João, Rodrigo, Francisco, Martim, Santiago, Tomás, Afonso, Duarte, Miguel e Guilherme – foram estes, por ordem decrescente, os 10 nomes de rapazes mais escolhidos pelos pais. Pelo lado das raparigas tivemos Maria, Matilde, Leonor, Beatriz, Mariana, Carolina, Ana, Inês, Sofia e Margarida. A lista diz respeito a 2014, mas quase poderia ser de 1314, pois estão de regresso os velhos e sólidos nomes que povoam as crónicas da Idade Média. Quem ousaria prever, há 20 anos, que Martim e Santiago regressariam de entre as brumas da história? E Martim até teve um resultado menos bom em 2014, pois foi 3.º em 2013, 2011 e 2010 e 2.º em 2012.
Um estudo sobre antroponímia medieval no Alentejo, da autoria de Diogo Vivas e André Oliveira-Leitão, baseado numa inquirição realizada em 1375-76, aponta João, Estêvão, Afonso, Lourenço, Domingos, Martim, Gonçalo, Vasco, Fernando e Pedro como os 10 nomes mais frequentes (infelizmente, as mulheres eram assunto que pouco preocupava a burocracia estatal de então, pelo que a amostra colhida é demasiado pequena para ser representativa). Com excepção de Estêvão, entretanto caído em desgraça, poderia ser uma lista do nosso tempo.
Um top ten do século XVI (obtido a partir dos processos pela Inquisição de Lisboa, num estudo antroponímico de Robert Rowland) mostra já cenário bem diverso, com João, António, Pedro, Manuel, Diogo, Francisco, Simão, Gaspar, Luís e Jorge a dominar. Nos nomes femininos, o mesmo estudo alinha, para o século XVI, Isabel, Beatriz, Maria, Leonor, Catarina, Branca, Ana, Inês, Filipa, Violante e Guiomar. Guiomar e Branca atravessam hoje um mau momento e é improvável que Violante volte a ter voga, mas os restantes nomes continuam pelos tops de hoje.
“What’s in a name?” é a pergunta que Shakespeare coloca nos lábios de Julieta, que dá também a resposta: “Aquela a que chamamos rosa, o mesmo doce odor teria se outro nome tivesse” (“That which we call a rose by any other name would smell as sweet”). Julieta diz isto a Romeu, para fazer-lhe ver que aquilo que os separa – o pertencerem a famílias inimigas – pouco importa. Mas mesmo que os dois amantes estejam prontos a desenvencilhar-se dos nomes que carregam (“chama-me amor e terei recebido novo baptismo; daqui em diante não mais serei Romeu”, responde-lhe Romeu), a onomástica acaba por prevalecer e empurrá-los para um desfecho funesto. Pode adivinhar-se que Shakespeare colocou a negação da relevância dos nomes na boca de Julieta para a desmentir, pois, dizem-nos os estudiosos do dramaturgo inglês, os nomes das suas personagens foram meticulosamente escolhidos de forma a que as suas raízes etimológicas estejam ligadas às naturezas ou aos destinos daquelas, dando pleno cumprimento ao provérbio latino “Nomen est omen”.
Do fardo que um nome pode representar se ocupa o romance Filomeno, a mi pesar (Prémio Planeta em 1988), em que Gonzalo Torrente Ballester narra a vida (fracassada) de Filomeno Freijomil, que detesta o nome que o pai lhe deu – “Filomeno, com muita pena minha” é a frase com que se apresenta. Só que a sua avó materna, portuguesa, lhe conferiu outro nome, Ademar de Alencastre e, passando Filomeno/Ademar a infância dividido entre o pai e a avó (a mãe morrera quando do seu nascimento), recebe duas educações distintas e desenvolve uma dupla personalidade, comportando-se de forma diferente consoante o meio em que está e o nome que usa.
