É difícil imaginar António de Oliveira Salazar sentado na Sala Rank, do Cinema São Jorge, usada durante o Estado Novo para executar a censura no cinema, a ver The Plague of The Zombies (John Gilling, 1966), filme-crítica ao colonialismo que mistura mortos-vivos e uma pequena aldeia na Cornualha. É difícil porque o ditador português não só não era um amante da sétima arte por ser demasiado cara, mas porque havia quem fizesse esse trabalho por ele. Em 1944, nascia o Secretariado Nacional de Informação (SNI), que controlava os serviços de censura do regime. Censores, homens e (poucas) mulheres, controlavam, cortavam e proibiam os filmes que iriam ser distribuídos em Portugal para manter os valores morais e os bons costumes exigidos por quem governava. Dos 4866 filmes submetidos ao SNI, 3954 foram alvos de cortes, 641 foram proibidos e 271 estrearam sem cortes. Curiosamente, havia um género que batia em quase todos os pontos ditos perversos (nudez, violência, sexo, bruxaria, apelo à guerra ou à paz): o terror.
[trailer oficial do filme “The Plague of The Zombies”, de John Gilling:]
De 10 a 16 deste mês (ou seja, a partir de terça-feira), a 18.ª edição do Motelx vai mostrar 5 desses filmes malditos no ciclo A Bem da Nação, estando reservada uma sessão surpresa: Rillington Place (Richard Feiscsher, 1971), Valerie and Her Week of Wonders (Jarmoil Jires, 1970), The Demon (Brunello Rondi, 1963), The Plague of The Zombies (John Gilling, 1966) são os títulos já conhecidos. Em 30 anos, de 1940 a 1970, numa era dominada pelas estrelas da revista à portuguesa ou de obras como o Leão da Estrela (1947), um total de 30 filmes de terror foram ao lápis azul, sendo que 16 foram proibidos e apenas Dracula Has Risen from the Grave (1968), de Freddie Francis, foi parar às salas tal e qual a cópia tinha chegado a território nacional. Interessava mostrar ao povo cinefilia de exaltação patriótica, que não questionasse a autoridade. E o terror, onde ficava? É isso que este ciclo quer mostrar.
Nos escritórios do Motelx, no Martim Moniz, em Lisboa, os diretores Pedro Souto e João Monteiro, quando questionados pelo Observador sobre o porquê da censura aos filmes de terror, respondem com a ideia de que tudo o que perturbava a norma era proibido: “Não encontrámos bem uma explicação, até porque há poucos estudos sobre a censura em geral. Sabe-se, no entanto, que os filmes de terror eram indesejados também pelos distribuidores por causa do seu lado blasfemo, que ia contra um país certinho, de bons costumes, como era Portugal, criando perturbações no espírito das pessoas”, alega João Monteiro, sugerindo que a censura não era só do regime. Chegava ao plano comercial, mas também social. Até as mulheres dos censores, depois de uma sessão mais, diga-se, apimentada (nudez, ainda que parcial, era dos principais alertas para as visões mais conservadoras da altura), pediam ao SNI para cortar ou proibir determinado cinema, como explicaram os investigadores que o Observador consultou.
O cuidado com a província, horas de cortes e o modo de operar da censura
A preocupação da censura ia desde o centro lisboeta às zonas rurais do país, passando pelas antigas colónias. Tudo o que fosse contra o eixo família—igreja não podia chegar aos olhos dos portugueses. Ou só podia chegar de determinada maneira. Ainda assim, havia também preocupação económica porque, tal como tantas outras artes, o cinema era também um negócio. Estávamos longe do dia 1 de novembro de 1974, dia em que se estreou, em Lisboa, O Exorcista, de William Friedkin, icónico realizador da Nova Hollywood. Nessa altura, o mundo já estava mais do que aberto para “comportamentos desviantes” (sexo e drogas, por exemplo).
Antes dessa estreia, contudo, um outro filme tinha sido proibido em Portugal e vai agora estar em exibição no ciclo A Bem da Nação, no Motelx: The Demon (1963, de Brunello Rondi) conta a história de Purificação, uma rapariga do povo que dizia estar possuída pelo demónio. Segundo os diretores do festival lisboeta, The Demon foi censurado pelo “risco” de ser exibido nas províncias portuguesas devido ao seu carácter profano e sexualidade latente. “Foi hilariante, mas ao mesmo tempo assustador, percebermos que o paternalismo com a província estava no cinema e que depois contagiava os distribuidores que se auto-censuravam. O filme surpresa que vamos exibir, por exemplo, teve direito a uma carta endereçada ao SNI onde se dizia que era doentio. Era bizarra a forma de tratar estas obras de arte, mas também a população”, diz Pedro Souto.
