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FOTO: VERA MARMELO

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O incansável baile de Luca Argel com a História

Sabina foi heroína sem querer e dela pouco se sabe. Luca Argel trouxe a quitandeira do Rio para o presente e em redor dela construiu novas canções. O músico apresenta-nos o álbum, a editar no dia 22.

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Sabina era negra. Sabina era branca. Sabia era vendedora de laranjas, mas ficou sem a sua quitanda. Sabina, na verdade, chamava-se Geralda. Sabina é passado e presente espremidos pela mão de Luca Argel, que de um episódio contido no tempo propôs uma reflexão sobre os nossos traumas que ainda não foram ultrapassados. Assim nasceu Sabina, o álbum, quarto da carreira a ser apresentado, como todos os anteriores, na quarta-feira de cinzas, este ano assinalada a 22 de fevereiro.

O disco, como já nos tinha contado no final do ano passado o cantor brasileiro residente em Portugal, nasceu dentro do processo de Samba de Guerrilha (2021), esse trabalho sublime que revê a história da escravatura, do racismo e do colonialismo através da revisitação de sambas e cantares de quilombo antigos.

“Durante as pesquisas do Samba de Guerrilha acabei por esbarrar em várias histórias que não são necessariamente relacionadas com o samba, mas com comunidades negras do Brasil e do Rio de Janeiro, em particular. A história da Sabina conheci pela primeira vez através de uma crónica do Luiz António Simas, que é um dos autores que eu mais li para fazer estas pesquisas”, diz em entrevista por Zoom ao Observador, de manta às costas em dia de temperaturas de um dígito.

[ouça aqui o álbum “Sabina” de Luca Argel na íntegra, através do Spotify:]

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Se em Samba de Guerrilha Luca apresenta a versão da história que os manuais não contam, em Sabina o cantautor adota um olhar muito mais presente, observando a constante repetição de certos padrões que insistem em não se quebrar, em não sarar. “Esta história resgata muitos traumas do nosso passado. Estamos em 2023 e o assunto da representatividade parece que está mais presente hoje do que estava há 10 ou 15 anos. Enquanto sociedade, ainda não nos conseguimos organizar para que isso já não seja uma questão e para que o assunto seja superado”, refere. A história de Sabina foi escolhida precisamente para suscitar esses debates.

Mas então, quem foi Sabina?

A narrativa sobre a qual o disco gravita tem tanto de lenda como de verdade, de cómico como de trágico. Sabina, sabe-se, foi uma quitandeira negra que vendia laranjas à porta da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. No final do século XIX, a sociedade brasileira vivia um período de enorme tensão, com lutas políticas entre a fação republicana e monárquica. Sabina, que não tinha nada a ver com a “briga entre duas elites brancas”, sublinha Argel, apanhou por tabela.

Em julho de 1889, os alunos de medicina – “republicanos até aos ossos e os principais clientes das laranjas de Sabina”, escreve Luiz António Simas na sua crónica – atiraram as frutas da vendedeira contra o Visconde de Ouro Preto, figura imponente do Império. O subdelegado Jacome Lazary, sabendo do ocorrido, convocou a polícia e expulsou Sabina do seu posto de venda, apreendendo o seu tabuleiro e as suas laranjas.

Ir atrás para seguir em frente, é exatamente este o desafio para o qual Luca Argel nos convoca. Não é um desafio atirado de forma individualizada, mas apontado ao coletivo. Para o concretizarmos, há que pedir desculpas enquanto nação, defende o autor. “Portugal ainda precisa de evoluir muito em termos de legislação no combate ao racismo. Sozinho, um pedido de desculpas não faz absolutamente nada, mas cria no computo social um caldo de cultura que ajuda a pressionar nesse sentido”, defende.

Os estudantes de medicina não gostaram desta atitude e organizaram uma passeata, em jeito de charivari carnavalesco, para mostrar a sua revolta contra a apreensão do negócio de Sabina. O episódio ocorreu no dia 25 de julho de 1889 e pintou-se de vários elementos irónicos, desde logo com os estudantes a afirmarem não estar a promover uma manifestação política, mas sim uma manifestação agrícola.

Nas suas bengalas levavam laranjas espetadas e, à medida que percorriam as ruas do Rio de Janeiro, iam recebendo saudações e estrondoso apoio popular. Uma coroa feita de bananas, chuchus e outros legumes foi pendurada na entrada das instalações do subdelegado Jacome Lazary, apelidado de “eliminador das laranjas”, que viu a sua ordem revogada pelo superior, tornando-se alvo de chacota pública. Sabina voltava, assim, a ter o seu tabuleiro à porta da Faculdade de Medicina.

