Texto e fotografias dos enviados do Observador à Ucrânia, Carlos Diogo Santos e João Porfírio
As sirenes que acordaram António Guterres, pouco passava das 7h da manhã em Kiev, não avisaram ninguém para o que aconteceria logo após a conferência de imprensa do final da tarde, que se seguiu à reunião com o presidente ucraniano. Foi poucos minutos depois de Zelensky ter dito que Guterres já tinha visto o que os russos fizeram aos ucranianos, que o secretário-geral das Nações Unidas pôde sentir duas explosões a poucos quilómetros de distância do sítio onde estava (os mísseis atingiram uma fábrica de material militar e um prédio residencial, fazendo um morto e cerca de uma dezena de feridos).
Às 19h24, no interior da residência oficial do presidente da Ucrânia, na Rua Bankova, António Guterres entrou com o anfitrião numa pequena sala, restrita a pouco mais de quatro dezenas de jornalistas de todo o mundo, e ouviu um pedido — que ajudasse “a parar a deportação de cidadãos ucranianos para a Rússia”. Os dados apresentados apontam para que 500 mil pessoas terão sido já levadas à força.
E se ali, em frente às câmaras, numa sala de tetos muito trabalhados e chão de madeira, as referência aos temas mais importantes, como a criação de um corredor em Mariupol para retirar civis da Azovstal — a fábrica de aço onde continuam refugiadas —, foram rápidas, longe dos holofotes tudo terá sido debatido com mais pormenor, demorando mais do que o previsto — a reunião entre ambos derrapou uma hora.
Os jornalistas já aguardavam por Guterres desde as 16h15, hora a que acabou uma outra conferência de imprensa — a de Zelensky e do primeiro-ministro da Bulgária. Ali só se pode entrar quando começa a primeira conferência, mesmo que o objetivo seja assistir à última do dia. Na sala cumprem-se, aliás, todas as regras do edifício mais seguro da Ucrânia: não há telemóveis, não há smartwatches, nem sequer qualquer ligação à internet. Mas havia uma toalhita desinfetante da TAP em cima de um dos púlpitos que estavam encostados à parede e uma fonte de água para contrariar o calor que se sentia dentro de uma sala pequena para o número de pessoas e de câmaras de televisão — mais de uma dezena.
Duas horas antes de o secretário-geral da ONU entrar, estavam já a ser retiradas as bandeiras da Bulgária e a fazer-se a substituição por duas das Nações Unidas — faltou uma terceira, que só viria a ser colocada uma hora mais tarde. Mas havia tempo.
Ucrânia é o “epicentro de uma dor imensa”
Quando chegou a sua vez de falar, Guterres referiu-se ao país com “o epicentro de uma dor imensa” e voltou a frisar tudo o que viu esta manhã no Oblast de Kiev, em Borodianka, Bucha e Irpin: “Uma destruição e violação do estado de Direito” levadas a cabo pelas forças russas.“É absolutamente essencial que Tribunal Penal Internacional faça o seu trabalho no sentido de haver uma real responsabilização” pelos crimes cometidos na Ucrânia, instou.
Mas o secretário-geral da ONU disse mais — e quis sublinhar que essa parte já tinha dito em Moscovo, quando se encontrou frente-a-frente com Vladimir Putin: a invasão por parte da Rússia é uma “violação da integridade territorial e da Carta das Nações Unidas”. “Neste momento estamos no nível zero do respeito pela Carta das Nações Unidas”, lamentou.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre a visita de António Guterres a Kiev.
Sobre os corredores para Mariupol, disse que “os trabalhos continuam” e que existem “intensas discussões”, dada a natureza “extremamente complicada” da operação. Isto, porque os civis “vão ter de atravessar uma das linhas de confronto que neste momento existem”.
Para o presidente ucraniano, porém, o mais importante neste momento é exatamente “ver o que se pode fazer e o que a ONU pode fazer para desbloquear a Azovstal e salvar as pessoas”, referindo que o país está pronto a “encetar negociações de imediato para garantir que há esta saída destes civis”. Zelensky revelou ainda que foi dedicado muito tempo a discutir a questão, mantendo confiança de que “o Secretário-Geral e todos serão bem sucedidos na missão de conseguir que as pessoas saiam vivas”.
