Quando, após a morte de Erik Satie, a 1 de Julho de 1925, os amigos entraram no minúsculo apartamento de uma divisão, sem água nem electricidade, em que o músico habitara durante os últimos 27 anos de vida, no n.º 34 da Rue Cauchy, em Arcueil, um subúrbio operário de Paris, e que ele nunca franqueara ao seu círculo de conhecimentos, depararam-se com um cenário ao mesmo tempo deprimente e fantástico: deprimente porque revelava as condições de penúria em que o compositor vivera, fantástico porque espelhava o seu espírito excêntrico e zombeteiro.
No apartamento, onde reinava a maior desordem, encontrou-se uma colecção de guarda-chuvas, com mais de uma centena de peças, outra de lenços, com 84 exemplares, outra ainda de colarinhos de camisa, bem como vários fatos de veludo cinzentos, todos iguais, ainda por estrear – Satie não gostava de perder tempo a decidir que roupa iria usar, pelo que comprara de uma só vez uma dúzia de fatos, usando um de cada vez até ele ficar puído (paradoxalmente, foi, a crer nas suas palavras, assinante de uma revista de moda). Havia também desenhos de edifícios medievais, centenas de estreitas tiras de papel com anotações enigmáticas como “O meu nome é Erik Satie, tal como todas as outra pessoas” e numerosas partituras inéditas, incluindo algumas que o próprio compositor julgava ter perdido, como seja o caso de Jack in the Box e da ópera Geneviève de Brabant.
[Gymnopédie n.º1, por Aldo Ciccolini]
Mas o achado mais extraordinário do apartamento de Arcueil foram dois pianos desafinados e amarrados por cordas, um deles empilhado sobre o outro e funcionando como armário para cartas e pacotes (talvez os pianos não tenham tido muito uso mesmo quando estavam funcionais, pois Satie preferia compor à mesa do café). Entre a correspondência, contavam-se muitas cartas por abrir e resmas de cartas que escrevera à pintora Suzanne Valadon (1865-1938), com quem tivera um caso amoroso, em 1893, mas que nunca chegara a enviar. Valadon, que fora modelo de Renoir e Toulouse-Lautrec e que em 1894 se tornou na primeira mulher a ser admitida na Sociedade Nacional de Belas-Artes, é a única relação sentimental conhecida do compositor, que a terá pedido em casamento após a primeira noite que passaram juntos. Quando Valadon pôs termo à relação, cinco meses depois, Satie escreveu que a ruptura com Valadon o deixara “inundado por uma solidão glacial que enche a cabeça de vazio e o coração de tristeza”.
O aluno mais madraço do Conservatório
Éric Alfred Leslie Satie nasceu em Honfleur na Normandia, a 17 de Maio de 1866. A mãe, Jane Leslie, era escocesa, o pai, Jules Alfred Satie, era normando e exercia a profissão de despachante marítimo. A família mudou-se para Paris tinha Satie quatro anos, mas a morte da mãe, em 1872, fez com que ele e o irmão fossem recambiados para a casa dos avós paternos, em Honfleur.
A morte da avó, em 1878, fez com que as crianças regressassem para junto do pai, que entretanto se casara com Eugénie Barnetche, professora de piano. As aulas com esta parecem ter contribuído para que Satie desenvolvesse uma tripla aversão: à madrasta, ao piano e ao Conservatório, onde entrou, forçado pela madrasta, em 1879 e de onde sairia dois anos depois, sem aproveitamento digno de nota e implacavelmente julgado pelos seus professores: “insignificante”, “desprovido de talento”, “o aluno mais madraço do Conservatório”. Uma segunda tentativa de frequência do Conservatório, em 1885, não teve mais sucesso e, para escapar, simultaneamente, à madrasta e ao Conservatório, Satie, então com 19 anos, alistou-se no exército, instituição para o qual estava ainda menos talhado. Satie chegou rapidamente a essa conclusão e, em Arras, onde fora colocado, tratou de expor-se em tronco nu ao vento glacial de uma noite de Inverno, o que lhe valeu uma bronquite, que lhe serviu de pretexto para pôr termo à carreira militar.
A vida boémia de Montmartre
Em 1887, Satie instalou-se em Montmartre, onde travou amizade ou conhecimento com os mais destacados vultos da fervilhante vida cultural parisiense – Stéphane Mallarmé, Paul Verlaine, Guy de Maupassant – e onde, para ganhar a vida, trabalhou como pianista e arranjador, sobretudo no café-cabaret Le Chat Noir e no “cabaret artístico” Auberge du Clou, onde acompanhou ao piano peças de teatro de fantoches.
