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O anúncio da saída foi curto e direto ao assunto. “Demito-me do cargo de CEO da Web Summit com efeitos imediatos.” Foi desta forma que chegou o ponto final da era de Paddy Cosgrave à frente da cimeira que cofundou há vários anos na Irlanda, país onde nasceu. “Infelizmente, os meus comentários pessoais tornaram-se uma distração do evento, da nossa equipa, dos nossos patrocinadores, das nossas startups e das pessoas que participam. Peço desculpas sinceras, mais uma vez, pela dor que causei.”
Os “comentários pessoais” a que Cosgrave se refere no anúncio, divulgado este sábado à tarde, estão ligados ao conflito entre Israel e o Hamas. Feitos há uma semana, geraram uma onda de críticas à posição de Cosgrave e, uma vez que é o principal rosto da cimeira de tecnologia e empreendedorismo, também à Web Summit. “Os crimes de guerra são crimes de guerra mesmo quando são cometidos por aliados”, escreveu Cosgrave na rede social X, o antigo Twitter, a 13 de outubro.
As ondas de choque aos comentários de Cosgrave começaram a fazer-se sentir no início da semana. Dor Shapiro, o embaixador de Israel em Portugal, comunicou que o país já não ia participar no evento devido ao que considerou “declarações ultrajantes” feitas pelo CEO do evento. Seguiram-se depois anúncios da saída de oradores, como Garry Tan, da Y Combinator, e, no final da semana, a retirada de empresas. A Google, a Meta, a Amazon, a Siemens e a Intel são alguns dos nomes fortes que decidiram anunciar que já não iam participar na edição deste ano, que vai ser a oitava a realizar-se em Lisboa. Nomes fortes da programação, como a atriz Gillian Anderson, também se associaram ao protesto, porque neste caso os valores da G-Spot, a marca de bebidas que fundou, “não se alinham” com os da Web Summit. A comediante Amy Pohler, que figurava na lista de participantes, também desapareceu do site do evento.
Amazon junta-se a Google e Meta no boicote à Web Summit após comentários de CEO sobre Israel
Da fundação em Dublin, na Irlanda, de onde Cosgrave retirou a Web Summit em 2015, deixando algumas inimizades pelo caminho, o empresário deixa um legado marcado pela expansão da pegada da cimeira, mas também alguns desafios. O senhor ou a senhora que se segue é uma incógnita, mas um porta-voz da Web Summit promete que haverá um anúncio “assim que possível”. E, mesmo sem Cosgrave, foi dada a garantia de que a edição deste ano se mantém de pé – apesar da saída de figuras e empresas de relevo.
Uma cimeira com casa em Lisboa até 2028 – mas com trabalho por fazer
Os primeiros passos da Web Summit foram dados em Dublin, na Irlanda, em 2009. Na altura, Paddy Cosgrave não era o único rosto do evento que começou com cerca de 400 participantes. Na origem, antes de juntar milhares de pessoas e passar a ser descrita como “Davos para os geeks”, havia três nomes: Paddy Cosgrave, David Kelly e Daire Hickey.
Com a passagem dos anos, a Web Summit foi crescendo. Passou a ter cada vez mais participantes e, em 2015, recebeu cerca de 42 mil pessoas em Dublin. Foi o ano de despedida da Web Summit do país que a viu nascer já que, dois meses antes do arranque, na tradicional data de novembro, Cosgrave anunciou que a cimeira se mudaria para Lisboa.
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A despedida da Web Summit de terras irlandesas não ficou livre de controvérsia. Até hoje, permanece a desconfiança de que terá sido o Wi-Fi – e a dificuldade em manter milhares de pessoas ligadas à internet em simultâneo – o principal ponto a ditar a saída. Mas também há quem aponte dúvidas quanto ao apoio do governo irlandês à cimeira, por exemplo. Certo é que, no Twitter/X, Paddy Cosgrave continua até hoje a tecer críticas à política irlandesa.
De 400 a 42.000 pessoas em 4 anos. Bem-vindos à “histórica” Web Summit
Com a passagem para Lisboa, em 2016, Cosgrave tornou-se no principal rosto que os portugueses associam à cimeira. Os restantes cofundadores são figuras mais distantes – e, pelo menos um deles, David Kelly, já teve um confronto em tribunal com o agora ex-CEO.
Paddy Cosgrave acusado por cofundador da Web Summit de usar fundos da empresa para fins pessoais
Inicialmente, a vinda da Web Summit a Lisboa tinha um prazo de validade de três anos. O evento instalou-se no Parque das Nações, ocupando os pavilhões da FIL e o Altice Arena, o antigo Pavilhão Atlântico. Cosgrave encontrou em Lisboa o espaço que não havia em Dublin e também o apoio político – desde o início que o evento tem contado com figuras da política nacional, do Governo à Presidência, sem esquecer a Câmara Municipal de Lisboa — primeiro com Fernando Medina e agora com Carlos Moedas. Até agora, não há comentários da Presidência ou da autarquia lisboeta à controvérsia dos comentários sobre o conflito ou até à demissão do CEO. Paddy terá encontrado também em Lisboa uma conexão Wi-Fi mais estável, apesar de a aparente questão “dealbreaker” em terras irlandesas não ter funcionado em palco em 2016, na estreia da Web Summit em Portugal.
Crónica. Wi-Fi meu, Wi-Fi meu. Há problema maior do que o teu?
Em 2018, ficou renovado o compromisso entre o Governo e a Web Summit. Paddy Cosgrave conseguiu encontrar uma casa a longo prazo para o evento que cofundou: a Web Summit mantém-se em Lisboa até 2028, com um investimento do Estado de 11 milhões de euros por ano, num total de 110 milhões de euros ao longo da década. É um dos pontos do legado de Cosgrave: apesar das dúvidas em relação ao contrato estabelecido entre o Governo e a Web Summit, fica a estabilidade de que, ao longo dos próximos anos, Lisboa serve de casa ao evento, que tem a exclusividade da cimeira na Europa.