[trailer oficial do filme “The Demon” de Brunello Rondi:]
Apesar de funcionar de acordo com critérios peculiares definidos a partir de 1927, a censura tinha um método aplicado tanto ao cinema como também ao teatro, por exemplo. Manuel Mozos é um rosto bem conhecido do cinema português, como realizador, montador, argumentista e assistente de realização de outros cineastas. Mas é também uma cara conhecida da Cinemateca, onde trabalha no ANIM, na área da identificação, preservação e restauro de cópias em película. Apesar de não ter participado no ciclo de terror censurado do Motelx, sabe muito sobre o que aconteceu durante o Estado Novo, depois de consultar vários processos e relatórios na Torre do Tombo sobre filmes portugueses proibidos. A Comissão de Censura aos Espetáculos foi criada em 1945, sendo que já existia censura aos filmes desde os anos 20. Funcionava mais ou menos assim: dois vogais da comissão de censura assistiam a uma obra, discutiam os possíveis critérios, que, em certos casos, foram-se tornando mais duros, para então decidirem proibir uma obra ou cortar determinada cena numa reunião semanal posterior. Caso a dúvida se instalasse nos censores, era preciso novo visionamento por outros vogais até se chegar a uma decisão.
Este grupo de homens e poucas mulheres tinha de “pensar pela própria cabeça” para que os portugueses não o fizessem. “Não eram ignorantes, embora fossem obtusos. Havia poucos militares, ao contrário do que acontecia na censura à imprensa. No início dos anos 70, por exemplo, alguns filmes começaram a passar em salas-ensaio, como o Estúdio 444 ou o Cinema Satélite, onde elites mais informadas tinha oportunidade de ver aquilo que o povo não tinha autorização para sequer espreitar”, alega ao Observador Leonor Areal, investigadora com doutoramento em Ciências da Comunicação com especialização em cinema pela Universidade Nova de Lisboa. Bate certo com o que Manuel Mozos contou ao Observador, sobre determinadas salas na capital portuguesa onde se mostravam versões completas dos filmes. “O Monumental, por exemplo, tinha essa sala satélite para um público mais intelectual que o regime achava já estar corrompido. Uma cidade, duas versões do mesmo filme”, conta.
Neste momento, segundo Manuel Mozos, existem quase quatro horas de material português censurado que vai vendo a luz do dia — como Catembe, de Faria de Almeida, que, com um total de onze minutos apagados, é o filme com mais cortes feitos durante a ditadura. Outros nunca serão vistos, perderam-se no tempo. Graças ao Plano de Recuperação e Resiliência, vai ser possível digitalizar um máximo de mil filmes até 2026, como foram os que passaram pelo projecto FILMar de que Catembe fez parte, será possível resgatar o cinema nacional e preservá-lo. “A censura era generalizada, também todos filmes estrangeiros passavam por esse processo. A moral estava impregnada”, conta Manuel Mozos. Os critérios eram vastos: questões morais, decotes ousados, glorificação do crime, casas de prostituição, tortura a seres humanos e animais, duração de um beijo, cenas íntimas e, a partir dos anos 60, a guerra do Ultramar. Para se ter uma ideia de quão inabordável era o tema no cinema em Portugal, o regime aprovou apenas um filme português explícito sobre o tema da guerra em África: 29 Irmãos (1965), de Augusto Fraga.
A partir de 1952, foi institucionalizada a faixa etária. Através de letras, classificavam-se os filmes para maiores de 14 ou maiores de 18. Verificou-se assim uma maior abertura para determinadas cenas de violência. Só que essa limitação do potencial comercial, segundo Paulo Cunha, professor auxiliar do Departamento de Artes da Universidade da Beira Interior onde dirige a licenciatura de Cinema, “reduzia substancialmente o público-alvo dos filmes, o que desencorajava as distribuidoras a importar certos géneros, como o terror”. Mais uma vez: também na distribuição se desencorajava a exploração e a exibição deste tipo de cinema. Só com a saída de Salazar e a entrada de Marcelo Caetano é que se denotou uma suavização da censura. Em 1969, por exemplo, estreava A Semente do Diabo (1968, Roman Polanski), logo nos primeiros dias da chamada Primavera Marcelista.
