Os mais recentes dados conhecidos sobre a violência doméstica pintam um quadro negro em Portugal. A maior parte dos agressores, e a maior parte das vítimas também, são marido e mulher, estão na casa dos 30 e dos 40 anos, têm cursos superiores, um trabalho estável e filhos. Era assim em 2018, quando a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) publicou o seu habitual relatório sobre violência doméstica.
Em 2019, no entanto, a situação parece ter piorado. Dezoito pessoas, a maioria mulheres, já morreu em Portugal por crimes cometidos em contexto de violência doméstica. Ou seja, em seis meses o número de vítimas mortais da violência doméstica já atingiu 75% do total registado nos doze meses do ano passado. O quadro tornou-se tão grave que se criou uma comissão multidisciplinar para a prevenção e combate à violência doméstica.
A entrega do relatório dessa comissão multidisciplinar aconteceu com um atraso de três semanas. Uma das conclusões a que chega é que grande parte do problema tem raízes na morosidade de resposta por parte das autoridades quando uma vítima apresenta queixa por violência doméstica. Depois da formalização da denúncia, deve atuar-se num prazo de 72 horas, mas essa regra “ainda é muito insuficientemente aplicado”. De resto, parece haver desorganização na atuação das autoridades, já que um dos problemas apontados é “a inexistência de um protocolo uniformizado de atuação policial, de carácter vinculativo, que assegure a proatividade na recolha de prova”.
No total, a comissão multidisciplinar apontou 15 problemas. São 15 falhas que comprometem “a celeridade, a robustez probatória essencial para a ação criminal, a eficácia da intervenção de proteção e a mobilização e a confiança da vítima, não prevenindo suficientemente o risco de novas ocorrências criminais”.
E que não terminam apenas na atuação das autoridades e das associações. É que uma das queixas desta comissão é a resposta da justiça quando os casos de violência doméstica chegam a tribunal: “Tem-se revelado, também, muito modesta a utilização de formas de processo penal especiais nas situações de violência doméstica, essencialmente o processo sumário e o processo abreviado, os quais constituem, processualmente, respostas adequadas a confirmarem a natureza urgente do procedimento e a garantirem o efeito fortemente dissuasor da punição célere em termos de prevenção geral e especial”.
Se há 15 problemas a prejudicar o combate à violência doméstica, também há 15 soluções para as colmatar, acredita a comissão multidisciplinar. Uma delas sugere que, quando for identificada uma situação de violência doméstica, a vítima tem de ser levada a prestar declarações “em lugar reservado, que assegure a sua privacidade e ausência de quaisquer tipo de pressões, e ser atendida, de preferência ou sempre que solicitado, por profissional do mesmo sexo”. Deve também ser ajudada a contactar um advogado.
Além disso, e em menos de 72 horas, a vítima “deve ser retirada da sua residência, por vontade da própria ou por não ser possível assegurar naquele momento a sua segurança”. Se nenhum familiar ou amigo a puder acolher, “deve ser diretamente acionado o seu encaminhamento para resposta de acolhimento de emergência “. Todas as informações nas mãos das autoridades devem ser imediatamente entregues ao Ministério Público.
Mas enquanto essas propostas não forem postas em prática, milhares de portugueses vão vivendo as mesmas histórias de terror as que, só nos últimos 15 anos, já levaram à morte de 500 pessoas em Portugal. O Observador ouviu seis delas. São quatro mulheres e dois homens que sobreviveram, ou ainda procuram sobreviver, ao flagelo da violência doméstica. Vêm de todos os estatutos sociais, têm idades diferentes. E relatam na primeira pessoa o sofrimento físico, psicológico, sexual e financeiro por que passaram.
Nós nunca chegámos a casar, mas as agressões começaram assim que começámos a viver juntos. Lembro-me perfeitamente da primeira agressão. Na altura da Queima das Fitas, no dia Cortejo ele saiu para beber uns copos com os amigos. Eu fiquei em casa sozinha. Como ele se estava a demorar, lembrei-me de ir dar uma volta.
A certa altura ele chegou a casa e começou a ligar-me para saber onde é que eu andava, o que andava a fazer e com quem tinha ido ter. Quando entrei em casa, ele saltou para cima de mim, começou aos pontapés e às chapadas. Deu-me um pontapé que me fez voar pelo corredor até à terceira porta. Começou tudo aí.
