No mundo dos negócios, poucas máximas serão mais inquestionáveis do que “money talks”, o inglês para dizer que “o dinheiro fala”. E o dinheiro já falou, nesta quarta-feira, na primeira sessão bolsista desde que foi conhecida a nomeação de Christine Lagarde para suceder a Mario Draghi na presidência do BCE: as bolsas de ações subiram e os juros das obrigações acentuaram a descida que acelerou depois de, em Sintra, Draghi ter aberto a porta a mais estímulos na zona euro.
Os analistas parecem respeitar a experiência da ex-ministra das Finanças de França e diretora-geral do FMI, mas há quem fale num “risco de credibilidade” pelo facto de Lagarde não ter currículo nas ciências económicas – é formada em Direito – e por nunca ter trabalhado num banco central. É esse o receio de Jim Reid, economista do Deutsche Bank.
Juros de Portugal cada vez mais perto de 0%
↓ Mostrar
↑ Esconder
A notícia da nomeação de Christine Lagarde fez acelerar o movimento de descida nas taxas de juro, que já vêm caindo de forma expressiva desde o discurso de Mario Draghi no encontro de bancos centrais em Sintra. As taxas Euribor caíram para novos mínimos históricos, com a taxa a seis meses em -0,335%. Nos mercados de obrigações soberanas, a tendência foi a mesma — e Portugal, já tem toda a dívida pública com prazo até sete anos a ser negociada com rendibilidades implícitas negativas. Na dívida a 10 anos, a taxa baixou quase dez pontos-base e está nos 0,29%.
Ao assumir a presidência do Banco Central Europeu (BCE) Christine Lagarde vai ser colocada ao volante de um todo-o-terreno cuja cabine está cheia de botões e manivelas complexas, capazes de produzir efeitos de primeira, segunda e terceira ordem que não são fáceis de controlar. Na visão de Jim Reid, o problema é que, mesmo tendo tido bilhete de primeira fila para a crise grave que a Europa viveu na última década, Christine Lagarde não só nunca conduziu esse todo o terreno como nem, sequer, se sentou no banco de trás a espreitar como se conduz.
Diz o economista do Deutsche Bank que deverá ser Philip Lane, o irlandês que chegou a ser falado para a presidência mas cujo perfil académico sempre fez dele mais indicado para o cargo de economista-chefe, que nessa qualidade irá assumir a maior parte do “trabalho intelectual e económico”. A contribuição de Christine Lagarde, acredita Jim Reid, será mais importante pelas aptidões políticas do que pelos aspetos técnicos do cargo.
Uma visão semelhante tem Mark Haefele, responsável pelos investimentos do UBS Global Wealth Management, que embora considere Lagarde uma “candidata com qualificações”, reconhece que esta nomeação não é uma notícia que o torne, necessariamente, mais propenso a investir na Europa.
Mas o facto de Lagarde ter ido, em apenas 15 anos, de ministra do comércio externo (e, depois, da agricultura e pescas) em França para presidente do BCE mostra que esta antiga craque na natação sincronizada tem uma capacidade de adaptação invulgar. E, sublinha Holger Schmieding, economista do Berenberg Bank, Christine Lagarde já deu provas acerca da “fibra de que é feita” quando foi ministra das Finanças em França e, também, quando assumiu a direção do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2011, na sequência dos escândalos em torno de Dominique Strauss-Kahn.
Importa saber quem se senta ao topo da mesa?
Ninguém deve subestimar a importância do nome que está na presidência do Banco Central Europeu. Um presidente com outras sensibilidades que não as de Jean-Claude Trichet nunca teria aceitado subir – sim, subir – as taxas de juro duas vezes no início de 2011, mesmo antes de se agudizar a crise da dívida europeia. E, num exemplo ainda mais perfeito, um presidente com outras predisposições que não as de Mario Draghi nunca teria tomado a iniciativa de, em julho de 2012, acrescentar a um discurso oficial um improviso (certamente planeado pelo próprio) que acabou por marcar o início da estabilização – dizer que o BCE iria “fazer o que fosse preciso”, whatever it takes, para preservar a integridade da união monetária.
Mas “embora o presidente do BCE seja importante em tempos de crise, não devemos, também, sobrestimar o seu poder”, defende Holger Schmieding, economista do Berenberg Bank. O economista alemão, que segue o banco central e a economia europeia a partir de Londres, escreve em nota de análise distribuída pelos clientes do banco que “o Conselho do BCE, com 25 membros, é que toma as principais decisões de política monetária, não o presidente”.
