António Costa saiu de mais de onze horas de debate a recordar que um ano antes se abria a crise política, depois de chumbado o Orçamento para 2022. E que agora conseguira aprovar “um bom instrumento” para enfrentar a atual crise, de outra origem e dimensão. Saiu a festejar, mas no plenário a maioria socialista fez a festa sozinha (apenas com dois amigos no plenário), porque as restantes bancadas fizeram tiro ao Orçamento neste dia e meio com ataques ao que chama de “austeridade” ou estratégia de “empobrecimento do país”. Aqui fica uma versão light de um longo debate na generalidade – daqui a um mês há a votação final.
OE para 2023 aprovado na generalidade com votos a favor do PS e abstenção de PAN e Livre
O resultado
Não é uma surpresa e, enquanto durar a maioria absoluta, nunca será: tendo o PS a maioria dos deputados, o Orçamento estava, nesta primeira votação, aprovado à partida. No momento de votar, repetiram-se dois cenários que já se tinham visto na aprovação do último documento: esquerda e direita juntas, de pé, a votar contra (“todos juntinhos”, ironizavam os deputados do PS) e Inês Sousa Real, do PAN, e Rui Tavares, do Livre, a levantar a mão para se absterem (mais uns coros de “ooooh” irónicos, desta vez vindos das bancadas da direita). No fim, mais um Orçamento aprovado – segue-se a fase da especialidade e depois a votação final, a 25 de novembro.
A duração
Ao segundo dia de debate, já depois de mais de cinco horas de discussão no dia anterior, o presidente da Assembleia da República avisou logo quais eram os seus planos para o segundo e último dia de OE generalidade: começar às 10 horas, fazer intervalo para almoço das 13h30 às 15 horas e estar a votar a proposta pelas 18 horas. O debate terminou pouco depois dessa hora, mais de onze horas depois de ter começado no dia anterior.
O anúncio
Veio logo no primeiro dia de debate e pela voz de António Costa: a taxa sobre os lucros excessivos não será aplicada só na energia, também chegará à distribuição que deverá “pagar aqueles lucros que estão a ter injustificadamente por via desta crise da inflação”, disse o primeiro-ministro. A proposta vai ser apresentada de forma paralela ao Orçamento do Estado uma vez que a ideia é que seja aplicada sobre os lucros de 2022.
Governo vai avançar com taxa sobre lucros excessivos para setor da distribuição
A traição
António Costa não esquece o chumbo do Orçamento para 2022 que precipitou as eleições antecipadas, depois de a esquerda ter deixado cair de vez a “geringonça”. Com o PCP o tom ainda é cordial, com Costa a atirar aos comunistas terem escolhido ficar fora das soluções para o país. Mas com o Bloco de Esquerda a acrimónia é significativa, com o primeiro-ministro a irritar-se mesmo no primeiro dia de debate quando José Soeiro disse ser uma “aldrabice” a solução do Governo para as pensões. Com Catarina Martins já tinha sido duro, falando em “cegueira e ódio ao PS” e relembrando como o Bloco “traiu o eleitorado de esquerda” quando votou contra orçamentos do PS. Ao segundo dia, os bloquistas carregaram no tom, Mariana Mortágua chegou a comparar Costa a Sócrates – colando ao primeiro-ministro o registo de “animal feroz” – e Jerónimo de Sousa constatou os “contrastes” entre o PS da geringonça e o da maioria. No final, todos aliviados: PCP e BE têm espaço para ser oposição e António Costa está confortavelmente apoiado por uma maioria absoluta que o deixa livre de entendimentos obrigatórios com a esquerda.
Os mais disponíveis
Parceiros mortos, parceiros postos. Aqui não difere muito do que aconteceu no Orçamento anterior, com Livre e PAN a passarem a ser os preferidos de António Costa, por serem uma arma importante para dar provas da capacidade de diálogo da maioria – coisa que prometeu mostrar ainda na noite eleitoral. Os dois partidos voltaram a abster-se na primeira votação de um OE da maioria socialista e durante o debate as promessas de disponibilidade negocial para a especialidade surgiram de ambos os lados.
