Com lágrimas nos olhos e com a voz embargada, Jair Bolsonaro assegurou na tarde desta quarta-feira, no canal de televisão Pan Jovem, que não cometeu qualquer fraude com os certificados de vacinação da família. Apanhado desprevenido por uma mega operação da Polícia Federal, o antigo Presidente do Brasil está envolvido numa nova polémica, por suspeitas de ligações a uma rede de emissão de certificados de vacinação falsos. Pouco passavam das seis da manhã desta quarta-feira (mais quatro horas em Lisboa), quando o antigo líder brasileiro foi surpreendido pela Polícia Federal, que levava consigo um mandado para realizar buscas na casa do ex-Presidente em Brasília, no bairro Jardim Botânico, um dos mais nobres da capital brasileira. Mas, além disso, o juiz do Supremo Tribunal Federal Alexandre Moraes também havia determinado a apreensão das armas e do passaporte de Bolsonaro — o que poderá por em causa a deslocação a Portugal dos próximos dias, para participar na Cimeira Mundial da Direita, organizada pelo Chega.
Ao mesmo tempo que eram feitas diligências na casa de Bolsonaro — o passaporte não foi já apreendido, mas foi já prometida a sua entrega –, as autoridades detinham seis pessoas, uma das quais o ex-adjunto de Bolsonaro e um dos seus antigos braços direitos, Mauro Cid. “[Determino] a busca e apreensão de armas, munições, computadores, passaporte, tablets, celulares e outros dispositivos eletrónicos, bem como de quaisquer outros materiais relacionados aos fatos aqui descritos, a ser realizada concomitantemente com diligências policiais previstas no artigo 6º do Código de Processo Penal”, determinou Moraes, segundo noticiado pelo Portal G1.
Entre buscas e detenções, a Polícia Federal cumpriu 16 mandados, no âmbito da Operação Venire. As autoridades brasileiras tentam apurar se se comprova a “atuação de associação criminosa constituída para a prática dos crimes de inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde”. Ou seja, há suspeitas de que um grupo de pessoas emitia “certificados de vacinação”, que seriam usados para driblar “as restrições sanitárias impostas pelos poderes públicos” em dois países: Brasil e Estados Unidos.
Bolsonaro chora durante entrevista no Pânico na Jovem Pan pic.twitter.com/EjEyrXNeVL
— Jornal da Direita Online ???????????????? (@JornalBrasilOn2) May 3, 2023
Abertamente contra a vacinação contra a Covid-19 ao longo dos quatro anos do mandato, as buscas à casa de Jair Bolsonaro deixam poucas dúvidas de que o antigo Presidente esteja implicado neste esquema. Na tarde desta quarta-feira, os órgãos de comunicação social brasileiros apuraram que as autoridades estão convictas de que o antigo Presidente terá falsificado o seu certificado de vacinação e o da sua filha Laura, de 12 anos, para conseguir entrar nos Estados Unidos, país para o qual se deslocou dois dias antes de terminar o mandado, a 30 de dezembro de 2022.
Para além disso, a Polícia Federal apreendeu o telemóvel do antigo líder brasileiro. Após tudo isto, Jair Bolsonaro mostrou-se “surpreso” com o desencadear da operação. Confirmando que nunca se vacinou contra a Covid-19, o ex-Presidente rejeitou, contudo, que tenha falsificado o certificado de vacinação. “Nunca me pediram o certificado de vacinação em lugar nenhum e não há adulteração da minha parte. Eu não tomei a vacina, ponto final. Nunca neguei isso”, garantiu.
A uma semana e meia de deslocar a Portugal — Jair Bolsonaro vem a Lisboa nos dias 13 e 14 de maio para participar na Cimeira Mundial da Direita organizada pelo Chega —, o antigo Presidente vê-se envolvido em mais um escândalo e um processo judicial, que pode levar a que a justiça de um país terceiro, neste caso a norte-americana, entre em ação.
O que Bolsonaro poderá ter feito de ilegal?
De acordo com o comunicado emitido esta quarta-feira pela Polícia Federal, entre “novembro de 2021 e dezembro de 2022” um grupo de pessoas emitiu variados certificados falsos de vacinação contra a Covid-19. “A apuração indica que o objetivo do grupo seria manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a Covid-19″, lê-se.
As autoridades acreditam que Jair Bolsonaro, ou pelo menos os seus aliados mais próximos, terão recorrido a esta rede para falsificar um certificado de vacinação antes de partir para os Estados Unidos. Ao que apurou o jornal O Globo, a 21 de dezembro do ano passado, o secretário do Governo de Duque de Caxias, João Carlos de Sousa Brecha (que também acabou detido esta quarta-feira no âmbito da operação Venire), terá inserido, nas bases de dados do Ministério da Saúde, informações de que o antigo Presidente estaria vacinado.
