São todos de esquerda, mas, para quem os vê na rua, as semelhanças quase se ficam por aí. João Ferreira é o mais austero, quase pedagógico — nunca perde uma oportunidade para tentar convencer alguém que passa de uma proposta sua, nunca desiste de um debate com um potencial eleitor. Beatriz Gomes Dias discute menos, cumprimenta toda a gente e sorri enquanto se apresenta, esforçando-se por associar a cara à fotografia que aparece nos panfletos. Fernando Medina não precisa disso: enquanto presidente é o mais reconhecido e também faz por isso — ao incumbente toca sempre fazer mais conversa, mas também ouvir mais queixas.
As diferenças entre os candidatos da esquerda à Câmara Municipal de Lisboa parecem, enumeradas desta maneira, superficiais — mas vão bem para lá de questões de estilo. Durante o fim de semana, o Observador acompanhou as três campanhas de perto e ouviu os três candidatos que ora se apresentam como rivais, ora como potenciais parceiros, dependendo da estratégia (e da proximidade das eleições).
A diferença essencial reside mesmo aí: Beatriz, João e Fernando andaram quase pelos mesmos sítios, mercados e ruas, mas sempre a mostrar que têm objetivos políticos bem diferentes. A primeira e o segundo querem evitar a todo o custo a maioria absoluta do PS; o terceiro apela diretamente ao voto útil, fazendo tudo para bipolarizar a corrida entre si e o PSD (com o sonho da maioria absoluta na cabeça?). Assim, pelo menos até dia 26, cada um segue o seu caminho.
Uma manhã clássica e um recado de Louçã
Para sábado de manhã, os jornalistas estão avisados de que o Bloco de Esquerda terá uma ação de campanha no mercado de Benfica, com um fator de atração especial: a presença do fundador Francisco Louçã. No manual das campanhas políticas, o momento tem todos os ingredientes para ser um clássico: toda a gente sabe que sábado é dia de mercado — dia forte para tentar angariar votos por entre as bancas do peixe e da fruta — e a presença de um convidado especial dá sempre uma força extra a uma campanha. Mas é por a ideia não ser propriamente original que o mercado de Benfica se prepara receber, exatamente à mesma hora, a comitiva de Fernando Medina.
Louçã no terreno para trazer um shot de notoriedade à campanha do Bloco. “Esta é a Beatriz!”
Com um telefonema pelo meio, as equipas lá se acertam e o Bloco acaba a contornar o mercado pelo lado oposto àquele por que Medina entrará. Os dois partidos foram parceiros durante os últimos quatro anos, mas em fase de campanha, o distanciamento é aconselhado. Não há cumprimentos nem fotografias em grupo. O recado político da manhã bloquista fica a cargo de Louçã e vai direto aos socialistas: “É muito importante que o PS não tenha maioria absoluta para não se esquecerem as políticas sociais”. Mais claro: “O Bloco quer ter um pelouro na base de um acordo que proteja essa governação” — até porque, segundo Louçã, “todos os pontos fracos na governação de Medina foram de pelouros mal geridos ou com proximidade dos grandes interesses”.
Missão do PS: bipolarizar. E ignorar a esquerda
Medina quase poderia ter ouvido por si próprio o recado, não fosse a visita ao mercado de Benfica ter sido “de médico”. Com uma agenda frenética — a dos outros partidos deve intensificar-se nesta segunda semana, mas o incumbente já arrancou com um calendário cheio — por essa hora já corre o segundo mercado do dia, o de Alvalade, bem disposto e sempre com um molho de rosas na mão, pronto a oferecer às senhoras.
Se no mercado de Benfica Louçã emprestava a sua notoriedade à campanha de Beatriz, que ainda não tem palco na câmara — já foi eleita na freguesia de Arroios, mas é a primeira candidatura à autarquia — com Medina acontece o contrário: fala com toda a gente, acena de longe e de perto, oferece flores, tira fotos, pede fotos, canta, abraça, avança. A vida de incumbente é, nesse sentido, mais fácil, e Medina sabe disso. “Há quatro anos (nas eleições de 2017) eu só estava na Câmara há dois, ainda não tinha tido nenhuma eleição [Medina ‘herdou’ a autarquia das mãos de Costa, quando este conquistou a liderança do partido]. Agora há uma confiança reforçada e toda a gente nos conhece”.
É exatamente esse valor — o do reconhecimento e da “confiança” — que Medina espera aproveitar nas urnas, no dia 26. Espera ter maioria absoluta? “As maiorias absolutas não se pedem nem se decretam”. Então como é que se chega lá? Ignorando os partidos que as possam anular.
É por isso mesmo que Medina não faz uma única referência à esquerda — PCP e BE até poderão vir a ser parceiros pós-eleitorais, mas o PS não quer falar sobre isso — e aponta todas as baterias à direita, tornando Carlos Moedas o seu único adversário. “Só haverá um governo progressista na cidade se o PS ganhar. Essa é que é a questão. É preciso concentrar os votos [da esquerda] no PS”, reforça.