Os ausentes
Já mereciam uma espécie de prémio carreira. Nem Pedro Passos Coelho nem José Sócrates estavam no hemiciclo, logicamente, mas foram dois dos nomes mais referidos durante os dois dias do debate, ou não tivesse a dinâmica PS-PSD transformado-se numa acusação permanente sobre quem pratica mais austeridade e quem foi responsável pela sua aplicação em Portugal. Um debate a que a esquerda se junta – acusando o PS de não fazer diferente da direita, de pensar como a direita e de chegar a ir “mais longe do que Passos” – e a direita também – até IL e Chega quiseram que o Governo parasse de falar em Passos e se concentrasse no futuro. Nada feito: até à intervenção final (inclusive), feita pela ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, o Executivo lembraria até à exaustão os cortes nas pensões ou nos subsídios de férias, no tempo da troika, para garantir que uma coisa não tem nada a ver com a outra – e que não deixará de o lembrar porque o Governo “virou a página da austeridade mas não da memória”.
A outra luta
Do lado direito do hemiciclo, desenrolava-se uma batalha silenciosa, que nada tinha a ver com a batalha orçamental. Afinal, este foi o primeiro debate em que João Cotrim Figueiredo participou sabendo-se já que está no papel de líder demissionário da IL, e em que tanto Rui Rocha como Carla Castro (a quem coube fazer o discurso de encerramento pelo partido) participaram sabendo-se já que são candidatos à sucessão. A situação mereceu uma farpa de António Costa – pelo meio de duras críticas ao debate em modo “lamaçal” da IL, disse compreender que Cotrim se queira ir embora e começou até a parodiar com a situação de Liz Truss no Reino Unido. A bancada liberal manifestou-se logo e Costa atirou com sobranceria: “Ah já querem competir com a vozearia do Chega? Ainda têm de crescer muito, ó meninos… Oh pá!”. Tudo enquanto se sucediam, fora do hemiciclo mas à distância de um clique, notícias paralelas sobre a tensão no partido (algures durante o segundo dia de debate, Carla Castro, em declarações à Lusa, acusava Cotrim de condicionar a corrida pela liderança da IL a favor do seu adversário). Os concorrentes aplaudiram os respetivos discursos, mas o ambiente pareceu na bancada sobretudo frio. Ou de guerra fria.
As realidades paralelas
Foi com minutos de diferença que António Costa anunciou a taxa sobre os lucros extraordinários das empresas de distribuição (16h40) e o grupo Jerónimo Martins divulgou ter tido lucros de 419 milhões de euros nos primeiros nove meses do ano, um aumento de quase 30% (às 17h08). A medida deverá ser aprovada no Parlamento após a discussão do Orçamento para 2023.
A notícia de que o Santander Portugal suspendeu a comercialização de crédito à habitação em taxa fixa, na manhã de quinta-feira, também não passou despercebida no Parlamento, com o deputado do Livre, Rui Tavares, a perguntar ao Governo se vai obrigar os bancos a disponibilizar sempre esta taxa.
Santander, que mais do que duplicou lucros, deixa de fazer crédito a taxa fixa
E, enquanto decorria o segundo dia de debate orçamental, Christine Lagarde, a mais de dois mil quilómetros de distância, subia, de novo, as taxas de juro do BCE, em 75 pontos base.
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Uma subida que já tinha sido o mote, no primeiro dia, para Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, atirar ao PSD porque, dizia, estar inserido num grupo parlamentar europeu (PPE) que estava a fazer campanha pela subida. E citou um documento do PPE, que logo o eurodeputado social-democrata Paulo Rangel partilhou no Twitter questionando: “saberão inglês?”, dizendo que o apoio à subida vinha condicionada a pressupostos. No segundo dia, Eurico Brilhante Dias voltou à carga, dizendo que o PSD apoiava os falcões do BCE, para ouvir a resposta de Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar dos social-democratas, perguntar quem nomeou o governador do Banco de Portugal [Mário Centeno], lembrando que foi direto do Ministério das Finanças para o banco central. E deixou a pergunta: “Como votou Mário Centeno?” A resposta ficou por dar.
A surpresa
O Ministério da Economia, quando é questionado sobre a Efacec, remete para o Terreiro do Paço. Mas quando questionado, no debate do Orçamento, sobre o processo de privatização, Fernando Medina ficou calado. Mais sorte teve o PSD quando dirigiu a pergunta a António Costa Silva. E com a intervenção do ministro da Economia, chega a informação. “Aproximamo-nos da fase que temos de tomar decisões. Estamos a recolher todos os elementos e brevemente haverá uma posição pública. É fundamental encontrar uma solução para a empresa”, deixando, ainda assim, uma mensagem de tranquilidade. Com as palavras de Costa Silva, logo o Eco noticiou que a venda aprovada em Conselho de Ministros em fevereiro à DST tinha caído. O Governo não comentou mais o assunto. Não há uma linha sobre a Efacec na proposta de Orçamento do Estado, nacionalizada em 2020. O desfecho é agora novamente incerto.