Os dados a que o jornal O Globo teve acesso dão conta de que o certificado alegadamente forjado indicam que Jair Bolsonaro teria sido inoculado com a primeira dose da vacina da Pfizer a 13 de agosto de 2022, no Centro Municipal de Saúde de Duque de Caxias, no estado de Rio de Janeiro. O antigo Presidente teria ainda recebido a segunda dose a 14 de outubro no mesmo estabelecimento de saúde. Com o esquema vacinal completo, o antigo Presidente poderia ter deste modo acesso ao certificado de vacinação.
Nem uma semana depois, a 27 de dezembro de 2022, os dados relativos à vacinação de Jair Bolsonaro e da filha Laura terão sido excluídos da base de dados do Ministério da Saúde por Claudia Helena Rodrigues da Silva, a chefe da vacinação no Centro Municipal de Saúde de Duque de Caxias, alegando que se trataria de um “erro” na plataforma. Esta quarta-feira, tal como João Carlos de Sousa Brecha, a responsável pela área da saúde também teve de prestar esclarecimentos às autoridades.
A Polícia Federal também intimou Jair Bolsonaro a prestar depoimentos sobre o caso, mas o antigo Presidente rejeitou fazê-lo, tendo sido previamente aconselhado pela equipa legal que o acompanha para o fazer. Antes de o seu telemóvel ser apreendido pelas autoridades, o ex-líder brasileiro ainda conseguiu realizar uma chamada telefónica para o seu advogado, Paulo Cunha Bueno, que já veio esclarecer, segundo a Folha de São Paulo, que o antigo Chefe de Estado apenas aceitará prestar declarações à Polícia Federal, quando tiver acesso ao despacho de indiciação. “Bolsonaro vai exercer, por enquanto, o direito de ficar calado.”
Publicamente, Jair Bolsonaro não ficou em silêncio e, esta quarta-feira, reiterou, em declarações aos jornalistas, que não tinha sido vacinado. “Eu não tomei a vacina e ponto final. Nunca neguei isso. Havia gente que me pressionava para tomar a vacina. Decidi não tomar porque li a bula da Pfizer”, assinalou, acrescentando que a filha de 12 anos também não foi vacinada.
Durante a tarde, em declarações ao canal de televisão Jovem Pan (com uma linha editorial considerada próxima do antigo Presidente), o ex-líder do Brasil voltou a reiterar esta versão, tendo-se emocionado. Insistindo que não foi vacinado por opção própria, Jair Bolsonaro adiantou que todos os detalhes das visitas eram acertados “antecipadamente”. “Nas minhas idas aos Estados Unidos, em nenhum momento me foi exigido o certificado vacinal”, vincou, assegurando que não cometeu qualquer tipo de “fraude”.
A atual companheira de Jair Bolsonaro, Michelle, foi a única vacinada contra a Covid-19 na família, tendo a própria dito isso nas suas redes sociais. “Na minha casa, apenas eu fui vacinada”, escreveu numa story do Instagram. O marido confirmou a informação e revelou ainda que a mulher foi inoculada nos Estados Unidos com uma vacina da empresa farmacêutica Janssen.
As implicações penais do caso
Caso se comprove que Jair Bolsonaro falsificou o seu certificado de vacinação e o da filha, isso poderá ter implicações legais não só no Brasil, como também nos Estados Unidos, já que o antigo Presidente pode ter violado as leis vigentes nos dois países.
No Brasil, Alexandre Padilha, ministro das Relações Institucionais, escreveu, na sua conta pessoal do Twitter, que Jair Bolsonaro pode ser acusado dos crimes de “infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores”: “Tudo isso aconteceu durante a pandemia, enquanto o Brasil enfrentava a maior crise sanitária da sua história. Qualquer ação criminosa que visa atacar o Plano Nacional de Imunização deve ser apurada e punida pela Justiça brasileira”.
Crimes de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores. Essas são as ações que a @policiafederal investiga do ex-presidente.
— Alexandre Padilha (@padilhando) May 3, 2023
Se se comprovar que Jair Bolsonaro cometeu aqueles crimes, o antigo Presidente pode mesmo ser preso. O ex-Chefe de Estado também pode ter de enfrentar a Justiça norte-americano, caso se comprove que entrou no país com um certificado falsificado.
Para entrar nos Estados Unidos, é necessário estar vacinado contra a Covid-19. “Adultos estrangeiros não vacinados contra o coronavirus não estão autorizados a viajar para os Estados Unidos”, lê-se no site do ESTA, o Sistema Eletrónico para Autorização de Viagem norte-americano, que controla as entradas e saídas do país. A medida vigora até 11 de maio de 2023, sendo que, na ida de Jair Bolsonaro para a Florida, no dia 30 de dezembro de 2022, a lei estava em vigor.