A censura criou ainda outro problema: se ninguém conhecia os filmes, como se podia desenhar a história do terror nacional? Tal como os diretores do Motelx, também Paulo Cunha denota a falta de especialização na investigação de géneros como o terror, o fantástico ou a ficção científica nesse período em Portugal, o que explica a ausência do tema em discussões sobre cinema português. Graças a Lauro António, realizador e crítico de cinema, pioneiro na investigação desta área com o livro Cinema e Censura em Portugal (1978), começou a ser possível descobrir os meandros deste sistema, mas só a partir dos anos 90 é que a Academia se começou realmente a interessar pelo cinema. Portanto, uma indústria precária, censurada, com pouco investimento, muitas vezes ao serviço do regime, impediu o crescimento do género de terror. “Não podemos considerar o terror como género maldito em relação a outros, tratava-se sobretudo de falta de recursos para diversificar o setor. A partir da década de 50, primeiro com as influências neo-realistas e depois com as novas vagas, assistimos à produção de outro tipo de cinema”, conta o investigador.
A pequena abertura durante a Primavera Marcelista: “Tudo o que tinha a ver com racismo era cortado”
Manuel Mozos recorda Monsieur Verdoux (1947), de Charlie Chaplin, autor que certos censores consideravam “um génio” e que nesta comédia negra interpreta um serial killer de mulheres. Ou seja, o problema não estava no género em si, antes nas supostas provocações aos bons costumes que podia conter, diz-nos. “Senhoras de biquíni, oficiais de patentes menores a discutir com superiores, violência, crenças, anti-religião, sangue, filmes da União Soviética, filmes indianos depois da independência do país em 1947, tudo o que perturbasse o espectador. Imensos filmes de terror foram censurados.”
Mesmo não se sabendo se Salazar tinha particular oposição face ao terror para explicar a falta de distribuição e exibição deste género, a verdade é que houve decisões da Comissão de censura que foram alteradas pelo critério do então presidente do Conselho e pela opinião de pessoas da sua esfera de influência. “Em fevereiro de 1952, surgiu nos jornais uma polémica sobre a classificação dos filmes para jovens, que se tinha tornado mais restritiva. Um dos intervenientes foi o embaixador de Portugal em Madrid, Carneiro Pacheco, ex-ministro da Educação do regime”, afirma Leonor Areal. Pessoas com perspicácia para entender cultura e, no fim, a proibir ou cortar.
Quando saltamos para o período em que Marcelo Caetano governou o país, percebemos algo que não acontecia nos anos anteriores: entre 1940 e 1970, tal como referido, apenas 23 filmes de terror foram enviados à censura, mas nenhum era norte-americano. Vinham sobretudo de Itália e do Reino Unido, como os criados pela influente produtora britânica Hammer Films responsável por trazer à grande tela, ao vivo e a cores, personagens clássicas do género, dos anos 50 aos anos 70, como Drácula, Frankestein ou a Múmia.
Durante a Primavera Marcelista, o cenário muda ligeiramente de figura. Ana Bela Morais, investigadora e professora na área de estudos artísticos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que foi investigar a censura ao erotismo e violência no cinema em Portugal entre 1968 e 1974, consultou centenas de processos da Torre do Tombo. Quando o Observador a contactou, ficou difícil parar a curiosidade dos filmes cortados ou censurados nas várias pastas que guarda da sua investigação. É aí que se começam a encontrar filmes do outro lado do Atlântico. “Em muitos filmes de terror a censura não era aplicada ao terror em si, antes porque existiam, por exemplo, mulheres nuas ou insinuações sexuais”, conta.
Apesar da abertura, no entanto, a guerra ou os apelos à paz no cinema eram barrados. Filmes contra Adolf Hitler? Corta ou seguia borda fora, como aconteceu com o filme Acontecerá de novo?, realizado por Dwain Esper, de 1948, três anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Filmes com símbolos comunistas? Nem pensar. Filmes sobre desigualdades políticas que colocavam em causa a ordem e a estabilidade do Estado Novo? Pior ainda. “Tudo o que tinha a ver com racismo ou tudo o que tinha a ver com guerra, fazendo lembrar a questão colonial, era vítima de censura”, diz Ana Bela Morais. Perceber a justificação dos censores através do que está escrito nos relatórios pode ser um processo tanto divertido como tenebroso. E perceber que mesmo nos anos de Marcelo Caetano, a censura nunca deu descanso aos cineastas. Fosse pelas mesmas razões de anos anteriores, fosse pelas questões coloniais. Voltando ao terror, por exemplo, no filme A Face da Corrupção (1968), de Robert Hartford-Davis, classificado como sendo para adultos, pediu-se um corte para “reduzir a cena de intervenção cirúrgica, outro para a supressão de seios, da decapitação e redução de gemidos”.