Trabalho não põe fim à guerra, mas “ninguém desistirá”
O trabalho que está a ser feito é importante, mas não acaba com o que está na sua origem, a guerra. “Todo este trabalho é essencial mas não resolve as causas de base do problema, que é a própria guerra”, reconheceu António Guterres, que também abordou outras consequências, como a crise alimentar.
E acrescentou: “Esta guerra tem de terminar. A paz tem de ser estabelecida de acordo com a Carta das Nações Unidas e da lei internacional”. “Não desistiremos!”, disse ao lado de Volodymyr Zelensky.
Mas o português também admitiu que “o Conselho de Segurança da ONU falhou ao não fazer tudo o que podia para evitar e por um fim a esta guerra”. O que considera gerador de “uma grande decepção, frustração e raiva” — isto apesar do trabalho incansável dos homens e mulheres da ONU estão a levar a cabo para ajudar as pessoas na Ucrânia.
A pergunta que tirou Guterres do sério
Na sessão com presença dos jornalistas, os meios internacionais presentes só tinham direito a fazer uma pergunta, que acordaram ser sobre quais as garantias concretas de segurança que Kiev está a exigir à Federação russa. E foi no momento em que essa pergunta foi feita, por uma jornalista de um meio suíço, que Guterres não aguentou e respondeu com muita firmeza.
“Minha senhora, o que é que a senhora pretende?! Quer que as pessoas sejam salvas ou quer que eu diga alguma coisa que possa ser um obstáculo a salvar essas pessoas? O que lhe posso dizer é que estamos a fazer tudo, absolutamente tudo, o que é possível para que isso aconteça mas não vou entrar em qualquer tipo de comentário ou discussão que possa por em causa aquilo que são as negociações com a Federação russa!”
Todo o esquema de segurança da fortaleza da Rua Bankova está pensada ao pormenor
Foi também já nesta fase que Zelensky foi questionado sobre notícias que dão conta de um referendo em Kherson relativo à independência da região. Em resposta, o presidente ucraniano foi taxativo: “A Ucrânia nunca vai reconhecê-los e o mundo civilizado também nunca vai reconhecer estes referendos. Acho que à força não se pode e não se consegue juntar um outro território à Rússia”.
O complexo esquema de segurança da rua Bankova
Foi já depois de respondidas as perguntas — e de saírem Zelensky, Guterres e as respetivas comitivas –, que os jornalistas puderam começar a sair da sala para ir buscar os telemóveis e outros dispositivos que tinham ficado à entrada, numa mesa ao lado do pórtico de raio-X e no meio de vários sacos de areia empilhados. O percurso foi o contrário ao da entrada, mas com a saída pela escadaria que Zelensky usa normalmente para receber os convidados (na entrada foi usada uma porta lateral).
Todo o esquema de segurança da fortaleza da Rua Bankova está pensado ao pormenor: os jornalistas só podem entrar se estiverem na lista restrita, antes têm de esperar até estarem todos presentes uns metros antes do musculado checkpoint que marca o início da área da residência oficial, que fica a cerca de 450 metros da entrada.
Depois dessas barreiras de cimento, metal e sacos de areia na estrada (assim como de arame farpado, que não deixam ninguém entrar a pé pelo passeio) e com militares fortemente armados, há um bairro deserto de pessoas e de carros civis, um bairro de prédios de habitação, onde fica o edifício de onde Zelensky nunca saiu.
Guterres já tivera tempo de sair do complexo da rua Bankova quando as duas explosões se sentiram nas proximidades, fazendo pelo menos 10 feridos e um morto. E não demoraria a reagir: “Creio que o que é importante não é que o secretário-geral [da ONU] esteja ou não na capital. O que é importante é que houve” um ataque, disse à RTP. “Isso chocou-me, porque Kiev é uma cidade sagrada quer para os ucranianos quer para os russos”, com uma “beleza extraordinária, uma importância histórica”.
Já Volodymyr Zelensky preferiu dar conta de que o que aconteceu na tarde desta quinta-feira diz “muito sobre a atitude da Rússia para com instituições internacionais” e ainda sobre o esforço “da liderança russa para humilhar a ONU”.