Em Here and now, um volume que colige a correspondência trocada entre J.M. Coetzee e Paul Auster, o primeiro faz notar que os nomes que os pais atribuem aos filhos acabam por ter consequências e que até o esforço para atribuir à criança um nome o mais neutro possível, que não lhe cause embaraços na vida, pode acabar por recair sobre quem assim foi baptizado. Conclui Coetzee, ecoando o “Nomen est omen”: “O teu nome é o teu destino. Édipo [Oidipus], Pé-Inchado. O único problema é que o teu nome revela o teu destino mas à maneira da Sibila de Delfos: sob a forma de charada. Só quando jazeres no teu leito de morte compreenderás o que significou ter sido ‘Tamerlão’, ‘John Smith’ ou ‘K.’ Uma revelação borgesiana.”
A isto Auster replica que que passou a vida a meditar no seu nome próprio e, misturando etimologias latinas e um “velho eufemismo americano”, conclui que o seu significado pode ser interpretado como “pequeno peido”. Auster está a esforçar-se, arduamente, por dizer qualquer coisa de espirituoso (e fazer por passar despercebido o facto de não estar à altura de Coetzee), mas foge-lhe a boca para a verdade: com efeito, trata-se de uma descrição bastante aproximada do real valor literário daquele que muitos consideram ser “o maior escritor americano vivo”.
A relação entre onomástica e destino é assunto que fascina quem lida diariamente com palavras, mas também cativa economistas e estatísticos: em Freakonomics (2005), Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner dedicam-lhe um capítulo, cujo título remete para as linhas de Romeu e Julieta acima citadas: “Would a Roshanda by any other name smell as sweet?” Pode um nome estar associado a um destino? E, em caso afirmativo, é o nome que molda o destino ou é o meio socio-cultural em que se nasce que determina a escolha de nomes? O capítulo aborda o crescente afastamento onomástico entre brancos e negros (um fenómeno que se iniciou nos anos 70), o efeito dos rendimentos familiares na escolha dos nomes (há, por exemplo, uma tendência para os pais brancos de estratos mais baixos usarem diminutivos como nomes próprios), a crescente diversidade de nomes disponíveis (o que é facilitado por nos EUA a escolha de nomes ser inteiramente livre) e a elevada taxa de renovação do top de nomes mais populares.
Esta última decorre em parte do efeito de emulação entre estratos sociais: “quando um nome ganha voga entre os pais de rendimentos e educação elevados, começa a propagar-se pela escada socio-económica abaixo”. Embora seja corrente a ideia de que as classes baixas são, na escolha dos nomes dos filhos, influenciados sobretudo pelas celebridades da TV e das revistas cor-de-rosa, Levitt & Dubner concluem que tal efeito é pouco significativo. A tendência que domina é os pais de estratos baixos darem aos filhos os nomes que se usam entre quem está bem na vida. Foi este efeito de emulação das elites que, por cá, fez com que Martim e Santiago, que passaram muito tempo confinados a meia dúzia de solares e condomínios fechados, tomassem de assalto blocos de apartamentos no Fogueteiro e em Gondomar. É claro que a emulação onomástica da elite pela populaça leva os pais das classes altas a abandonar os nomes entretanto vulgarizados – o que resulta numa fuga sem fim.
As conclusões de Levitt & Dubner não podem, todavia, ser transferidas acriticamente para países como Portugal, com uma história e uma realidade socio-económica bem diferentes e em que a escolha de nomes está condicionada a uma lista fechada. Há quem veja na lista homologada pelo Instituto dos Registos e Notariado (IRN) um cerceamento à criatividade e livre arbítrio dos pais, mas também pode ser encarada como um dispositivo de segurança, que pode salvar um miúdo de passar a infância e adolescência a ser infernizado à conta de um nome estapafúrdio.
Nessa vertente, porém, a lista do IRN pouca ou nenhuma protecção oferece, uma vez que permite Adamastor, Consulino, Gildásio, Habacuque, Janardo, Jitendra, Lucileine, Principiano, Torpécia e Tanagra (que mais parece saída de uma lista do Infarmed e, em particular, da secção respeitante à terapia da disfunção eréctil). Preocupante para a harmonia familiar é a presença na lista de Édipo e Electra – resta esperar que o notário tenha lido Sófocles e Eurípedes e advirta os incautos pais de que estão a tentar o destino e sugira como alternativa algo mais neutro, como Edmero e Eliseba.