No âmbito desta actividade, arranjou uma centena de peças de canções de cabaret, a que juntou algumas de sua lavra, compostas sobretudo para a cantora Paulette Darty – mais tarde Satie qualificá-las-ia como “porcarias grosseiras”, o que não impede que disfrutem hoje de inexplicável popularidade.
Entretanto, fizera publicar, na editora que o pai fundara, as suas primeiras obras, Sarabandes (1887), Gymnopédies (1888) e Gnossiennes (1890), delicadas miniaturas para piano num registo sumamente despojado, sereno, contido e transparente, em contra-corrente às atormentadas, densas e emocionalmente expansivas peças para grande orquestra típicas do tardo-romantismo então vigente.
A lenta ascensão do homem do chapéu de coco
1890 marcou o início da amizade com Claude Debussy, que seria importante para ambos. Por um lado, Satie terá contribuído para dissipar o apreço de Debussy pela música de Wagner: “fiz ver a Debussy que, embora eu não fosse de modo algum anti-wagneriano, ele devia criar uma música que fosse sua, desejavelmente sem qualquer chucrute”, recordaria Satie mais tarde, “Porque não usar os meios a que Claude Monet, Cézanne, Toulouse-Lautrec e outros tinham divulgado? Porque não transpor esses meios para música?” Noutra ocasião, testemunhada por Jean Cocteau, Satie terá dito a Debussy: “Ouça o que lhe digo: já chega de Wagner! É belo, mas não é nosso!”
Debussy, pelo seu lado, fez muito pela divulgação da música de Satie ao arranjar para orquestra as Gymnopédies n.º1 e n.º3.
Ambos os compositores se filiaram na Ordem da Rosa-Cruz Católica e Estética do Templo e do Graal, que tinha como mentor Joséphin Peladan, uma figura exuberante e extravagante, crítico do impressionismo e adepto dos simbolistas e que se fazia intitular “Sâr”, supostamente um título honorífico entre os babilónios. O rosa-crucianismo não teve grande expressão na obra de Debussy, mas Satie levou o assunto suficientemente a sério para se tornar mestre de capela da Ordem, compondo peças como as Sonneries de la Rose-Croix (1892), sempre num registo despojado e minimal, influenciado pelo seu apreço pelo cântico gregoriano e pela arte gótica (que já se tinha manifestado em Ogives, de 1889).
[Sonnerie de la Rose-Croix n.º3, por Reinbert de Leeuw]
A natureza avessa a ortodoxias e disciplinas de Satie levou-o a romper com Peladan passado pouco tempo e, num gesto onde é difícil perceber onde acaba o misticismo e começa a ironia, fundou, em 1893, a Igreja Metropolitana de Arte de Jesus-Condutor, de que foi sumo-sacerdote, tesoureiro, mestre de capela e único crente – o seu objectivo era criar “um refúgio onde o catolicismo e as artes que lhe estão indissoluvelmente ligadas crescerão e prosperarão ao abrigo de toda e qualquer profanação”. Foi por esta altura que adoptou umas vestes vagamente monásticas e “as maneiras untuosas de um padre” e passou a designar a sua modesta habitação por “abacial”. Foi para a sua igreja unipessoal – e talvez para o ajudar a superar a depressão causada pelo fim da relação com Suzanne Valadon – que compôs a Messe des pauvres (1895).
Uma pequena herança recebida em 1895 foi dissipada na edição de algumas das suas obras e na publicação de panfletos onde explanava os princípios doutrinais da Igreja Metropolitana de Arte de Jesus-Condutor e zurzia nos que o criticavam. A composição da Messe des pauvres parece ter esgotado a sua disposição místico-religiosa, tendo trocado as vestimentas pseudo-monásticas pelos fatos de veludo que seriam sua imagem de marca durante o resto da vida.
A mudança de guarda-roupa contribuiu para esgotar o seu magro pecúlio, tendo sido forçado a mudar-se para habitações cada vez mais modestas: em 1896, para a Rue Cortot, e, em 1898, para o já mencionado apartamento de Arcueil onde viveria até ao fim da vida.
Em 1905, com 40 anos, tomou a surpreendente decisão de regressar ao estudo: ingressou na Schola Cantorum, onde recebeu aulas de contraponto e orquestração de Albert Roussel e Vincent D’Indy e que lhe conferiria, três anos depois, o primeiro diploma da sua vida. A educação formal recebida na Schola Cantorum não alterou o seu estilo pessoal, embora tenha suscitado a produção de vários exercícios, de carácter essencialmente pedagógico, que só foram descobertos postumamente.