Tinha muito medo, estava muito assustada. Liguei à minha mãe e disse-lhe que ele me ia por na rua e que não tinha para onde ir. Mas depois, e estupidamente, achei que tivesse sido apenas um ataque de ciúmes por não me conhecer bem. Por isso, perdoei-o e voltei para casa. Pensei que era um caso sem exemplo, que não voltasse a acontecer.
Mas voltou. As agressões físicas deixaram de ser tão frequentes porque ele sabia que a minha mãe estava de sobreaviso. Mas as agressões psicológicas aconteciam diariamente: sempre que as coisas corriam mal, era normal que ele me tentasse rebaixar. Dizia que eu não valia nada, não era nada para ele e que, sem ele, nunca conseguiria ser nada na vida.
Era uma paixão assolapada. Estava tão apaixonada que não tomei atenção a alguns sinais que ele me deu. Por exemplo, quando começámos a namorar tive de trocar de número de telemóvel e ele até partiu o meu cartão. Tive de apagar a minha conta de Facebook, de Twitter e de Hi5. Tudo para me controlar melhor e para eu perder o contacto com as pessoas com quem me dava. Mas na altura eu achei que não havia mal. Era para começar uma nova vida.
O facto é que ele parecia tratar-me bem. Tínhamos uma vida financeiramente desafogada e comprámos uma casa que até ficou em meu nome. Cheguei a descobrir que ele tinha um vício pelo jogo, mas ele garantiu-me que se tinha tratado e que estava controlado.
Decidimos casar ao fim de cinco meses. Foi uma coisa muito apaixonada, mas sem convidados porque não contámos nada a ninguém. Quando chego casada à lua de mel na República Dominicana é quando tudo começa a descambar: não podia olhar para ninguém, fazia filmes no hotel e na praia e obrigava-me a comer virada para a parede.
Até esse momento, havia discussão mas nunca tinha havido violência. Isso só começou quando ele voltou a jogar e as nossas conversas passaram a ser como ele perdia o dinheiro no vício. Foi numa dessas ocasiões que ele me deu a primeira chapada. E aconteceu à frente da filha dele, que tinha três anos e que foi contar à mãe o que se tinha passado. Vim a saber depois que ela também tinha sido vítima dele.
Tudo começou quando ele resolveu entrar no meu computador portátil, no Messenger e falar com antigos contactos fazendo-se passar por mim. Depois arranjou um segundo telemóvel e, a partir dele, fazia-se passar por mim para contactar com pessoas do meu passado. Foi assim até ele ter partido o computador ao atirá-lo contra a parede.
Depois deste episódio, fomos levar a miúda até à mãe dela. Dentro do carro, ele deu-me um estalo na cara e acusou-me de continuar a encontrar-me com outras pessoas, dizendo que tinha provas — que não eram mais nada senão as mensagens que ele próprio enviava.
Eu não queria acreditar que aquilo me estava a acontecer. Era o tipo de situação que eu nunca na minha vida imaginei a acontecer comigo. Um dia cheguei a casa do trabalho, estava ele ao computador a fazer apostas. Perdeu mil euros. Quando o questionei, ele empurrou-me contra a janela do quarto, a cortina caiu em cima de mim e levei dois valentes murros e um pontapé.
Trabalho numa instituição financeira e a minha mulher também. Somos os dois profissionais bastante qualificados em termos académicos. Ao fim de quase três anos de casamento, quando o nosso filho tinha cerca de 6 meses, separámo-nos e avançámos com o processo de divórcio. Os problemas começaram nesse momento.
Antes de casar, comprámos a casa onde vivíamos até à separação. Na altura em que a comprámos, foi-nos vedada a possibilidade de a adquirir em co-propriedade, uma vez que não éramos casados nem vivíamos em união de facto. Na base da confiança, deixei que a casa ficasse em nome dela, para mim era uma formalidade, que se revelou um erro tendo em conta o que aconteceu depois. Sempre dividimos os custos da casa e as despesas, logicamente. E eu transferia-lhe sempre metade do valor da prestação e custos com seguros, que eram retirados diretamente da conta dela.
