Em 1965, quando tinha apenas 12 anos, Carmen Posadas e os três irmãos mais novos foram informados de que sairiam de Montevideo, no Uruguai, onde tinham nascido, para irem viver para Madrid. Esta foi apenas a primeira etapa de uma longa jornada diplomática do pai, Luis Posadas, que levou ainda a mulher e os filhos a residirem em Moscovo, durante a Guerra Fria e, finalmente, em Londres.
“Hoje Caviar, Amanhã Sardinhas” é uma viagem gastronómica através da qual Carmen e Gervasio Posadas, o mais novo dos quatro irmãos, colocam no papel as receitas e as memórias da mãe, que durante as décadas em que desempenhou o papel de mulher do embaixador se desdobrou para, por vezes com pouco, oferecer pomposas receções, tendo ainda tempo para, pelo meio, organizar os casamentos das filhas. Lançado em 2008, numa altura em que a matriarca da família se encontrava já debilitada, os dois irmãos viram em 2024 o seu livro ser traduzido para português.
Carmen Posadas é escritora, tal como o irmão, tendo já uma vasta obra publicada. Casou-se em Moscovo com apenas 19 anos, foi mãe, e dez anos mais tarde decidiu separar-se, rumar com as filhas a Londres, onde os pais residiam, e dedicar-se à escrita. O ano de 1998 marca aquele que diz ser o ‘antes e depois’ na sua carreira: venceu o Prémio Planeta com a obra “Pequeñas Infamias”. Com o galardão veio também a notoriedade e os seus livros passaram a ser traduzidos em dezenas de línguas. Já Gervasio Posadas é, além de escritor, diretor do “Âmbito Cultural”, a área cultural do El Corte Inglés. Juntos, os irmãos criaram o ateliê de escrita “Yo Quiero Escribir”, uma plataforma online na qual ensinam a alunos com variadas ocupações a arte da escrita.
Qual dos dois se aventurou primeiro na escrita e porquê?
Gervasio Posadas: Foi a Carmen, ela é mais velha que eu e começou primeiro.
Carmen Posadas: Sim, fui eu. Sempre fui bastante calada na minha vida normal e depois descobri esta forma de comunicar com as pessoas. É por isso que escrevo há… nem sei bem. O meu livro mais antigo deve ter uns 45 anos.
“Hoje Caviar, Amanhã Sardinhas” já tem 16 anos (é de 2008) mas só agora foi publicado em português. Porque é que esta tradução foi feita tanto tempo depois do lançamento?
GP: Bem, a verdade é que é um livro que tem sido aquilo a que se chama um non-seller. Por isso, de certa forma, não é que tenha sido um êxito de vendas, mas continua a vender, apesar de já terem passado 16 anos. Há muitas pessoas para as quais este livro significa muito, porque há muita gente que teve de viver noutros países por razões de trabalho. E depois, no final, acho que há muitas pessoas que de alguma forma o recomendaram a amigos portugueses e surgiu a oportunidade de o traduzir para português. As histórias que são contadas são úteis para qualquer pessoa que tenha tido de viver com a sua família no estrangeiro.
Qual foi a maior dificuldade de trabalhar a quatro mãos?
CP: Bem, neste caso foi muito fácil, porque a forma como decidimos abordar o livro ia ser pela voz da nossa mãe e contar todas as experiências do ponto de vista dela. Porque a nossa mãe, a certa altura, queria escrever o seu livro, um livro sobre as suas experiências, concretamente na Rússia, e nunca chegou a fazê-lo. Os anos passaram, na altura ela estava doente e decidimos fazer-lhe uma homenagem escrevendo o livro que ela nunca escreveu.
A Carmen começou por escrever livros para crianças. Porquê?
CP: Comecei a escrever para crianças porque pensei que era mais fácil, o que é mentira. Escrever para crianças é muito difícil! Mas eu não sabia disso na altura e foi bom para mim, porque recebi logo um prémio com o segundo livro que publiquei, um prémio nacional de literatura infantil. Isso deu-me muito ânimo, mas nunca fui para a universidade e por isso não me sentia qualificada para escrever romances. Sempre tive um pouco de complexos sobre como ia escrever um romance. E depois escrevi vinte mil coisas antes de o começar! Mas finalmente fi-lo e não correu mal.
Disse numa entrevista que começou por escrever com um pseudónimo, porque tinha vergonha. O que é que mudou?