É difícil compreender o que causa a maioria das alterações na popularidade dos nomes – basta considerar que José, embora sendo nome bem antigo, passou séculos na obscuridade e era ainda pouco corrente no século XVI; nos séculos XVIII/XIX subiu ao segundo lugar e andou sempre entre o primeiro e segundo lugar durante o século XX, até que começou a derrapar no ranking na década de 1990; ultimamente, luta para não ser expulso do top 20.
Há quem sugira – mas seriam necessários estudos estatísticos para confirmá-lo – que personagens de telenovelas, jogadores de futebol e cantores pimba têm sido forças decisivas na onomástica portuguesa das últimas décadas.
À ascensão da telenovela brasileira, contrapõe-se o declínio do interesse pelos estudos clássicos, o que talvez explique o eclipse total de nomes gregos relativamente populares no início do século XX: Agapito (amado), Aniceto (invencível), Anastácio (ressuscitado), Aristides (o melhor aspecto [físico]), Atanásio (imortal) e Teófilo (amado por Deus) desapareceram de circulação, pese embora as estupendas qualidades que pressagiam aos seus portadores. Numa era pouco propícia a actos heróicos, Aquiles, Alcides, Jasão, Teseu e Ulisses tiveram idêntico destino. Aristóteles e Pitágoras ganham pó nas listas do IRN e não é provável que surjam Sócrates nos tempos mais próximos.
Por outro lado, houve nos anos 80 e 90 uma invasão russa nos nomes femininos em Portugal, embora tal não tenha sido suscitado por um renovado interesse por Pushkin, Tolstoy e Dostoievsky (e o afluxo de imigrantes ucranianos seja mais tardio). A bem dizer, o que invadiu Portugal não foram os nomes russos mas os seus diminutivos: Cátia (de Yekaterina), Nádia (de Nadezhda), Natacha (de Nataliya), Sónia (de Sophia) e Tânia (de Tatiana). Mas se estes são nomes que se tornaram correntes em todo o mundo Ocidental no século XX, Portugal é dos poucos lugares (com Itália) onde se popularizou a bizarria que é o nome feminino Vânia, proveniente do diminutivo de Ivan (lembremos O tio Vânia, de Chekhov), o que o torna equivalente a Joãozinho.
Esta inexplicável vaga russa mostra como é difícil antever tendências evolutivas na onomástica. Esta continuará a ser ditada pelo imprevisível equilíbrio entre, por um lado, a vaidade e a sede de prestígio, originalidade e exotismo dos pais, e, por outro, o receio destes em criar um alvo para bullying na hora do recreio. É previsível que as elites, horrorizadas com a proliferação de Martims e Santiagos entre os filhos das porteiras e dos padeiros, abandonem estes nomes e busquem alternativas com pátina medieval e ressonância fidalga em Sancho, Aldonça, Geraldo, Egas, Adosinda, Gualdim e Lopo (mas não em Paio e Beringuela), por incongruente que tal possa parecer na era do smartphone e do Twitter.
A extravagante onomástica das classes médias-baixas sul-americanas continuará a infiltrar-se através dos plantéis do Benfica e F.C. Porto, mas o IRN será irredutível na oposição à importação de nomes de personagens de A Guerra dos Tronos. Apesar do declínio do número de “católicos praticantes”, os apóstolos continuarão bem representados, com a compreensível excepção de Judas – embora Judas Tadeu tenha tido uma vida pia, é Iscariotes que vem logo à mente. Embora a memória das três invasões francesas já se tenha esbatido, Napoleão continuará a ter escassa procura e Adolfo permanecerá circunscrito ao círculo dos que crêem que Auschwitz é uma ficção sionista. A outrora popularíssima Cátia Vanessa não é avistada já há uns anos e não se prevê que regresse tão cedo.