Para os partidos de esquerda, que não chegam a ser nomeados antes de Medina partir para entregar mais rosas e cumprimentos de punho com punho, sobram promessas de “capacidade de diálogo”, mas sempre com a mesma ressalva: no dia 26 “só há uma escolha possível”. É o discurso mais perigoso para a BE e PCP: se a perceção do eleitorado for que a opção é uma vitória de Medina ou uma vitória de Moedas, lá se vão os votos que reforçariam os potenciais parceiros do PS.
Missão do BE: travar Medina
A ideia fica ainda mais clara umas horas mais tarde, quando a comitiva que anda a correr o país com Catarina Martins estaciona em Lisboa, no largo de São Carlos, para um comício alargado a todo o distrito mas com discurso focado nos objetivos políticos para a capital. Se dúvidas houvesse, a líder dissipa-as: “É onde acaba a maioria absoluta do PS que começa a mudança na cidade”, sentencia.
E o que é que o Bloco, por seu lado, promete? Fazer o que ainda “tem de ser feito”, não “desistir”, “avançar” no que o PS travou. Ou seja, continuar a tentar condicionar o PS. Para isso, é imperativo que consiga voltar a influenciar a governação da cidade — até porque, para um partido com zero presidências de câmara, é mesmo essa a maior prova de força autárquica que tem.
Missão do PCP: atacar os dois vizinhos
O PCP não anda longe. Por entre mercados, arruadas e comícios, o dia vai avançando e são horas do pôr do sol — na agenda oficial da CDU, de um “sunset” — no miradouro de São Pedro de Alcântara. É ali que João Ferreira se encontra com umas quantas dezenas de jovens da ‘jota’ comunista ou pelo menos próximos dela para falar de Cultura e ouvir um momento de rap protagonizado por GDM, que também atuou, há dias, na Festa do Avante!.
Mas isso não quer dizer que não haja tempo para a política: Ferreira não só nunca se esquece, quando fala dos últimos anos, de apontar responsabilidades também ao BE — é preciso lembrar aos eleitores de esquerda que o outro potencial parceiro do PS também falhou nos objetivos de habitação acessível, por exemplo — como lança uma farpa ácida no meio desta intervenção, já quase sem sol ao fundo. “Peguem no acordo de governo — foi esse o nome que lhe deram –, que encontrarão facilmente — se não o tiraram já — na internet. Não foi por falta de recursos que não se fez mais”.
O PCP não esclarece exatamente que tipo de acordo quererá — Ferreira diz que quer assumir pelouros, Jerónimo já veio recusar acordos formais com o PS — mas de uma coisa tem a certeza: é preciso travar uma maioria absoluta socialista, por um lado, mas também a influência bloquista na câmara, por outro.
No domingo, a esquerda volta a estar próxima — geograficamente falando, claro. Na feira do Relógio, na zona de Marvila, Beatriz Gomes Dias anda acompanhada de Mariana Mortágua e Luís Fazenda — o segundo fundador a dar-lhe força neste fim de semana — a dar panfletos e a repetir o mantra do costume: o acordo de 2017 só foi possível porque “o PS não teve maioria absoluta”.
Medina fará exatamente o mesmo percurso, nem duas horas depois. E Ferreira anda por Marvila, pelas ruas dos bairros, a recolher queixas sobre a habitação municipal e a gestão da Gebalis e a contrariar quem lhe diz que “vocês” são todos iguais. “Vocês é muita gente”. De quem é que se quer distanciar? Da gestão de PSD e CDS, claro, mas também da do PS, “nos últimos anos com a ajuda do Bloco de Esquerda”. “Estiveram no poder e tiveram muito dinheiro, mas fizeram pouco”. Conclusão? “Temos de pôr nome às coisas” — aos partidos — “se não somos sempre enganados…”.
Parceiros? Só depois de contar os votos
Para os vizinhos da esquerda, o dia está arrumado a partir da hora de almoço; só Medina segue, enérgico, para as ações da tarde. Debaixo de sol quente, apanha o barco — um cargueiro tradicional do Tejo — e enche-o de ‘jotas’ para fazer, qual guia turístico de microfone na mão, um apanhado da obra socialista na zona ribeirinha da cidade. Mais uma vez, os nomes do Bloco de Esquerda — mesmo tendo sido parceiro de governo na cidade — e do PCP não passam nem uma vez pela boca de Medina.
Golfinhos e uma vista “apaixonante”. No Tejo, Medina fez de guia turístico e atirou contra a direita
As balas são todas disparadas contra a direita, em tom irónico: lembra as críticas à transformação do que era um parque de estacionamento no que é hoje o Terreiro do Paço, os ataques à taxa turística (as famosas “taxas e taxinhas” contra as quais o então ministro António Pires de Lima bradava), as propostas “diametralmente opostas” sobre habitação — embora a habitação acessível seja um dos tópicos em que tanto esquerda como direita se põem de acordo quanto ao falhanço dos objetivos de Medina.
Seja como for, se BE e PS não deixam passar uma ação sem falar do PS, Medina faz o contrário: atira a Moedas e concentra-se em bipolarizar a corrida. No final da viagem, abandona o barco satisfeito e sozinho (Rui Tavares até estava sentado dois lugares ao lado, mas segue à frente). Se terá companheiros de viagem à esquerda no caso de ser reeleito no dia 26, só depois se saberá — até porque só depois de os votos estarem nas urnas terá interesse em falar sobre o assunto.