CP: Sim, é verdade que tinha vergonha. Depois da literatura infantil escrevi alguns livros que tiveram muito sucesso, que eram livros sociológicos. Escrevi um que se chama ‘Manual del Perfecto Arribista’ e, portanto, com essa desculpa já estava a fazer um retrato de diferentes estratos da sociedade. Da classe alta, da movida, que era importante na altura, do jet set, etc. Foi um livro que teve muito sucesso mas, de certa forma, arruinou a minha reputação, porque era um tipo de livro muito frívolo. Mais tarde, um editor sugeriu que eu escrevesse um romance e eu perguntei se ele queria arruinar a minha reputação. Ele disse que não e sugeriu que eu podia fazê-lo sob um pseudónimo. Pareceu-me uma oportunidade muito boa para escrever um livro de romance sem a responsabilidade de ter de o assinar.
Considera que hoje ainda é assim, que há determinado tipo de livros que arruínam a reputação do autor?
CP: Bem, hoje em dia o mundo é mais aberto e pode-se escrever qualquer tipo de livro, mas antigamente, se se quisesse ser um escritor sério, não se podia escrever certos livros. Agora as coisas mudaram.
Em 1998 venceu o Prémio Planeta. O que é que mudou para si nessa altura?
Há como que um antes e um depois na minha vida com o Prémio Planeta. Antes disso as minhas obras estavam traduzidas em três ou quatro línguas. Agora estou traduzida em trinta e devo isso, em grande parte, ao prémio, que foi um grande salto na minha carreira. A partir desse momento levaram muito mais a sério todos os livros que tinha escrito. De certa forma aceitaram-nos e começaram a levar-me como uma autora séria.
Escreveu o livro “La Hija de Cayetana”, duquesa de Alba, que morreu em 1802. A realeza é um tema que lhe desperta interesse?
CP: Eu interesso-me por tudo. Sou uma pessoa extremamente curiosa e tudo me diverte. E talvez por ser uruguaia, para mim [a realeza] é algo muito estrangeiro. Sempre a vi como algo medieval, uma coisa de princesas e dragões e coisas assim. Por isso, sinto-me sempre muito atraída, até pelo fascínio que a realeza cria.
Gostava de escrever sobre alguém em particular? Há alguém que a fascina a ponto de querer escrever uma biografia sobre ela?
CP: Não sei, eu vou escrevendo livro a livro. Não sei o que vou escrever a seguir. Agora tenho um livro que vai sair para a semana em Espanha e que é uma comédia ligeira. Chama-se “El Misterioso Caso del Impostor del Titanic” e é como uma homenagem aos romances de Agatha Christie ou Arthur Conan Doyle. E depois, bem, vou livro a livro. Mas quero escrever algo ligeiro. É que eu cultivo muito uma ideia que foi roubada a Oscar Wilde e que diz que a melhor maneira de falar de coisas sérias é fazê-lo em tom de brincadeira.
Há alguma figura portuguesa que lhe desperte interesse, sobre a qual talvez lhe interessasse escrever?
Gosto do Presidente, Marcelo Rebelo do Sousa. É um homem fascinante. A forma como lidera sem parecer liderar, é muito habilidoso, é exatamente o tipo de político que seria necessário em todo o lado pela forma como lida com as situações. Parece que se mantém à margem de tudo, mas na verdade lidera, faz de árbitro, parece que controla a política de fora, mas é uma peça fundamental.
O vosso livro que é agora traduzido para português, “Hoje Caviar, Amanhã Sardinhas” começou por ter outro título?
GP: Não. O que acontece é que originalmente a nossa mãe tencionava escrever um livro sobre o que nos tinha acontecido quando estávamos a viver na Rússia e tencionava chamar-lhe “Pajalsta”, que significa “por favor” em russo, mas nunca chegou a escrevê-lo, porque estava sempre a deixá-lo para depois. Este livro é realmente um pouco um projeto que ela não levou a cabo, mas não lhe chamámos “Pajalsta” e sim “Hoy Caviar, Mañana Sardinas”, porque não só reflete a etapa em que estivemos na Rússia, mas também incluímos o que de alguma forma vivemos em Espanha, no tempo de Franco, e em Londres.
Das receitas que incluíram no livro qual é a vossa preferida?
CP: O Gervasio é que é o cozinheiro da família!