Tendo deixado para trás a sua fase mística e a filiação rosa-cruciana, acabou por tornar-se militante de um partido socialista radical e da SFIO (Secção Francesa da Internacional Operária) e envolver-se em acções de formação e ocupação de tempos livres para os filhos do operariado de Arcueil – o que, paradoxalmente, ocorreu aproximadamente na mesma altura em que adoptou o visual imutável de funcionário burguês, de chapéu de coco, fato de veludo e guarda-chuva (o que lhe fez ganhar a alcunha de “Cavalheiro de Veludo”). Mais tarde, em 1920, tornar-se-ia militante comunista, mas quando um amigo lhe ofereceu um exemplar de O Capital, rejeitou-o energicamente: “Não gosto dessas merdas maçadoras”.
Por volta de 1910, Ravel, que conhecera Satie em 1893 e estava então envolvido numa disputa com Debussy sobre quem fora o pioneiro do “impressionismo musical”, começou a fazer a apologia do “Cavalheiro de Veludo”, que foi rapidamente adoptado pelos “Jeunes Ravelites” e apontado por estes como tendo antecipado as inovações atribuídas a Debussy e como sendo um compositor de gabarito superior a este.
Nas vésperas da I Guerra Mundial, a Satie passou por um “período humorístico”, com colecções de peças como Véritables préludes flasques pour un chien (1912), com títulos como “Idílio cínico”, “Canção canina”, “Reprimenda severa” e “Sozinho em casa”, Descriptions automatiques (1913), Embryons desséchés (1913), Croquis et agaceries d’un gros bonhomme en bois (1913), que incluem uma “Tirolesa turca” e uma “Dança magra”, Chapitres tournés en tous sens (1913), Vieux sequins et vieilles cuirasses (1913) e Sports et divertissements (1914). Muitas delas aludem, zombeteiramente, a peças consagradas e lugares-comuns – é o caso, por exemplo, do Embryon desséché n.º2, “D’edriophtalma”, que cita a “Marcha fúnebre” de Chopin (que uma nota na partitura identifica, jocosamente, como “a famosa mazurka de Schubert”).
[Embryons desséchés: 1. D’holothurie, 2. D’edriophtalma, 3.De podophthalma, por Jean-Yves Thibaudet]
De braço dado com a vanguarda parisiense
A cotação de Satie no meio intelectual parisiense subiu ainda mais quando travou amizade com Jean Cocteau, com quem viria a colaborar no ballet Parade, encomendado por Sergei Diaghilev, empresário dos Ballets Russes. O bailado, com cenários e figurinos de Picasso (no que foi a estreia do pintor neste domínio), coreografia de Léonide Massine e direccção de Ernest Ansermet, teve estreia (escandalosa) em 1917. Cocteau inicialmente pretendera adaptar a um bailado os Trois morceaux en forme de poire, para piano a quatro mãos, de 1903.
[Trois morceaux en forme de poire: o título é uma resposta de Satie à crítica de que as suas obras careceriam de forma; os “morceaux” não são três mas sete. Por Aldo Ciccolini e Gabriel Tacchino]
Porém, Satie preferiu compor uma nova peça, que, no texto de apresentação, Guillaume Apollinaire qualificou de “surreal” (naquele que é o primeiro uso conhecida da palavra). A peça recorre a uma instrumentação muito pouco convencional, que inclui pistola, máquina de escrever, sirenes, um bouteillophone (várias garrafas com diferentes alturas de água), uma roda de lotaria e outro bricabraque sonoro, que contribui decisivamente para que, na estreia, se gerasse um tumulto comparável ao da estreia de Le sacre du Printemps, de Stravinsky, quatro anos antes, em resultado de confrontos entre os que aplaudiam a obra e os que a apupavam. Em resposta a uma crítica de Jean Poueigh, que considerou o bailado “um ultraje ao gosto francês”, Satie enviou-lhe um postal insultuoso – “vous n’êtes qu’un cul, mais un cul sans musique” – que lhe valeu um processo e uma pena de oito dias de prisão, que foi suspensa após um acordo entre ofendido e ofensor.
Em compensação, Parade trouxe-lhe a amizade, o convívio ou a colaboração com figuras cimeiras do dadaísmo (alguns deles futuros surrealistas), como Tristan Tzara, Marcel Duchamp e Man Ray, bem como com Georges Bracque, com quem colaborou em projectos que nunca viram a luz do dia. Também estabeleceria amizade com Henri-Pierre Roché, romancista (é autor, entre outros, de Jules et Jim), coleccionador e marchand de arte e elemento catalizador da vanguarda parisiense, que tentou organizar, sem sucesso, uma tournée americana para Satie.
