Há um silêncio e um vazio preponderantes quando olhamos para as fotografias de André Cepeda (Coimbra, 1976). Não precisam de uma banda sonora, nem de um contexto definidor à partida. Pelo contrário. Esse aspeto, que a princípio pode refletir uma certa frieza, faz parte do seu trabalho. “Costumo dizer que me encontro no silêncio. No ato fotográfico, o som e o barulho são importantes, mas quando chego a um determinado lugar e encontro um determinado silêncio, as imagens surgem”, explica o fotógrafo, que ao longo das últimas duas décadas, tem apresentado um corpo de trabalho reconhecível, de forte cunho autoral, onde se exploram lugares (muitos deles abandonados), geografias afetivas e o nosso lugar como indivíduos na sociedade. Estas premissas estão igualmente presentes em Double Jeu, a sua exposição, que inaugurou esta terça-feira, dia 30 de janeiro, na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa.
Na presente mostra, a primeira neste espaço desde 2017, apresentam-se cinco obras inéditas em grande formato, todas a preto e branco, onde se aprofunda – tal como o título indica – a noção de dupla representação, tanto pela forma como pelo seu conteúdo. Um primeiro conjunto de três fotografias incitam a um diálogo interior. Numa surgem duas grandes rochas, noutra duas almofadas numa cama e, por fim, na terceira imagem, duas cadeiras ao redor de uma solitária mesa de café. “Estamos sempre a ser confrontados com esta duplicidade, entre objetos, entre a luz e a sombra”, explica. A representação duplicada aplica-se também à nossa vivência. “Estamos sempre entre uma ideia de bem e mal”, advoga, como exemplo. Recordam-se outras obras onde este ‘jogo duplo’ existe, como A Dupla Vida de Véronique, de Krzysztof Kieślowski, mas também o enigma dos espaços e da sua degradação, como vemos nos filmes de Pedro Costa.
As fotografias de André Cepeda também exploram texturas e formas de rigidez, nunca colocando de lado esse lado de descoberta existencial. A dureza das rochas, o conforto das almofadas ou a solidão das cadeiras vazias. De igual forma, o artista trabalha com padrões e convida o espetador a fazer parte do espaço e a perder-se no seu próprio labirinto. No texto que acompanha Double Jeu, Christiane Vollaire, investigadora em filosofia política e estética, salienta que a obra de Cepeda “suscita uma preocupação genuína com a duplicação da modernidade matemática e da modernidade social, com todas as suas falhas, fissuras e choques, com todos os seus vestígios e sequelas”. Estamos num mundo arquitetónico e estruturado que parece em simultâneo desconexo e onde as silhuetas se perdem nas perspetivas que as rodeiam.
As fotografias de Double Jeu foram todas tiradas na mesma rua, a Sá da Bandeira, no Porto, e resultam de um processo que demorou um ano a construir. O fotógrafo não sai de casa com uma ideia estruturada, mas com um sentido de busca. “O mais importante — e essa é a maior liberdade que um artista tem — é não saber o que está a fazer. Nas muitas caminhadas que faço, passo nas mesmas ruas, olho para os edifícios, as sombras, as pessoas, e estou aberto ao erro e à falha. É a minha forma de me relacionar com o mundo”, explica. Há, no entanto, um pensamento que começa antes, com pesquisa, referências que se cruzam e a ideia de um estilo que se quer alcançar.
A par das fotografias que criou para esta mostra, Double Jeu expõe também uma obra, resultado de uma parceria com arquiteto João Luís Carrilho da Graça. Através de um maquete que recria o espaço da Galeria Cristina Guerra, podem ver-se as mesmas fotos, em pequeno formato. Salienta-se uma vez mais esse jogo duplo. Depois de vistas as fotos, é através desta maquete que se descobrem outras camadas da exposição relativamente ao seu conceito espacial. “A arquitetura faz parte do meu universo e entra no meu olhar essencialmente pelo meu interesse em mostrar a forma como vejo o mundo que nos rodeia. Neste caso, a maquete encerra a exposição, na medida em que duplica aquilo que cada pessoa vais ver antes e onde se pode experienciar de novo o caminhar dentro do espaço”.
A fotografia como forma de sobrevivência
No caso de André Cepeda, o ato de fotografar obriga a um estado de alheamento. “Preciso de entrar numa espécie de transe, de esquecer quem sou e onde estou, e isso só acontece com uma prática diária”. Foi isso que fez em Ontem (2010), onde mergulhou nas ilhas e nos bairros fechados do Porto, marcados pelo consumo de estupefacientes, mas também em Ballad of Today (2020), já em Lisboa, onde encetou a inquietante balada de uma cidade, na qual o brilho do centro financeiro se mistura com o que parece sombrio, marginal e precário. “Quando exponho estas fotos ou as edito em livro, estou a partilhar aquilo que senti e que experienciei. Se mostro mais o lado da ruína, quando podia mostrar o luxo, a verdade é que não consigo explicar o porquê, mas sinto que voltamos sempre aos mesmo lugares que, de alguma forma, nos marcaram decisivamente”, completa.