GP: Sim, eu gosto mais de cozinhar. Mais do que pelo sabor da receita, pelas recordações que nos traz é o “pastel de falsa lagosta”. A nossa mãe dedicou-se à culinária para, de alguma forma, estabelecer relações com a sociedade de cada país. Por isso tentava sempre deslumbrá-los de alguma forma e, para isso, uma vez que o Uruguai é um país pequeno e com um orçamento limitado, ela fazia pratos que eram muito impressionantes, mas também que não eram muito caros. O “pastel de falsa lagosta” não tem lagosta [é feito com tamboril], mas a minha mãe decorou-o e pôs-lhe uma concha de uma lagosta que tinha comprado no Harrods. Decorou-o muito para que parecesse algo impressionante mas na verdade era algo que custou muito pouco.
Carmen, no seu primeiro casamento, que aconteceu em Moscovo, foi servido strogonoff de urso…
CP: Hoje seria muito politicamente incorreto. Acho que punham a minha mãe na cadeia por isso! O que aconteceu é que na Rússia, naquela altura, quando se ia ao mercado não havia todo o tipo de produtos. Um dia só havia pepinos, no outro só havia repolhos… Quando me casei havia um ‘superavit’ de carne de urso e então a minha mãe disse: “Bem, vou fazer um strogonoff de urso e isto vai ficar ótimo”. Cozinhou-o com arroz e com outras coisas e depois fez toda uma apresentação com uma cabeça de urso que tinha pedido emprestada Teatro Bolshoi. Foi tudo muito politicamente incorreto!
O facto de terem viajado tanto e desde tão pequenos impactou a forma como escrevem?
GP: Penso que no geral todos os escritores são filhos das suas experiências e do que viveram especialmente na sua infância. Por isso, quando se viveram coisas muito diferentes em países diferentes tem-se uma visão mais ampla das coisas e mais internacional.
CP: Eu acho que é verdade o que o Gervásio diz. Quando não viajamos pensamos que a torre da nossa aldeia é o edifício mais extraordinário do mundo e que as lentilhas da nossa mãe são as melhores. Não têm nada com que comparar. No entanto, quando viajas, apercebes-te de que há tantas coisas extraordinárias, há pratos extraordinários, tens uma visão muito mais ampla e isso para um escritor não tem preço.
Viveram em Madrid, em Moscovo e em Londres por causa do trabalho do vosso pai. De qual das cidades gostaram mais?
GP: Acho que posso falar pelos dois e dizer que gostámos muito de Madrid, de tal forma que ainda lá vivemos hoje. Por outro lado, a Rússia foi muito especial porque nos aconteceram coisas que não acontecem em mais lado nenhum. Estávamos a viver no tempo da Guerra Fria, éramos vigiados pela polícia, havia microfones em todo o lado dentro da nossa casa. Era como viver num filme de espionagem. Se levássemos aquilo com sentido de humor era muito engraçado.
Ambos têm filhos. Consideram que é uma vantagem passarem a infância e a adolescência em sítios diferentes em vez de crescerem sempre no mesmo lugar?
GP: Tem partes muito boas, mas gostava que a minha filha viajasse menos do que nós. Os filhos dos diplomatas viajam com muita frequência e isso faz com que não se criem raízes em lado nenhum. Sobretudo nessa idade em que se quer ter um grupo de amigos é muito difícil. É importante viajarem e conhecerem outros países, mas se calhar não tanto como aconteceu connosco.
Carmen, disse em entrevista ao Levante, em 2023, que “hoje em dia, o que um influenciador digital diz é mais popular do que o que diz um vencedor do Prémio Nobel”. Como é que se chegou aqui?
CP: Bem, isso tem muito a ver com as redes sociais, porque ali tudo é quantificado através de ‘gostos’. Então, qualquer imbecilidade que alguém diga torna-se numa espécie de dogma e chegou-se ao paradoxo de que é mais importante o que um influenciador diz do que aquilo que diz um laureado com o Prémio Nobel. Isto, porque um vencedor de um Prémio Nobel talvez fale numa sala reduzida, em frente a um pequeno número de pessoas, enquanto o influenciador publica no seu Instagram ou no seu Facebook e é lido por milhões de pessoas. Como algumas não têm muita educação, acham extraordinário o que aquele influenciador fez e torna-se numa espécie de dogma. É ridículo, mas é assim.
O que é que se pode fazer para mudar essa realidade?
CP: Bem, penso que é um pouco complicado. Todos estes tipos de desvios e excessos acabarão por ser corrigidos com o tempo mas, de momento, acho que tudo vai piorar antes de melhorar.