Porém, da personagem que aqui assume quase o papel de uma Marianne negra de Delacroix, pouco ou nada se sabe. Aliás, é possível que Sabina, nessa altura, já tivesse morrido. A revista Brazil Médico aponta para isso mesmo, ideia reforçada pelo jornal Gazeta de Notícias. Portanto, aquando deste episódio, era Geralda que vendia as laranjas no posto anteriormente assumido por Sabina. Mas para a história ficou Sabina, a quitandeira “pesadona e ex-escrava”, escreveu o mesmo jornal, “símbolo social e tropo-cultural”.

Luca Argel segue a experimentação e o fervor rítmico que já havia explorado em "Samba de Guerrilha", mas desta feita com uma abertura ainda mais ousada

VERA MARMELO

Já depois da queda do império, Artur e Aluísio de Azevedo pegaram na comicidade deste evento para o popularizar na revista teatral “A República”. Chamaram a soprano grega Ana Menarezzi para interpretar o papel de Sabina e “As Laranjas de Sabina”, canção bandeira da peça, foi das primeiras em que a palavra “mulata” apareceu na música brasileira. A atriz que a cantava era branca.

Sabina foi, assim, duplamente branqueada: “É curioso como ela é a personagem, mas nem sobre o nome dela ao certo sabemos. A própria que viveu a história com os estudantes, ninguém tem a certeza se era a Sabina original. Ninguém foi atrás para perceber quem era realmente aquela mulher”, remata Luca Argel.

Pedir desculpas não dói

Ir atrás para seguir em frente, é exatamente este o desafio para o qual Luca Argel nos convoca. Não é um desafio atirado de forma individualizada, mas apontado ao coletivo. Para o concretizarmos, há que pedir desculpas enquanto nação, defende o autor. “Portugal ainda precisa de evoluir muito em termos de legislação no combate ao racismo. Sozinho, um pedido de desculpas não faz absolutamente nada, mas cria no computo social um caldo de cultura que ajuda a pressionar nesse sentido”, defende.

[o vídeo de “Peça Desculpas, Senhor Presidente”:]

Com este gesto, sublinha, as vítimas sentir-se-iam reconhecidas e socialmente empoderadas e os agressores receberiam uma mensagem de intolerância perante os atos de violência. “Às vezes um gesto simbólico repercute no tecido social e encoraja ou desencoraja comportamentos. O pedido de desculpa vai ter esse efeito inevitavelmente.”

É precisamente essa mensagem que está contida em “Peça Desculpas, Senhor Presidente”, o primeiro single de “Sabina” e a canção mais curta de sempre do repertório de Luca Argel. “Peça desculpas, senhor presidente / não dói / não sentes” ouve-se em repetição, primeiro a solo e depois entoada por um coro de crianças. Não é o pedido de desculpas das lições primeiras que todos nós aprendemos, bem antes de sabermos juntar letras e de nomear todas as cores?

Que um ato tão simples seja tão difícil de pôr em prática é algo que desconcerta Luca Argel. Portugal e Espanha, as duas grandes nações colonizadoras do séc. XV (quanto a nós, tivemos o monopólio do comércio de escravos por praticamente 200 anos) são das raras exceções na Europa e também no mundo que ainda não formalizaram um pedido de desculpas pelos abusos coloniais. “Em algum momento da história, o pedido de desculpas vai ter de ser feito, só não sabemos quanto tempo vai demorar”, crê Luca Argel que, no videoclip do single enumera as várias nações que, de diferentes formas, já o fizeram.

"Sabina envolve semba, samba, rock, melodias orientais, música nordestina, ritmos afro-brasileiros; lembra Aline Frazão, por vezes Bixiga 70, outras Emicida, Bonga descaradamente em “Lampedusa”. Em suma, é um caldeirão de influências conjugadas com uma certa irreverência ao estilo free jazz: “É engraçado, eu nem saberia exatamente classificar algumas músicas”.

Ao nos evadirmos deste ato, estamos a reforçar a “paz negativa” que criámos com o nosso passado, prossegue, pegando num conceito abordado por Martin Luther King: “A paz negativa é uma paz que é conseguida pelo apagamento dos atritos e é construída sobre um piso de injustiça, fingindo-se que está tudo bem. A paz positiva é construída sobre a justiça, com a finalidade de terminar com as desigualdades. Portugal cultiva uma paz negativa, porque quando alguém aparece a questionar as bases sobre as quais essa paz se construiu, toda a gente fica um pouco incomodada. Perturbar a paz negativa na busca de uma paz positiva incomoda muito. Daí a importância do pedido de desculpas.”

Os ritmos dos orixás

Embrulhando o pedido de desculpas em laranjas, passeatas e Sabinas que afinal são Geraldas, Luca Argel cozinhou um álbum concetualmente difícil de definir (mania a nossa de querer encaixar a arte em gavetas, quando ela vive precisamente da fluidez).