No entanto, não se sabe se, como se tratava na altura de um Chefe de Estado, o controlo alfandegário norte-americano suavizou ou não as medidas. Ao que apurou o jornalista Igor Gadelha do jornal Métropoles junto a fontes norte-americanas, Jair Bolsonaro estava numa lista de pessoas em que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, sigla em inglês) abria uma exceção para a entrada no país sem o comprovativo da vacinação completa contra a Covid-19. Mas as dúvidas subsistem sobre se o antigo líder brasileiro falsificou ou não o certificado de vacinação.
A relação com o antigo adjunto, Mauro Cid, que acabou detido
Entre as seis pessoas que foram detidas, a mais conhecida era o antigo adjunto de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, que desempenhava a função de ajudante de ordens. O antigo Presidente via-o como um dos seus principais aliados, que trabalhava incansavelmente nos bastidores. Como lembra a G1, Mauro Cid não gostava do mundo da política — mas acatava e gostava de cumprir ordens.
Filho de um amigo da família de Bolsonaro, Mauro Cid costumava dizer que viveu “99%” das histórias do mandato do antigo Presidente, extrapolando inclusivamente a vida política. Por exemplo, o antigo adjunto controlava semanalmente o extrato bancário do ex-Chefe de Estado e era quem decidia se atendia ou não algumas chamadas.
Tendo em consideração a confiança que Jair Bolsonaro depositava no seu antigo adjunto, não seria de estranhar que Mauro Cid tenha estado envolvido na alegada emissão do certificado de vacinação falso. Mas não se sabe, por agora, até que ponto é que o ex-braço direito do antigo Presidente esteve envolvido neste caso, não tendo a Polícia Federal divulgado qualquer informação a esse respeito.
Adicionalmente, Mauro Cid também já esteve envolvido em outros processos judiciais, nomeadamente o caso das joias sauditas, estando previsto que prestasse declarações sobre o assunto esta quarta-feira. O antigo adjunto terá sido o principal responsável por tentar trazer as joias para o Brasil.
As versões de Bolsonaro, o “bom dia” de Lula e o silêncio do Chega
Politicamente, os seus aliados, conta a Folha de São Paulo, foram apanhados desprevenidos com as buscas e a detenção de Mauro Cid. Porém, os advogados do antigo Presidente puseram-se a caminho de Brasília para entenderem os contornos legais dos mandados de detenção. “Estão a brincar com o fogo”, atirou um assessor do ex-Chefe de Estado, acusando o governo de Lula da Silva de estar a fazer coisas “sem a menor justificativa e explicação”. “Estão querendo incendiar o Brasil.”
Após as buscas, Jair Bolsonaro reuniu-se com os seus aliados na sede do Partido Liberal, em Brasília. Durante o encontro, o presidente do Partido Libram, Valdemar Costa Neto, saiu em defesa, na conta pessoal do Twitter, do antigo líder brasileiro. “Bolsonaro é uma pessoa correta, íntegra, que melhorou o país e procurava sempre seguir a lei. Confiamos que todas as dúvidas da Justiça serão esclarecidas e que ficará provado que Bolsonaro não cometeu ilegalidades.”
Bolsonaro é uma pessoa correta, íntegra, que melhorou o país e procurava sempre seguir a Lei. Confiamos que todas as dúvidas da Justiça serão esclarecidas e que ficará provado que Bolsonaro não cometeu ilegalidades.
— Valdemar Costa Neto (@CostaNetoPL) May 3, 2023
O núcleo duro de Jair Bolsonaro vê a emissão dos mandados de detenção inclusivamente como uma “retaliação” do governo de Lula da Silva. À Folha de São Paulo, um aliado disse mesmo que a semana estava “boa demais” para o antigo Presidente, o que terá estado na origem da ação da Polícia Federal. Em causa, estaria a multidão que recebeu em êxtase o ex-Presidente brasileiro na cidade de Ribeirão Preto e também o facto de Lula da Silva não ter conseguido aprovar o projeto de lei conhecido como PL das Fake News, que determina a regulamentação e fiscalização das plataformas digitais.
Bolsonaro recebido por multidão no primeiro ato público após regresso ao Brasil
Por sua parte, Lula da Silva manteve-se em silêncio. Contudo, muitos dos seus apoiantes relacionam uma publicação no Twitter, em que o atual Presidente apenas escreveu “Bom dia, boa quarta-feira”, como uma espécie de reação ao sucedido. Também a primeira-dama brasileira, Janja da Silva, escreveu o mesmo.
Bom dia e boa quarta-feira!
— Lula (@LulaOficial) May 3, 2023
A emissão de mandados de detenção ocorre a uma semana e meia de Jair Bolsonaro se deslocar a Portugal, para participar na Cimeira Mundial da Direita, organizada pelo Chega. Ainda antes de ser conhecida a determinação de apreensão do passaporte de Bolsonaro, questionado pelo Observador sobre se todo este processo judicial alteraria os planos da organização do evento, o partido português optou por não responder.