Recentemente escreveu na sua coluna no XL Semanal que o príncipe Harry e Meghan Markle são os seus “tolos favoritos”. O que pensa sobre aquele que é provavelmente o casal mais mediático da família real britânica?
CP: Sim, são realmente os meus idiotas favoritos e tenho uma verdadeira fixação por eles. Por exemplo, a Catherine [princesa de Gales] parece-me uma pessoa muito mais inteligente, muito mais razoável, muito melhor em todos os sentidos, mas não estou tão interessada em ler coisas sobre ela como sobre estes cretinos! Sempre que há uma notícia sobre eles… eu devoro as notícias desses dois, não consigo evitar. Acho que esse tipo de personagem ridícula no fim de contas tem muita popularidade, porque as pessoas estão mais interessadas no que eles fazem do que no que faz alguém mais sério e com mais cérebro.
O príncipe Harry publicou em 2023 um livro (“Na Sombra”), onde falou sobre muitos detalhes privados da família, e em conjunto com a mulher lançaram uma série na Netflix onde também falam dos Windsor. Que danos é que este casal ainda pode provocar na imagem da realeza britânica?
CP: À família não me parece que lhes faça muito mal, porque quando se tornaram personagens patéticas e que mostraram que o são… Estão a querer brincar ao “pobre menino rico traumatizado”, mas claro, quando tens milhões na conta, o teu nome é Harry Windsor e convives com as pessoas mais importantes do mundo… Não me venham com conversas, que eu simplesmente não acredito.
Têm um ateliê chamado “Yo Quiero Escribir”. Como nasceu esta ideia e há quanto tempo funciona?
CP: Foi uma ideia do Gervasio. Ele propôs-ma há 15 anos.
GP: Nasceu porque a Carmen me tinha dito que havia muita gente que, quando ia a uma apresentação dela, dizia gostava de escrever. E eu por outro lado também escrevia e estava envolvido em temas de projetos educativos e então surgiu a ideia de combinar as duas coisas.
E quem são as pessoas que procuram este ateliê?
CP: É um curso online e por isso já tivemos pessoas de sítios variados como a Austrália, os Estados Unidos, Colômbia, México, de todo o lado, mas tivemos dois alunos bastante curiosos. Um era da ETA e estava na prisão, portanto era um terrorista. E também tivemos um cardeal, que vivia no Vaticano. É muito transversal, há de tudo, desde guardas-noturnos a taxistas, pessoas que têm experiências interessantes e as querem contar, outros são CEO’s…
GP: Já tivemos pessoas muito jovens e pessoas com 80 anos, mas é verdade que as pessoas começam a querer escrever a partir dos 40, 45 anos. Penso que [escrever] é um projeto que de alguma forma se vai formando na cabeça das pessoas, mas leva algum tempo a conseguir encontrar as ferramentas para poder escrever.
CP: E depois durante a pandemia houve muita gente que se inscreveu, primeiro porque nessa altura havia mais tempo para tudo, mas também houve e ainda há muitas pessoas que talvez não queiram ser escritores, mas querem deixar à família, aos filhos, aos netos, um testemunho de como foi a sua vida.
Já têm alunos com obra publicada?
Sim, temos bastantes alunos que já publicaram os seus trabalhos e em várias áreas, desde livros infantis a romances.
Há algum tema sobre o qual queiram muito escrever, mas ainda não o tenham feito?
GP: Estou realmente um pouco como a Carmen, que normalmente está sempre concentrada no próximo livro, mas não a pensar tanto no que me falta. Penso apenas no próximo, vou livro a livro.
CP: Agora também estou muito entusiasmada, porque há romances meus que estão a ser transformados em filmes e depois tenho o livro ‘Invitation a un Asesinato’ que foi adaptado e lançado na Netflix no ano passado.
A Carmen tem uma coluna no XL Semanal. Nunca pensou em ser jornalista?
CP: Eu gosto do que faço lá, porque de alguma forma vou dar a minha visão do mundo, mas não acho que seria boa, por exemplo, para fazer entrevistas ou para ser comentadora política. Já me pediram muitas vezes para o ser, porque em Espanha há muitas tertúlias, todas as televisões e rádios têm tertúlias. Já me chamaram para coisas de todos os tipos, desde política a temas do cor-de-rosa também. Não gosto nada desse tipo de revistas. Divirto-me a ver esses temas na televisão, mas não os queria comentar.