Importa-se de repetir?
Em tantas horas de debate são inevitáveis os insólitos como aquele momento em que o deputado Carlos Pereira se levanta na bancada do PS para fazer perguntas ao ministro da Economia. Sem surpresa, aproveita o momento para atacar o PSD e a sua proposta de redução transversal do IRC. E no final pergunta ao ministro se ele concorda com esta ideia social-democrata. Ora, o ministro é o mesmo que fez uma polémica declaração a defender a baixa transversal do IRC de que até os seus secretários de Estado discordaram publicamente. O deputado até podia estar distraído, mas António Costa Silva nem por isso e ignorou a pergunta.
“Não há discordância com Fernando Medina. A minha preocupação é a economia”, diz Costa Silva
Palavra proibida
Uma palavra irritou Costa e vinda da bancada que já foi sua parceira, a do Bloco de Esquerda. No primeiro dia de debate, José Soeiro ouvia mais uma vez a explicação de Costa sobre o apoio aos pensionistas e reclamou da bancada bloquista que se tratava de uma “aldrabice”. O primeiro-ministro parou e disse que isso era um insulto, aconselhando o BE a afastar-se da linguagem radical da extrema-direita. Mas o BE voltou a usar a palavra ao repetir que a conta dos 13 anos da sustentabilidade da Segurança Social “é uma aldrabice. O senhor primeiro-ministro não gosta da palavra, mas é o mínimo que se pode dizer sobre uma conta falsificada para impor um corte às pensões futuras! É aldrabice, sim.”
As músicas
No momento em que Jorge Palma assinala os 50 anos de carreira voltou também a “atuar” no debate do Orçamento do Estado. Começou com António Costa no discurso inicial, retomando citações do orçamento para 2022 (chumbado), que foi roubar as palavras a Jorge Palma para dizer que “enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar”. Nem a propósito, o Chega também foi ao repertório de Palma para libertar um “deixa-me rir” e um “eles já estão fartos”. Até que Bruno Dias, do PCP, pediu para se deixar Palma em paz. O alinhamento musical desta discussão de dois dias ainda teve Beatles (Costa e Silva citou “here comes the sun”) e Madredeus (Ana Mendes Godinho citou “haja o que houver”). Leonard Cohen também entrou em cena, citado por Carla Sousa, do PS, no “Anthem” – “Há uma brecha em tudo/É assim que a luz entra”.
A protagonista improvável
Provavelmente ninguém estaria à espera que a “Ana dos Olivais” viesse a dominar as conversas dos corredores do Parlamento no pós primeiro dia de debate do Orçamento. A protagonista improvável é uma desconhecida, lançada para o debate pelo líder da JSD, Alexandre Poço, para criticar a governação de António Costa. Ao traçar um paralelismo temporal entre a vida da Ana, nascida nos Olivais, e o percurso político de Costa — desde que era secretário de Estado (quando a Ana nasceu) ou se tornou ministro (ainda a Ana não comia sopa) até à atualidade —, o objetivo foi exemplificar algumas das dificuldades dos jovens. Hoje, Ana já tem uma licenciatura, um mestrado, mas “provavelmente” ganha o salário mínimo. Tendo em conta a média nacional, só sairá de casa aos 33 anos pelo que optou por emigrar, continuou Poço, que perguntou a Costa o que tinha a dizer a Ana além de um pedido de desculpas. Não ficou sem resposta. O primeiro-ministro elencou os benefícios de que Ana pôde usufruir: do ensino obrigatório às piscinas dos Olivais que Costa reabriu quando estava na Câmara de Lisboa. E rematou com um conselho: “Nunca vote no PSD porque se votar arrisca-se a ter um primeiro-ministro que a convide a emigrar”.
O protesto
Já o Orçamento estava votado na generalidade quando nas galerias se levantou um grupo de pessoas com um cartão amarelo na mão – o cartão que os visitantes recebem quando entram na Assembleia da República, e que têm de devolver à saída, desta vez usado para protestar, presumivelmente, contra o Governo e o documento em causa. E o Chega, em sinal de aprovação, apressou-se a levantar-se para aplaudir. Questionado pelo Observador, o partido negou ter qualquer associação ao grupo mas explicou, ainda assim, os motivos para ter aplaudido o protesto: “Estavam a aplaudir o facto de as pessoas terem a coragem de mostrar um cartão amarelo ao Governo, de lhe dizer que não estão contentes com o rumo do país traçado pelos socialistas”, disse fonte oficial do partido.