Em 1917-18 Satie trabalhou em Socrate, um “drama sinfónico” para voz e piano (ou pequena orquestra), que lhe foi encomendado por Winnaretta Singer, a Princesa Edmond de Polignac, herdeira da família das máquinas de costura Singer e uma das mais activas mecenas das artes em França. O texto consistia em excertos de diálogos de Platão que fazem referência a Sócrates, mas a princesa (lésbica) insistiu para que fossem cantados por uma voz feminina. Consta que o auxílio financeiro da princesa de Polignac terá sido decisivo para safar Satie do imbróglio com Jean Poueigh, o crítico ofendido.
A mascote do Grupo dos Seis
Jean Cocteau fora um fervoroso paladino da música de Debussy, mas não tardou a cansar-se dela – atacou-a no seu manifesto Le coq et l’arlequin (1918) – e a encontrar uma next big thing mais atraente nos Nouveaux Jeunes, um grupo de compositores fundado em 1917 por Satie, que se opunha às influências de Wagner e ao impressionismo de Debussy e Ravel. Menos de um ano depois, Satie abandonou o grupo, por motivos desconhecidos (a verdade é que o adjectivo “jovem” assentava mal num homem de 52 anos) e o grupo reformular-se-ia, sob a orientação de Cocteau, como Les Six (o Grupo dos Seis), sem Satie, mas mantendo-o como figura tutelar.
Em 1918, um dos seus membros, Francis Poulenc, resumiria assim a postura de Les Six: “Estávamos fartos do Debussysmo, de Florent Schmitt e de Ravel. Entendia que a música tinha de ser clara, sã e robusta, tão francesa em espírito quanto Petrushka de Stravinsky é russa. Para mim, a Parade de Satie está para Paris como Petrushka está para São Petersburgo”.
[Parade, na versão para piano a quatro mãos, numa gravação histórica por Francis Poulenc e Georges Auric, c. 1937]
Cocteau fez a apologia entusiástica de Les Six, profetizando que iriam lançar a música francesa num novo e triunfante caminho, mas o grupo estava, porém, muito mal dotado para tão momentosa empresa: Arthur Honegger e Darius Milhaud possuíam um talento modesto, Georges Auric, Louis Durey e Germaine Tailleferre eram medíocres e só Francis Poulenc se mostrou capaz de genuínos momentos de inspiração (intercalados com muitos francamente insulsos ou frívolos). Na verdade pouco unia, em termos de estética e de temperamento Les Six, não passando o “grupo” de uma criação arbitrária do crítico Henri Collet, num artigo de 1920 (o próprio Milhaud o admitiu), da qual Cocteau, que aspirava a ser visto como o guru de todas as vanguardas artísticas, se apropriou.
O prisioneiro do castelo de chumbo
É fácil de compreender o fascínio de Jean Cocteau por Satie, pois a excentricidade que este cultivava correspondia à frívola ideia de “vanguarda” do primeiro: algo que desafiasse as convenções e causasse escândalo na sociedade bem-pensante. Ora, se sempre houve criadores excêntricos, nunca um compositor cultivara com tanto esmero e deliberação a excentricidade. Não só as peças de Satie desafiavam, pelo seu despojamento, as convenções musicais do tardo-romantismo, como o compositor fazia questão de atribuir-lhes títulos irreverentes e de semear a partitura com indicações como “leve como um ovo”, “aqui vem a lanterna”, “abre a tua cabeça”, “com espanto”, ou “descobre tu como é”. Na edição de Heures séculaires et instantanées (1914), incluiu esta advertência. “Proíbo toda e qualquer pessoa de ler este texto em voz alta durante a execução. O desrespeito pelas minhas instruções desencadeará a minha justa indignação contra o atrevido. Não serão admitidas excepções”.
[Heures séculaires et instantanées, por Anne Queffélec]
Quando Satie tocou perante os presentes no Auberge du Clou a partitura do “bailado cristão” Uspud (1892), retorquiu às vozes críticas acusando-as de serem burguesas e ignorantes: “Sou-vos claramente superior, mas a minha modéstia impede-me de o dizer”. Propôs ao Théâtre National de l’Opéra de Paris a estreia de Uspud, mas, não obtendo resposta, escreveu ao director uma carta em que assumia que o silêncio deste era um insulto pessoal que só poderia ser lavado através de um duelo.