Desde cedo que a fotografia de André Cepeda manteve uma ligação pujante aos sítios por onde passou e às realidades sociais mais heterogéneas. Nascido em Coimbra, o fotógrafo recordou ao Observador a importância de uma exposição de Robert Frank, no final da década de 1980, da qual foi porteiro. “Foi muito marcante pela intensidade com que as pessoas viveram aquela mostra. Parecia que estava em Nova Iorque, mas era Coimbra”. Nos anos seguintes, participa nas montagens dos Encontros de Fotografia do Centro de Artes Visuais (CAV), faz um primeiro curso de fotografia com Teresa Siza e José Maçãs de Carvalho e toma contacto com algum do trabalho de artistas portugueses, como Jorge Molder, João Tabarra, Paulo Nozolino, entre muitos outros. “Vem daí a minha relação com a fotografia e os livros, mas nunca me imaginei a ser fotógrafo. Na verdade, a minha primeira ideia era ser impressor porque sempre achei que não tinha capacidades para fotografar e também pelo grande respeito que tinha por alguns destes nomes.”
Seguiu-se o Porto e alguns anos de trabalho no Centro Português de Fotografia. “Tudo isto durou até ao dia em que me despeço, em 1999, e vou para a Rússia.” O momento foi de viragem. André Cepeda foi para Moscovo, já no rescaldo do fim da União Soviética, onde esteve um mês a fotografar ininterruptamente a cidade num período de tremenda transformação. “Tinha de exorcizar, tirar tudo cá para fora, juntar todas as minhas referências e fotografar. Fazer tudo aquilo que tinha imaginado e que ainda não tinha tido oportunidade de fazer.” De Moscovo para Bruxelas, na Bélgica, foi nesta última paragem que recebeu uma bolsa de um ano para fotografar e, desde então ,não mais parou. “Aqueles momentos foram de libertação e onde tinha de decidir o que queria realmente fazer em relação à fotografia”, lembra. Timidamente, diz, entre as primeiras exposições e o regresso ao Porto, foram anos de experiência determinantes, mas que ajudaram a cimentar ideias.
“Queria falar sobre aquilo que via todos os dias e nessa altura o Porto estava a passar por um momento de grande transformação”, realça. Ao mesmo tempo que a televisão e a imprensa canonizavam a Invicta como destino turístico e empresarial, André Cepeda interessava-se pelo desperdício humano em recessos, ora os mais esquecidos, ora os mais pavorosos. Dessa mesma postura, dir-se-ia, que a sua fotografia ganhou um cunho social, muitas vezes marcado por uma ideia de regresso aos lugares em ruínas. A obra, filha da Revolução, empresta “a sua singular tonalidade estética a uma modernidade dececionante que não conhece fronteiras”, voltando ao texto Inadequações de Christiane Vollaire.
Mais de duas décadas volvidas, o seu olhar de flâneur – meio sombrio, meio deambulante – transporta melancolia e mistério, mas também se assume como diagnóstico sobre a sociedade em que vivemos. “Cada fotógrafo encontra as suas narrativas, mas para mim fotografar é uma forma de sobrevivência existencial.” Mais do que isso, diz-se numa nova fase. Tem viajado por outros países e ao contrário do que fez nos últimos anos, está cada vez mais interessado em fotografar os lugares onde não viveu e que desconhece. “Estou em pesquisa de um tempo e de uma origem”, sublinha. Pelo meio tem-se envolvido na música. Fundou com a mãe a Trás-os-Montes Records, que já lançou três trabalhos. “Sempre tivemos uma grande relação com a música e sempre partilhámos música entre nós.” É mais um formato que constrói arquivos, adianta.
Ainda sobre a fotografia, Cepeda salienta o papel de editoras como a Pierre von Kleist e a Ghost Editions, que têm contribuído para um maior reconhecimento face ao trabalho de artistas portugueses no domínio da fotografia de autor. Nota, porém, “uma grande dificuldade para a nova geração de fotógrafos aparecer.” Não há espaço para jogos duplos na forma como falta um base de sustentação e apoio aos fotógrafos autorais, realça. “É um milagre o trabalho e a qualidade que existe em Portugal, feito por pessoas que trabalham quase sem nada, nem apoios. O contexto é muito frágil e só é feito porque acreditamos, mesmo não existindo nenhuma política ou base que nos valorize.”
Entre a realidade e a produção fotográfica sobre essa mesma realidade, a fotografia também se assume como duplicação, que deixa vestígio e constrói memória. Nesta linha de pensamento, o trabalho de André Cepeda é sobre a procura, a surpresa do encontro e a forma como certas imagens ganham ímpeto no seu imaginário. É a sua forma de fazer parte e de se entranhar no quotidiano coletivo, mas também de ascender a alguma forma de abstração, que lhe concede por fim um outro olhar, mais poético e simbólico, mas também mais ligado ao que nem sempre se mostra. Assim se ganha o poder de dar visibilidade.
Galeria Cristina Guerra: de terça a sexta, das 11h às 19h; sábado das 15h às 19h; fechado aos feriados