O legado da expansão da marca Web Summit a outros continentes
Com o passar dos anos, a Web Summit não foi ganhando só mais participantes – também foi alcançando espaço noutros continentes. A expansão fica, inevitavelmente, associada à figura de Paddy Cosgrave.
Nos últimos anos, depois de já ter criado o Rise, em Hong Kong, e o Collision, em Toronto, Cosgrave levou a Web Summit até outros continentes. Afinal, o principal rosto do evento nunca escondeu a vontade de levar a “sua” conferência até outras paragens.
Em maio deste ano, a Web Summit estreou-se no Rio de Janeiro, juntando 21.367 participantes. Ainda nem as estruturas estariam montadas no recinto brasileiro quando Cosgrave fez o “pequeno anúncio” de que a sua “pequena empresa irlandesa” ia ter mais um evento, desta vez em Doha, no Qatar, em março de 2024. “Após receber pedidos de várias cidades do Médio Oriente, a Web Summit escolheu Doha como a nova cidade para alojar o evento durante os próximos cinco anos”. Foram referidos fatores como o “ecossistema tecnológico em crescimento rápido”, com um ambiente de “startups em expansão rápida” para a escolha do Qatar para receber o evento no Médio Oriente. No entanto, no âmbito do boicote à Web Summit devido ao conflito em Israel, também a escolha do Qatar, um país apontado por referidas violações doso direitos humanos, tem sido alvo de críticas.
Web Summit vai expandir-se até ao Médio Oriente. Evento chega ao Qatar em março de 2024
Porém, em várias ocasiões, Cosgrave demonstrou a ambição de também ter a marca Web Summit em África. No ano passado, em conferência de imprensa, falou sobre a vontade de chegar a este continente em “2025 ou 2026”. “Quero que o mundo seja o mais aberto possível”, declarou.
O primeiro desafio do(a) sucessor(a): gerir a saída de empresas e de oradores…
Não se sabe quem vai ser a pessoa que vai liderar a era pós-Cosgrave, mas é certo que vai ter de gerir a questão reputacional dos comentários do antecessor, que já levou à saída de oradores, parceiros e empresas.
A menos de um mês do arranque da Web Summit, que este ano acontece uma semana mais tarde do que o habitual, há para já um desafio a curto prazo: organizar uma agenda que teve várias alterações nos últimos dias. A hashtag “BoycottWebSummit” continua a circular, ainda na sequência dos comentários de Cosgrave.
Até agora, as notícias sobre as saídas de oradores, parceiros e empresas participantes não têm merecido comentários longos por parte da organização – ou sequer confirmações sobre as saídas. “Estamos ansiosos por receber 70 mil participantes de todo o mundo com uma programação completa este novembro.” Até ao momento, além das saídas, continuam por anunciar os nomes dos participantes na cerimónia de abertura e também no encerramento.
Mas há uma incógnita, além da agenda: como é que se vai comportar e o que vai fazer Paddy Cosgrave nos próximos tempos. O anúncio da saída menciona apenas o cargo de CEO da Web Summit, mas o irlandês deverá manter a ligação à empresa, já que é acionista maioritário da Manders Terrace, a empresa que controla a Web Summit e outras marcas de conferências, detendo uma participação de 81%.
… e o trabalho por fazer da expansão da FIL
A tão falada expansão da FIL é uma questão em curso desde 2018 e que continua a gerar mais dúvidas do que certezas. Quando foi fechado o acordo para manter a Web Summit por cá, ficou assente que era necessário expandir a FIL, que habitualmente recebe os palcos temáticos da cimeira, assim como diversos espaços de empresas e startups.
Todos os anos é falado, é certo, mas até agora não há obra feita – apesar dos pedidos dos vários intervenientes. Por exemplo, em 2021, Marcelo Rebelo de Sousa encerrou a Web Summit a pedir que, no ano seguinte, o evento tivesse 100 mil participantes. Não aconteceu, já que a FIL continuou praticamente igual, mesmo com a organização da Web Summit a recorrer a estruturas temporárias para conseguir acolher mais participantes. No ano passado, o evento recebeu 71.033 participantes, ainda assim acima dos 70 mil de 2021.
Na conferência de imprensa de balanço da edição do ano passado, Cosgrave disse mesmo que o evento estava “esticado até ao limite”. “Estou preocupado com os limites de espaço”, respondeu, quando foi questionado sobre se estaria à procura de outros recintos para poder receber mais participantes. “Temos de ser muito cuidadosos para não sobrelotar o espaço ao ponto de ser perigoso.”
A expansão do recinto tem sido um tema recorrente nas entrevistas ao CEO. Em 2021, ao Observador, disse que aumentar a FIL seria um trabalho rápido, já que “é apenas um grande barracão com muitas unidades pré-fabricadas”. Um ano depois, a questão continuou a ser inevitável. Na entrevista de 2022, Cosgrave dizia não saber o que tinha acontecido para os planos não terem passado da teoria à prática, atirando que esperava novidades em 2023. Já este ano, quando voltou a ser questionado sobre o assunto da expansão, disse que quando houver “algo para anunciar, vamos anunciar”. Quanto à existência de negociações com o executivo português respondeu que há “sempre” contactos em curso. “Estamos sempre a falar”.
Até agora, até à despedida de Cosgrave, o anúncio de novidades na FIL não chegou. As próximas perguntas sobre o tema terão agora de ficar para o novo CEO.
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