O homem que se apresentava não como “compositor” mas como “gimnopedista” ou “fonometrista” não era menos excêntrico na vida pessoal, como atestam as muitas cartas escritas a si mesmo, descobertas postumamente no apartamento de Arcueil. Numa delas detalha a sua dieta, que apenas contemplava alimentos brancos: ovos, açúcar, ossos moídos, gordura animal, sal, cocos, arroz, massas, nabos, frango, queijo branco e algumas variedades de peixe. Por vezes entregava-se a excessos alimentares, correndo rumores de que terá comido uma omeleta de 30 ovos e, noutra ocasião, 150 ostras de uma só vez.
O seu interesse pela arte gótica evoluiu para a concepção de edifícios medievais, que desenhava em pequenos cartões – numa ramificação desta obsessão, fez uma vez publicar num jornal o anúncio do aluguer ou venda de um “castelo de chumbo”.
[Nocturnes n.º1-6, por Jean-Yves Thibaudet]
Os últimos anos
Após a I Guerra Mundial, o hype em torno de Satie não dava sinais de abrandar e em 1923 um grupo de admiradores seus – os compositores Henri Cliquet-Payet, Roger Desormière, Henri Sauguet e Maxime Jacob – formou a Escola de Arcueil (uma alusão ao local de residência de Satie, não ao da origem ou ponto de encontro dos seus membros), que pretendia reconduzir a música a uma simplicidade primeva, seguindo o exemplo de Satie.
Em 1924, Satie regressou ao bailado com Mercure, novamente com cenografia de Picasso, e Relâche, um “ballet instantanéiste” composto para os Ballets Suédois, dirigidos por Jean Borlin, com cenografia de Francis Picabia. No entreacto do bailado era projectado o filme Entr’acte de René Clair, que tem a participação como actores de Satie, Picabia, Man Ray, Duchamp, Auric e do próprio realizador. Além do filme apresentado no entreacto, Clair realizou também uma breve sequência de minuto e meio que surge entre a “Ouverturette”, uma introdução instrumental, e o erguer da cortina para o I acto do bailado.
Satie compôs a música para ambos os trechos de filme, intitulando a banda sonora da introdução como Projectionnette e a do entreacto propriamente dito como Cinéma – na primeira, música e acção não evidenciam conexão entre si, mas a segunda associa trechos musicais a eventos específicos, no que constitui um exemplo pioneiro de sincronização entre música e imagem.
[Sequência de abertura de Entr’acte, tendo por protagonistas Picabia e Satie, com o seu chapéu e guarda-chuva característicos]
Os muitos anos em que Satie se entregou ao consumo liberal de álcool e em especial de absinto – “não comíamos todos os dias, mas nunca falhámos um aperitivo”, dizia ele a um amigo – acabaram por cobrar o seu preço sob a forma de uma cirrose hepática. A Condessa Étienne de Beaumont cedeu ao compositor o seu quarto no hospital de Saint-Joseph e foi aí que se extinguiu a 1 de Julho de 1925, em condições luxuosas quando comparadas com aquelas que tivera em sua própria casa durante a maior parte da vida.
A importância de Satie não tem parado de crescer desde então e os 150 anos do seu nascimento têm sido pretexto para espectáculos, exposições e edições. Arcueil decidiu, naturalmente associar-se aos festejos, mas enfrentou a oposição feroz de Denis Truffaut, conselheiro municipal eleito pela Frente Nacional, que rotulou o compositor de “hipócrita”, “medíocre”, “iluminado”, “bêbedo” e – supremo insulto, vindo da FN – “comunista”. Sobre a única coisa que interessaria discutir, ou seja, a música de Satie, todavia, o Sr. Truffaut não emitiu opinião.
[Gnossienne n.º1, por Jean-Yves Thibaudet]
https://youtu.be/v1rrRAx8gzM
Monsieur le Précurseur
Apesar de ter sido um “bêbedo” e um “comunista”, Satie foi uma figura influente da vida cultural parisiense na viragem dos séculos XIX-XX e o seu legado foi crescendo com a passagem do tempo. Debussy reconhecia o papel pioneiro de Satie e tratava-o por “Monsieur le Précurseur” e, em 1905, Ravel também realçaria o seu papel pioneiro (embora possa ver-se nesse elogio uma forma de diminuir a originalidade reclamada pelo “rival” Debussy).
Porém, o pioneirismo de Satie é mais facilmente apreendido a partir do ponto de vista do século XXI.