[trailer oficial da “A Face da Corrupção”, de Robert Hartford-Davis:]
Americanos, portugueses, nem os vizinhos espanhóis escapavam. Em 1972, o realizador espanhol Vicente Aranda veria o seu La Novia Ensangrentada sujeito a cortes. Personagem leva uma injeção? Cortado. Personagem afirma que a outra pode ser lésbica? Cortado. Redução da morte do guarda? Aprovado. Sobre a censura ao racismo, o objetivo era virado ao contrário: “Queriam que os portugueses se esquecessem dos negros nas colónias”, revela Ana Bela Morais. Um dos bons exemplos foi o que aconteceu ao clássico norte-americano de blaxploitation Blacula (1972), de William Crain. O príncipe africano Manuwalde transformado em vampiro levou um corte na frase: “É estranho como isto só acontece com os pretos”. Este, segundo a documentação partilhada pelo Motelx no seu dossier, foi um dos que, anos antes, não teria escapado à censura. Já agora, se Chaplin era um génio para alguns censores, Alfred Hitchcock, nome maior do cinema mundial e também deste género, viu o seu marcante The Birds (1963) ser estreado com cortes.
A lista é longa e não foi possível enumerar todos os filmes de terror censurados durante a conversa com Ana Bela Morais. Há exorcismos a jesuítas que o público nunca viu (em The Boy Who Cried Werewolf, de Nathan Juran, que teve o trailer aprovado no exato mês da revolução), beijos entre irmãos (Sombra do Diabo, de Peter Sykes, 1972) ou troca de afetos entre uma filha e um pai (Reflexo do Medo, de William A. Fraker, 1972). Ou mesmo referências a “zonas capilares sexuais de uma mulher” em As Servas de Drácula, de John Hough, lançado em 1971.
[trailer oficial do filme “Blacula”, de William Crain:]
“Já não há medo de dizer que se faz filmes de terror”
Para João Monteiro e Pedro Souto, é impossível dissociar o que a censura fez ao género com o que foi acontecendo ao terror — sobretudo nacional mas também internacional — que passou de quase desaparecido ou clandestino a fenómeno que leva muita gente às salas de cinema, inclusivamente em Portugal. No livro O Quarto Perdido, coordenado por João Monteiro e Filipa Rosário, que antes tinha dado origem a uma conhecida secção do Motelx, avaliam-se os filmes de terror português entre 1911 e 2006. João Monteiro dá o exemplo do filme Rasganço, de Raquel Freire, onde se olha para a violência das praxes académicas e que “nunca foi visto como um filme de terror”. “Agora os realizadores e os produtores não têm medo de dizer que estão a fazer um filme de terror”, alega.
Pegando no levantamento de obras de terror português feito por estes e outros autores, é importante destacar alguns momentos-chave. Durante a ditadura, houve exceções de filmes portugueses de género que acabaram por não ser restaurados porque se perderam em incêndios: O Louco (1946), de Victor Manuel, e Três Dias Sem Deus (1946), de Bárbara Virgínia, por exemplo. Lentamente, vemos inícios de experiências de terror com zombies (O Cerro dos Enforcados de Fernando Garcia, 1954) ou comédias nacionais de terror a beliscar o que se fazia nos Estados Unidos, como o Aqui Há Fantasmas (1963) de Pedro Martins. Mas é nos anos 50, através do cinema novo e dos realizadores como Paulo Rocha, Fonseca e Costa, Fernando Lopes e o “maldito e marginalizado” António de Macedo que a sétima arte se catapulta, sem medos, para a violência, o realismo dos dias e o fantástico, transformando verdadeiramente o cinema português. Porém, não se pode dizer que foram produzidas obras de terror por estes autores, muito mais ligados à nouvelle vague, com exceção de Macedo, realizador que faria uma verdadeira incursão neste género no final da sua carreira, em parceria com a RTP e a TVE.
