin Grammy Awards - 2022 Best New Artist Showcase

Silvana Estrada ao vivo na gala de entrega dos Grammys Latinos deste ano

Getty Images for The Latin Recor

A narração faz-se acompanhar de um lado clássico que está expresso essencialmente nos arranjos de cordas sentidos durante todo o álbum. Isso leva-nos a falar da infância de Silvana, dos pais que são músicos clássicos e construtores de instrumentos – a mãe de violas e violinos, o pai de contrabaixos e violoncelos. Nos concertos Tiny Desk da publicação NPR Music, ela apresenta-se precisamente na oficina dos pais.

“Sendo de uma família de músicos, os meus pais sempre tiveram o cuidado de fazer com que a música, para mim, trouxesse alegria. Tenho muitas memórias de eles a cantar nas festas de família, nas festas populares, nas quais todas as pessoas tocavam, cantavam e dançavam. Por isso, a música entrou na minha vida de uma maneira muito social, coletiva e quotidiana. Não havia tanto a figura do artista, mas sim a de alguém que no seu tempo livre queria fazer música para seu próprio prazer.”

Essas memórias fizeram-lhe desenvolver uma relação muito saudável com a música: “Sempre foi uma coisa de toda a gente, da família e dos amigos, ninguém ficava de parte”. Talvez por isso ela comece Abrazo com “Brindo”, uma canção leve que é um brinde aos amigos, às almas que se foram, ao amor, ao afã de liberdade e à firme esperança de mudar.

[“Brindo” numa versão de rua:]

Ao tirarem-lhes tudo, tiraram-lhes o medo

Com “Brindo”, a sanação de Marchita assume contornos mais precisos e é também aqui que percebemos que o canto de Silvana Estrada se abre para uma dor que não é tão pessoal, mas coletiva. Isso é especialmente sentido na faixa que fecha o EP, “Si me matan”, um protesto tão amargo quanto doce que aborda o feminicídio no México. “As famílias das mulheres assassinadas quase nunca têm o direito de contar as verdadeiras histórias dessas mulheres. A imprensa inventa sempre uma história narrada por um homem, mas agora há uma vontade de sermos nós a contar as nossas histórias e de vivermos as nossas vidas segundo os nossos próprios parâmetros.”

Perguntamos-lhe se não tem medo de cantar versos como “Si me matan (…) / Yo seré semilla para las que vienen / Que ya nadie nos calla / Ya nada nos contiene”, quando no México há em média 10 feminicídios por dia (o da música Jazmín Zárate, de 27 anos, foi um dos últimos a registar) e Silvana faz-se simples e firme na resposta: “Penso que todas temos medo, mas fazemos as coisas na mesma, pois há que fazê-las”. No fundo, o que Silvana nos quer dizer já está contido na própria canção: “Nos han quitado tanto / Nos quitaron el miedo”.

[“Si Me Matan”:]

Quando o medo deixa de o ser, emerge uma força poderosíssima expressa no movimento de novas vozes femininas que estão a surgir no México e que têm em Chavela Vargas e Toña la Negra as suas referências de protesto. Veja-se, por exemplo, Natalia Lafourcade, que este ano lançou também um álbum lindíssimo (De Todas Las Flores), Julieta Venegas, já com uma carreira mais consolidada, ou a pop juvenil de Ximena Sariñana, que ficou conhecida por ter interpretado “Lucky” com Jason Mraz. “Este é um momento muito feminino no México, porque se por um lado estamos a viver um período de muita violência de género, por outro há um montão de festivais em que os cabeças de cartaz são mulheres e há muita representatividade feminina”.

O México, explica-nos, é este contraste de extremos. “É tudo ao mesmo tempo. Há muito medo e tristeza, mas, simultaneamente, há muita coragem e esperança”. Assim é também a música de Silvana Estrada, uma mescla de desamor e de alento, de jazz, clássico e de poesia ranchera, de força e sabedoria das grandes mulheres da história da música latino-americana, que sabem que nunca é tarde para começar uma luta ou um sonho, e de inocência e urgência de uma voz de 25 anos que idealiza um dia vir a colaborar com Rosalía: “Encanta-me o seu trabalho, porque é uma mulher muito clara na sua visão. As mulheres tendem a deixar o instinto de lado e a fazer o que devem, ao invés de fazerem o que querem. E a Rosalía só faz o que quer”.

“Este é um momento muito feminino no México, porque se por um lado estamos a viver um período de muita violência de género, por outro há um montão de festivais em que os cabeças de cartaz são mulheres e há muita representatividade feminina.”

Silvana, segreda-nos, queria também cantar com Caetano Veloso, com Juan Luís Guerra ou com Devendra Banhart. “Mas nunca me atrevi a escrever um e-mail, ‘olá, queres fazer uma canção comigo?’ A ver se no próximo ano mudo isso, a ver agora como me reinvento”. Como diria Rosalía, “yo me transformo”. Para o ano, com ou sem parcerias, é possível que a voltemos a ver em Portugal, aquando da digressão europeia de verão. Fica a promessa de alguém que se apaixonou pelo fado, pela música de Salvador Sobral e do pianista João Pedro Coelho e pelo país. Por aquilo que testemunhámos em Braga, cremos que o país também se apaixonou por ela.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.