A rejeição da complexidade académica, a paleta harmónica restrita, a dinâmica limitada e as melodias simples de Satie seriam retomadas pelos compositores minimal-repetitivos surgidos nas décadas de 1960 e 1970 e Vexations (c. 1893) pode mesmo ser vista como sendo a peça fundadora do minimalismo puro e duro de Terry Riley e Steve Reich; Gavin Bryars (compositor com facetas minimalistas) veria na extensão de Vexations uma sátira à duração desmedida das óperas de Wagner, “um Anel do Nibelungo para os pobres”.
Vexations, provavelmente destinada ao piano, consiste num singelo trecho de 140 notas que deverá ser repetido 840 vezes. Inevitavelmente, a descoberta de tal peça encantou John Cage. Foi Cage quem, com Lewis Lloyd, organizou a sua primeira apresentação no Pocket Theatre, de Manhattan, numa maratona que se estendeu por 18 horas, com uma dúzia de pianistas a revezar-se na função (quando a performance terminou, um engraçadinho gritou “Bis!”).
[Excerto – 840.ª e derradeira repetição da peça, por Tiffany Lin – de uma apresentação integral de Vexations, repartida entre vários pianistas]
Uma performance de Nicolas Horvath, em Tokyo, em 2012, durou 35 horas (a ambiguidades da partitura fazem com que os tempos de execução variem muito). Resta saber se a indicação de Satie – “para se tocar 840 vezes este tema, é recomendável que o intérprete se prepare previamente, no maior silêncio, através de sérias imobilidades” – deve ser interpretada literalmente ou é apenas mais um dos apartes jocosos com que pontuava as partituras. Há mesmo quem alegue que a peça não se destinaria a ser tocada em público e que serviria apenas como exercício de meditação para o intérprete.
[Para quem tenha paciência e não saiba como ocupar nove horas de tempo livre: Versão integral de Vexations, por Nicolas Horvath, no Conservatório de Lagny-sur-Marne, a 26 de Junho de 2011]
Os imprevisíveis ditames das modas musicais levam a que hoje os compositores minimais descendentes de Satie, como Michael Nyman, Arvo Pärt ou Max Richter, sejam hoje os compositores vivos mais ouvidos – pode é contestar-se se a popularidade desta música liofilizada e estática é um fenómeno positivo.
Um dos compositores que incorporou de forma mais criativa o legado de Satie foi o catalão Federico Mompou (1893-1987), que, como ele, se consagrou sobretudo à miniatura para piano solo. A música de Mompou, depurada e assente em ostinati, evita a aridez graças às influências de Fauré, de Debussy e da música tradicional catalã e, nos seus melhores momentos, comunga da atmosfera de meditação serena das Gymnopédies e Gnossiennes.
[“Angelico”, n.º1 de Musica callada, de Federico Mompou, por Haskell Small]
Satie é também visto como pioneiro da musique d’ameublement: “uma música que faz parte do ruído ambiente. Uma música para mobilar os silêncios pesados que se instalam entre os convivas. Para os poupar às banalidades usuais […] A musique d’ameublement cria uma vibração, não tem outro propósito; desempenha o mesmo papel que a luz, o calor, o conforto sob todas as formas”. Por estas palavras de Satie se depreende que, em termos conceptuais, Brian Eno não inventou nada, ainda que as Musiques d’ameublement (1918) de Satie sejam bem diversas de Music for airports e do que surgiu na sua esteira. Soam como uma musiqueta anódina e flácida, com um vago ar trocista, repetida até à náusea por uma filarmónica de tuberculosos melancólicos. Os títulos escarninhos das três Musiques d’ameublement confirmam a sua vocação decorativa: “Papel de parede de gabinete de governador civil”, “Tapeçaria em ferro forjado para a chegada dos convidados (grande recepção), para ser tocada no vestíbulo”, e “Azulejaria sonora (apropriada a repastos leves e assinatura de acordos pré-nupciais)”.
Consta que quando as Musiques d’ameublement foram apresentadas ao público e este, seguindo as convenções do concerto público, se pôs a escutá-las em silêncio, Satie ficou furioso e tentou expulsar o público da sala.
[Tenture de cabinet préféctoral, a primeira das três Musiques d’ameublement compostas por Satie em 1918. Interpretação do Ensemble Ars Nova, com direcção de Marius Constant]
A inclusão de máquinas de escrever e sirenes em Parade (1917) tem sido apontada como uma prefiguração da música concreta de Pierre Schaeffer e Pierre Henry. O que raramente se diz quando se menciona este pioneirismo é que a adição de dispositivos produtores de ruído foi iniciativa de Cocteau e não de Satie, que aliás ficou desolado com tal ideia. Seja como for, a música concreta é um domínio tão pobre e limitado que não vale a pena discutir a autoria da sua “invenção”.