António de Macedo foi muito criticado pela imprensa, pelos pares, criou obras esotéricas, de ficção científica e de fantástico, competiu em Cannes e em Veneza e viu-se afastado de apoios públicos. Tanto durante a ditadura como já em democracia. Basta olhar para a obra iconoclasta Horas de Maria (1979), sobre uma jovem cega e violada pelo padrasto. “Ele aguentou uma carreira inteira a levar pancada de todo o lado, dos críticos, dos políticos ou da igreja por causa desse filme”, contou João Monteiro ao crítico Eurico de Barros em 2016, a propósito do documentário sobre António de Macedo, Nos Interestícios da Realidade. Recorde-se que no ano do lançamento do filme, um grupo de manifestantes de direita deslocou-se até ao Nimas para protestar violentamente contra o filme. Já não havia comissão de censura, nem Salazar nem Marcelo Caetano.
“Criou-se uma imagética simbólica no cinema, onde essa geração fazia referências alusivas ao poder autoritário, como no filme O Cerco (1969) de António da Cunha Telles, ou O Recado (1971) de José Fonseca e Costa. Há também outros que punham o dedo na ferida da guerra colonial como o Nojo aos Cães (1970), de António de Macedo. O terror só surge depois da Revolução, na representação de histórias passadas no anterior regime”, alega Leonor Areal. Era o género cinematográfico onde, a par do sangue, da depravação e da profanação, se revelavam medos secretos.
A verdade é que houve quem, a nível nacional, conseguisse “fintar” a censura, de realizadores a produtores, dentro e fora do cinema de género. Mais uma vez, no livro de António de Macedo, Como se Fazia cinema em Portugal: inconfidências de um ex-praticante (2007), o realizador explica como conseguiu no filme Domingo à Tarde (1965) negociar com os censores para escurecer uma cena entre duas mulheres a beijarem-se. Para outro dos seus mais conhecidos filmes, A Promessa (1972), o produtor Fernando Lopes (também realizador e presidente do Centro Português do Cinema) chegou mesmo a convencer que nenhuma carta de protesto seria redigida. Mas sobre estas fintas pouco ou nada se sabe ainda hoje.
Também existiram obras que começaram a atacar o regime salazarista, como O Crime de Aldeia Velha (1964, de Bernardo Santareno e Manuel Guimarães) ou Brandos Costumes ( 1975, Alberto Seixas Santos). “O medo indizível é a arma das ditaduras, onde o terror se instala secretamente. Salazar gostava de terror mas nas prisões”, afirma Leonor Areal. O Estado Novo, segundo a investigadora, não suportava — aliás, proibia — essa afronta, sendo o apogeu provocatório desta mentalidade o filme Sofia e a Educação Sexual (1973) de Eduarda Geada, que expõe a perversidade e morbidez do regime patriarcal dentro de uma família abastada. Há coproduções entre Portugal e Espanha que resultariam em filmes como Cartas de Amor de Uma Freira Portuguesa (1977), onde a atriz Ana Zanatti é violada pelo diabo, ou o La Noche del Terror Ciego (1971), de Amando de Ossório, quase todo filmado por cá.
Há ainda curtas-metragens de Sinde Filipe e, nos anos 80, com o aparecimento do Fantasporto e de videoclubes, a adesão do público ao terror aumentou, mas a produção portuguesa com destaque não, exceção feita a Os Canibais (1988) de Manoel de Oliveira. Transitando para o século XXI, saltam à vista exemplos como I’ll See You in my Dreams (2003, de Filipe Melo) ou a longa-metragem de Tiago Guedes e Frederico Serra, Coisa Ruim, ou mesmo os filmes de Fernando Alle (Mutant Blast) que trabalhou com a importante produtora independente norte-americana Troma. O resto da história do terror português está ainda a construir-se com novos autores que poderão ser vistos no Motelx.
Contudo, e mantendo-nos no que vai ser possível ver no Motelx, os caminhos entre a censura, o Estado Novo e o cinema português e internacional vão parar ao maestro Victorino d’Almeida e ao único filme que realizou: A Culpa, de 1981, sobre o calvário pessoal de um soldado da Guerra Colonial e que será exibido no próximo dia 15 de setembro pelas 17h00. Terror clássico e sátira misturados. Um bom exemplo, dentro da cinematografia nacional, de um autor que arriscou meter-se com as raízes do Estado Novo e estranhamente nunca mais voltou a realizar. “É um filme que vem ressuscitar os terrores do antigo regime, com sarcasmo e comicidade, atualizando as metáforas do imaginário vampiresco. Desenham-se os vetores da repressão social, ou censura social, da repressão oficial, aqui encarnada por dois ridículos agentes da PIDE”, conta Leonor Areal, também autora do compêndio Cinema Português — Um País Imaginado.