Sabina envolve semba, samba, rock, melodias orientais, música nordestina, ritmos afro-brasileiros; lembra Aline Frazão, por vezes Bixiga 70, outras Emicida, Bonga descaradamente em “Lampedusa” (“Mona Ki Ngi Xica” está lá de forma assumida, “tentei quase imitar o arranjo”, revela Luca). Em suma, é um caldeirão de influências conjugadas com uma certa irreverência ao estilo free jazz: “É engraçado, eu nem saberia exatamente classificar algumas músicas”.

Esmiuçando com mais atenção, percebemos que existe um pensamento musical concreto por trás disto tudo. O músico de 34 anos conta-nos que a raiz de todas as canções está, efetivamente, nos ritmos afro-brasileiros e nos toques religiosos do candomblé, cada qual associado a um orixá. “Nos arranjos, distribuí as células rítmicas de cada toque pela bateria, pela guitarra ou pelas teclas. Os instrumentos foram todos pensados como instrumentos de percussão. Daí ser feito meio free jazz”, diz, vincando que é um disco “todo polifónico”. No fundo, segue a experimentação e o fervor rítmico que Luca já havia explorado em Samba de Guerrilha, mas desta feita com uma abertura ainda mais ousada.

“Por enquanto vão ser só concertos normais”, aponta Luca Argel, mas a verdade é que com ele nunca se sabe

VERA MARMELO

O fio condutor é a crónica de Luiz António Simas, que vai sendo repetida em várias faixas do álbum, criando um efeito de redundância propositada: ora simboliza a constante repetição de certos padrões comportamentais da sociedade, colocando diferentes momentos temporais em sincronia; ora nos dá a sensação de estarmos a ser engolidos por areias movediças, sorrindo enquanto nos afogamos, tentando tropegamente esconder o desconforto das pazes mal resolvidas com o nosso passado. “É como se o trauma histórico fosse uma ponte entre o passado e o presente. No momento em que o trauma se manifesta é como se revivêssemos no presente uma experiência do passado, como se nenhum tempo tivesse transcorrido entre uma coisa e outra”.

A religiosidade das letras faz-se de ancestralidade

Essa diluição do tempo está igualmente plasmada nas letras. Por vezes não sabemos muito bem se Luca Argel está a falar do que passou ou da atualidade, das contradições sociais ou individuais. Dentro de nós, afinal, “vivem dois demónios rivais”:

“Um começa o motim
o outro limpa o convés
um amarra-me as mãos
o outro solta-me os pés”

Assim canta em “Gêmeos”. A confusão faz parte da reflexão proposta. Estamos todos enfiados nesta contradição histórica.

Para nos deixar ainda mais zonzos, há um puzzle de vozes que atravessa os séculos e que conflui na própria voz de Argel. Há versos de Fernando Pessoa combinados com palavras de Victor Heringer, uma das grandes promessas da literatura brasileira que foi encontrada morta em 2018, com apenas 29 anos. Aldir Blanc aparece ao lado de expressões tradicionais do folclore português; da Macumba, Luca resgata o “amanhã” que veio “de ontem”; Matilde Campilho e Natália Correia aparecem em breves apontamentos e do sambista Wilson Moreira vem a pergunta “sangue meu / sangue teu / a mesma cor / têm a mesma cor / ou não?” Vitorino, Esperança Garcia e Mello de Menezes completam a lista de referências, que estarão assinaladas na arte do disco cada qual com uma cor.

“É como se o trauma histórico fosse uma ponte entre o passado e o presente. No momento em que o trauma se manifesta é como se revivêssemos no presente uma experiência do passado, como se nenhum tempo tivesse transcorrido entre uma coisa e outra”.

Deixar explícito de onde vêm estas vozes é, para Luca, uma forma de se aproximar do culto da ancestralidade associado ao candomblé: “Essa religiosidade tem muito respeito e reverência por quem abriu caminhos para que fizemos o nosso trabalho hoje. Quis reverenciar aqueles que escreveram as vozes que vieram antes da minha voz”.

Sabina será ainda lançado com uma banda desenhada da autoria do ilustrador carioca Allan Matias, obra gráfica que, à semelhança do disco, jogará com o tempo, colocando a personagem a deambular pelo passado e pelo presente. “As ruas por onde Sabina trabalhou e por onde passou a passeata, são ruas que ainda hoje existem no centro do Rio de Janeiro. Ainda encontramos nessas ruas as marcas do passado”.

O álbum será apresentado ao vivo no dia 23 de março, no b.Leza, em Lisboa, e no dia 26, no Novo Ático, no Porto. “Por enquanto vão ser só concertos normais”, aponta Luca Argel, mas com ele nunca se sabe. Samba de Guerrilha também começou contido, centrado apenas nas músicas do álbum e, de repente, cresceu para um espetáculo com ilustrações e com Nádia Yracema, que dá voz à crónica de Simas em Sabina, a assumir a narração em palco, ao jeito spoken word. A ver se Sabina não vira uma grande passeata.

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