Satie foi também o primeiro compositor a recorrer ao piano preparado: foi em 1913-14, na ante-estreia de Le piège de Méduse (1913), uma comédia surrealista com música de cena composta por Satie, que introduziu folhas de papel entre as cordas. O piano preparado viria depois a usar extensivamente por John Cage e tornou-se corrente na música erudita e no jazz – havendo mesmo músicos de jazz, como Denman Maroney ou Benoît Delbecq, que tornaram o piano preparado no fulcro da sua concepção musical.
O pioneirismo de Satie também se manifestou nas artes plásticas: em 1921, em colaboração com Man Ray, criou o ready made Le cadeau (1921), uma peça que foi concebida e executada no próprio dia em que foi exposta e foi também roubada nesse mesmo dia (mais de meio século depois, Man Ray produziria 5.000 réplicas).
Outro domínio em que Satie foi pioneiro foi o da mistificação artística: a 22 de Julho 1892, fez publicar o anúncio da estreia, no Grand-Théâtre de Bordéus, de Le bâtard de Tristan, uma ópera em três actos com libreto de Albert Tinchant que nunca existiu fora do anúncio – tratou-se apenas de uma provocação anti-wagneriana. O gesto prefigura os actos de pura provocação (exposições que apenas mostram as paredes nuas de uma galeria) que se tornaram frequentes entre artistas plásticos e performers – entre os muitos cultores deste tipo de mistificação hoje no activo está o italiano Maurizio Cattelan (n. 1960).
1892 viu também surgir Uspud, “bailado cristão em três actos”, com enredo do seu amigo Contamine de Latour, uma paródia com laivos surreais à Tentação de Santo António de Flaubert. Alguns críticos consideram Uspud como uma forma de mistificação, já que a obra se empenha em negar a essência do que se entendia na altura como bailado: as indicações de tempo oscilam apenas entre “lento” e “muito lento” e a música foi concebida de forma a ignorar ou até a contrariar o enredo – uma ousadia que hoje se tornou rotineira.
Na verdade, o pioneirismo de Satie tem menos a ver com a música propriamente dita, onde o seu contributo foi limitado, do que com o primado do conceito (por oco e pueril que seja) sobre o métier e a elevação da boutade, da provocação destinada a “épater le bourgeois” e da mera anedota ao estatuto de arte. E se Satie nunca conseguiu retirar da composição proventos que lhe permitissem levar uma vida digna, hoje não faltam artistas que levaram à perfeição a arte de “espremer” uma mão-cheia de ideias e conceitos banais ou tolos de forma a sustentar várias décadas de produção musical e que daí tiram bom rendimento com um mínimo de esforço (ver link para Esta música precisa de receita médica?).
[Gymnopédie n.º1, na orquestração de Debussy, pela Academy of St. Martin-In-The Fields, com direcção de Neville Marriner]
Música para piano solo
Entre as várias edições e reedições que têm assinalado os 150 anos do nascimento de Satie, destaca-se The complete solo piano music (Decca), uma caixa de cinco CDs gravados em 2000-2001 por Jean-Yves Thibaudet, que regressa agora a preço muito acessível e oferecendo como bónus um CD de música para piano a quatro mãos (mais algumas peças soltas) por Pascal Rogé e Jean-Philippe Collard, gravada em 1996. Thibaudet, Rogé e Collard são indiscutíveis autoridades na música francesa da viragem dos séculos XIX-XX, pelo que as obras de Satie não poderiam estar em melhores mãos.
A abordagem refinadamente lenta e delicada de Thibaudet realça a atmosfera de sublime serenidade e melancolia das Gymnopédies e das Gnossiennes. Porém, existe um abismo entre estas célebres peças (justamente) célebres e a restante produção de Satie: o encantamento hipnótico das Gymnopédies e das Gnossiennes dá progressivamente lugar ao tédio: as peças de inspiração rosa-cruciana são de um hieratismo árido; a música de salão não se distingue das banalidades produzidas em massa para o mesmo fim por centenas de compositores misericordiosamente olvidados; as peças infantis não se distinguem por aí além das suas peças “para adultos”; as peças compostas para a Schola Cantorum são exercícios académicos destituídos de vida, cuja edição em disco só pode explicar-se pela obsessão “completista” que hoje está em voga; as peças ditas “humorísticas” (que enchem quase todo o CD 4) esgotam o humor nos títulos, já que no plano musical são invariavelmente sorumbáticas (já o pianista Alfred Cortot reprovava a Satie “o emprego uniforme de um procedimento, sem renovação nem alegria”); quanto à música de cena, comprova que a inspiração de Satie tem o fôlego muito curto e completamente incapaz de sustentar uma peça com sete ou mais minutos de duração – os prelúdios de Nazaréen e Eginhard e o bailado Uspud são inanes e comatosas.