Schmieding acrescenta que, de um modo geral, “a influência do líder no resultado do debate entre os 25 membros do Conselho, todos eles indivíduos com grande auto-confiança, poderá ser menos decisiva do que alguns observadores tendem a crer”.
Seja como for, “tendo em conta o seu passado, parece provável que Christine Lagarde irá dar seguimento às políticas de Draghi, o que inclui a prontidão [demonstrada por Draghi] para agir de forma decidida numa crise”, confia o economista do Berenberg Bank.
Holger Schmieding acrescenta que Christine Lagarde é uma pessoa “muito respeitada” na alta finança mundial, “já demonstrou capacidade para formar consensos” em temas e momentos difíceis e, além disso, “expressa-se bem”, o que é, também, um requisito crucial para estas funções, já que metade do trabalho (ou mais) é feito apenas com as pistas orais que se dão aos mercados financeiros.
A expectativa é que, com a nomeação de Lagarde, o economista-chefe Philip Lane assuma, potencialmente, uma proeminência que Peter Praet – que trabalha com Draghi – nunca precisou de assumir. Além disso, há que recordar que o vice-presidente do BCE é o espanhol Luis de Guindos, que apesar de também ter trabalhado na banca de investimento (no Lehman Brothers) sempre teve um perfil muito mais político do que financeiro – nos sete anos anteriores à nomeação para o BCE foi ministro da Economia, Indústria e Competitividade em Espanha.
Por outro lado, com a presidência da Comissão Europeia entregue a uma alemã (nascida em Bruxelas), Ursula von der Leyen, e com a presidência do BCE entregue a uma francesa (Lagarde), é provável que Itália insista na nomeação de um italiano para ocupar o importante cargo de chefe das operações no mercado, atualmente ocupado pelo francês Benoît Cœuré, que também sai no final deste ano.
Em Sintra. A última cartada da “raposa” Draghi
A opção do Conselho Europeu poderia ter ido noutro sentido – basta ver que até recentemente ainda se admitia uma pequena possibilidade de o alemão Jens Weidmann assumir o cargo (o “falcão” do BCE que até suavizou o seu discurso anti-medidas de estímulo no sprint final). Mas, com a escolha de Christine Lagarde, Mario Draghi sai reconfortado na mensagem que transmitiu em Sintra, ao admitir novas descidas dos juros e mais compras de ativos pelo banco central.
O “homem mais perigoso da Europa” fora da corrida ao BCE. Portugal deve deitar foguetes?
Essa mensagem, basicamente, encurralou o BCE no “canto” em que Draghi viveu durante toda a sua regência – e um sucessor teria muitas dificuldades em inverter essa postura em pouco tempo, o que é o mesmo dizer que pelo discurso de Mario Draghi em Sintra e pelas medidas que poderá (ou, mesmo, deverá) anunciar nos próximos meses, o italiano já condicionou a próxima liderança a seguir-lhe as pisadas, sob pena de criar um abalo perigoso nos mercados financeiros, que já se balancearam alegremente para a confirmação de que vem aí mais artilharia.
Se há alguns meses se acreditava que Mario Draghi estava a preparar uma saída com “chave de ouro”, fazendo uma simbólica subida da taxa de juro para enviar a mensagem de que o seu trabalho estava feito e estaria a entregar as chaves do todo-o-terreno em condições de ser transportado para a próxima fase, de normalização da política monetária, hoje isso está completamente fora de hipótese.
Nos últimos meses, a desaceleração da economia europeia, desde o centro até às periferias, e riscos como os de uma “guerra comercial” levaram o BCE a reconhecer que a taxa de inflação não irá, tão cedo, subir para os níveis idealizados pela autoridade monetária. Assim, as expectativas de que Draghi pudesse anunciar uma subida das taxas de juro foram subitamente substituídas por expectativas de que o italiano não terá alternativa a anunciar novas medidas de estímulo, designadamente a redução da taxa dos depósitos para um nível ainda mais negativo do que os -0,40% onde está fixada.
“Mario Draghi já constrangiu o espaço de manobra para o seu sucessor”, defende Holger Schmieding. “Com o seu discurso em Sintra, há duas semanas, Draghi já forçou o Conselho do BCE a ter uma discussão aprofundada sobre todas as contingências possíveis nas três reuniões de política monetária a que Draghi ainda vai presidir, a 25 de julho, 12 de setembro e 24 de outubro”, ou seja, “no dia em que o [ou melhor, a] sucessor assumir o cargo, no dia 1 de novembro, o BCE já terá atuado [reforçando os estímulos], como é nossa expectativa, ou pelo menos terá afiado as ferramentas e preparado a sua reação de uma forma que o novo ‘chefe’ não poderá fazer grande coisa, contra isso, durante algum tempo”.