É aqui oportuno levantar a questão do que levará um pianista do gabarito de Thibaudet a consagrar-se a música deste coturno, cujas exigências técnicas e expressivas são facilmente satisfeitas por um pianista meramente competente, interrogação que pode estender-se a outra pianista superlativa, a ucraniana Valentina Lisitsa, que tem vindo a colocar-se ao serviço das inanidades de Michael Nyman, um dos modernos discípulos de Satie. Mas o mais difícil de explicar é que Thibaudet se tenha dado ao trabalho de gravar rigorosamente tudo o que saiu da mão de Satie, incluindo os mais estéreis exercícios escolares. Ao menos, teve o bom senso de não observar as 840 repetições com Vexations, mas, ainda assim, os 3’38 gastos com a peça parecem uma eternidade.
O que se conclui da audição das mais de sete horas de música contidas na caixa é que não há nenhuma composição que se aproxime das jóias de início de carreira que são as Gymnopédies e as Gnossiennes, cuja fórmula mágica Satie parece ter perdido (ou não quis repetir), ainda que os Nocturnes (1919), sobretudo o n.º3, tenham mérito.
[Gnossienne n.º4, por Jean-Yves Thibaudet]
O som de Erik Satie
O triplo CD The sound of Erik Satie (Erato) consagra dois CDs à música para piano e um à música coral e orquestral, em gravações de 1967-2015 provenientes dos catálogos EMI, Virgin Classics e Erato. A música para piano está entregue a músicos do quilate de Aldo Ciccolini, Anne Queffélec e Alexandre Tharaud (Ciccolini, que deixou um legado de uma centena de discos, foi, enquanto esteve no activo, o mais reputado intérprete de Satie e gravou as suas obras na íntegra); a música coral e orquestral a várias formações e maestros franceses, onde avultam os nomes de Michel Plasson e Pierre Dervaux.
A música orquestral amostrada é mais própria do coreto ou da sociedade recreativa do que da sala de concertos. A excepção é a Gymnopédie n.º1, mas a orquestração de Debussy, ainda que refinada e filigranada, pouco adianta: é na elegância depurada da versão original para piano solo que estas peças revelam todo o seu suave poder hipnótico.
No propósito de mostrar as várias facetas de Satie, The sound of Erik Satie inclui a sua única obra litúrgica, a muito raramente ouvida Messe des pauvres (1895), do período místico do compositor – poderá haver quem queira descortinar no seu enigmático título uma manifestação da consciência social do autor, mas a pobreza que aqui é mais óbvia é a da própria composição.
A audição destas duas reedições panorâmicas torna evidente o que poderá não ser imediatamente perceptível na audição de peças isoladas: sob a figura excêntrica de Satie e os seus títulos irreverentes e sarcásticos, oculta-se um talento musical limitado. A sua produção é pautada pela incipiência e pela aridez e muito do seu louvado minimalismo decorre menos da depuração do que da mera pobreza de ideias – pode dizer-se, usando um dos seus imaginativos títulos, que a sua música é uma colecção de “embriões ressequidos”.
Tal como o punk teve o mérito de arejar um meio musical estagnado, saturado pelos miasmas da putrefacção do rock sinfónico, mas pouco trouxe de válido em si mesmo, dado o rudimentarismo da sua linguagem e as confrangedoras limitações dos seus cultores, também a música de Satie pouco mais tem para oferecer do que o desprezo e a troça pela pompa, pelos excessos sentimentais e pelas convenções académicas do tardo-romantismo. Houve quem o tivesse percebido logo, como foi o caso de Eric Blom, crítico do The Guardian, que num artigo de 6 de Julho de 1926, a propósito de uma “noite Satie” promovida por Diaghilev em homenagem ao compositor falecido um ano antes, realça a “estranheza estudada que macula quase toda a obra de Satie. Satie teve o trágico destino de ser um compositor humorístico que toma as suas brincadeiras desesperadamente a sério. Aplica-se nos seus gracejos musicais com o ar solene de quem desempenha uma momentosa missão artística e assim estraga a piada. […] Mas o verdadeiro problema é que a única coisa divertida destas peças está nos títulos extravagantes que lhes deu e que a música em si mesma é lamentavelmente anémica e maçadora”.