Esta questão do “condicionamento prévio” por Draghi poderia ser um tema mais preocupante se Lagarde não fosse vista como alguém que, pelo menos para já, tenderá a dar continuidade às políticas de Mario Draghi. Mas, quando Draghi foi acordado pelos primeiros raios de sol na manhã em que discursou em Sintra, o italiano não sabia, acreditamos nós, quem seria o seu sucessor — ou seja, se seria alguém que seria mais ou menos importante condicionar à partida.
No longo prazo, juros baixos comportam “riscos consideráveis”
Empresas, famílias e Estados veem com bons olhos que as taxas de juro vão continuar em níveis historicamente baixos. Mas esse otimismo é comparável à felicidade que sente o doente quando o médico lhe duplica a dose do antibiótico. Por um lado, o médico mostra que está empenhado em tratar o problema (e mostra, também, que acredita que a farmácia tem stock suficiente para aviar a receita) – mas isso significa, também, que a infeção, em vez de melhorar, continua a resistir.
Os economistas do Commerzbank confiam que “um BCE liderado por Lagarde deverá manter o mesmo rumo, uma política expansionista sem quaisquer reservas, o que será bem acolhido pelos mercados financeiros e por muitos observadores internacionais, mas no longo prazo isto vai comportar riscos consideráveis”.
Em declarações ao Observador, Michael Schubert, economista do banco alemão que segue de perto a política do banco central, lembra que “existem vários efeitos colaterais negativos de seguir uma política muito expansionista durante um longo período de tempo”.
Em primeiro lugar, “quando um banco central fornece liquidez ampla isso reduz os incentivos que os bancos têm de proceder a uma consolidação dos seus balanços, na medida em que seria desejável”. O que é que isto significa, na prática? “Aconteceu uma coisa muito semelhante no Japão, nos anos 90, o que levou ao surgimento dos chamados bancos zombie (e empresas zombie)”, recorda Michael Schubert.
No Japão, nos anos 90, “os mutuários (empresas, por exemplo) conseguiam ir rolando os empréstimos porque conseguiam pagar os juros associados, que eram praticamente zero, mas não tinham capacidade para amortizar os capitais em dívida”. Isto acontecia porque os bancos prolongavam os empréstimos em vez de reconhecer imparidades sobre eles — para não colocar pressão adicional sobre os rácios de capital precários que os bancos tinham.
Ou seja, limitava-se o doloroso reconhecimento de perdas nos bancos e a falência de empresas, mas isso apenas mantinha ligadas à máquina empresas que, em circunstâncias normais, seriam consideradas inviáveis. Assim, “conseguiam manter-se à tona de água, com este financiamento barato, mas isso acabou por diminuir o investimento empresarial e por prejudicar a concorrência e evitar que novas empresas entrassem no mercado”.
Empresas “zombie” em Portugal dão emprego a 14,3% da população
De um modo geral, longos períodos de taxas de juro baixas já demonstraram, historicamente, “que uma política monetária expansionista poderá levar a uma alocação errada de recursos”, contribuindo para a formação de “bolhas” em algumas áreas, como no setor imobiliário. Michael Schubert diz que o problema, nestas questões, é que “é sempre difícil definir onde é que terminam os efeitos desejáveis e começam os efeitos indesejáveis”.
“Tendo em conta que um dos objetivos, nesta fase, é evitar que existam efeitos de contágio, esta política pode ser considerada um sucesso quando verificamos que os preços dos ativos [por exemplo, as ações na bolsa] estabilizarem ou começarem a subir. Mas é difícil dizer exatamente quando é que este movimento desejável termina e quando é que já começamos a registar, novamente, a tomada de riscos excessivos”, que, recorde-se, estiveram na base do problema original.
Num mundo de taxas de juro baixas, é inevitável que se criem fenómenos de busca por ativos com rendibilidades mais elevadas, incluindo por parte de investidores naturalmente mais avessos ao risco — um exemplo são as empresas que gerem fundos de pensões ou as seguradoras. Quando os ativos tradicionalmente menos arriscados oferecem taxas de juro mínimas (ou, mesmo, negativas, como é o caso de boa parte da dívida pública europeia), o economista do Commerzbank explica que se criam incentivos para “assumir maiores riscos” nos investimentos que se fazem.