Quando nos separámos, ela foi viver para casa dos pais um mês. Passava por lá diariamente ao fim do dia para visitar o meu filho. Fazia questão de o fazer porque ele era muito pequenino e era importante ter um convívio com o pai, além de ter muitas saudades dele por ter sido afastado dele de forma repentina. E o próprio bebé sentiu isso.
Ela mantinha sempre uma postura muito violenta e de completa alienação. Dizia-lhe: “Estou aqui para ver o bebé, não para discutir”. Num desses dias iniciou uma discussão e deu-me um estalo na casa dos pais dela. Não reagi, porque não sou defensor dessa postura violenta, mas essencialmente porque o meu filho estava lá, à minha frente.
Foi o primeiro episódio de violência física. A partir daí passei a receber imensas ameaças por mensagens: que a minha vida profissional ia ficar destruída, e que me ia difamar no local de trabalho e que se algum dia pensasse numa guarda partilhada ela iria fazer tudo para destruir a minha vida. Inclusivamente cheguei a ser ameaçado pelo pai dela. Procurei uma advogada que me aconselhou a esperar mais um bocado antes de reagir porque as coisas poderiam acalmar.
Aconteceu há quatro meses. Namorava com ele há seis. No último mês e meio da relação, ele disse-me que tinha adoecido. Começou com supostos ataques de pânico e até foi parar ao hospital várias vezes. Dizia que um cardiologista lhe tinha diagnosticado uma endocardite, uma infecção no coração que depois se começou a espalhar pelo corpo todo. Inclusivamente afirmava que tinha ficado com perda de memória a curto prazo. Vim a saber mais tarde que era tudo mentira.
Durante o tempo em que ele estava no hospital, trocava mensagens com quem pensava ser a mãe dele. Ela dizia que o filho estava a ser operado, que estava em coma, que um pulmão tinha colapsado. Quando falava com a mãe dele pessoalmente, ela confirmava todos esses episódios, por isso nunca duvidei que fossem verdade. Mas vim a perceber que era tudo mentira: as mensagens eram enviadas por ele próprio e a mãe estava envolvida nisto. Acompanhava as invenções dele.
Desde que ele me disse que estava doente, praticamente vivia em casa dele. Saía da faculdade e ia para lá tomar conta dele tirá-lo do chão e pô-lo em cima da cama porque ele estava coberto de vómito. Tinha convulsões ao meu lado, que afinal eram fingidas, cuspia sangue e dizia que se ia suicidar no hospital com uma tesoura das unhas. Nada disso era verdade.
Fiquei grávida e tudo parecia um mar de rosas. Quando o bebé nasceu houve um distanciamento porque, como é óbvio, eu vivia para o meu filho. Ele passava muitas noites fora de casa, mas como eu não o confrontava, ele não me agredia fisicamente.
Depois levou-me para Espanha, onde ficámos 10 anos, porque a mãe dele vive lá. Argumentou que devíamos ir para lá porque haveria melhores condições para dar um futuro melhor ao nosso filho. Convenceu-o e ele convenceu-me a mim. Foi uma forma de me afastar de toda a gente. Tanto assim que as agressões físicas voltaram assim que chegámos a Espanha.
Foi aí que aconteceu o pior episódio de que tenho memória. O meu ex-marido tinha licença de uso e porte de arma por causa da profissão que tem — é vigilante. Cheguei a ter por duas vezes uma arma carregada apontada à minha cabeça. Tudo por ciúmes de eu gostar de trabalhar, de trabalhar com homens. Não podia ter amigos: se fossem homens era porque tinham segundas intenções; e se fossem mulheres não eram pessoas de bem.
Foi à segunda dessas vezes em que vi a minha vida correr risco que chamei a polícia. Em Espanha não me faltou nada: no momento em que eu chamei a polícia, levaram-no imediatamente. No dia seguinte fui prestar declarações à esquadra, mas já tinha uma psicóloga à minha espera e tinham avisado o médico de família que seria consultada. Tive guarda-costas durante dois ou três meses.
A sensação que nós temos é de completa vergonha e de impunidade brutal. Tu não és capaz de ligar aos teus pais ou aos teus amigos a admitir que estava a acontecer algo assim. Ainda por cima, como tinha casado contra tudo e contra todos, ainda mais complicado ficou. Sabia que, no dia em que falasse sobre o assunto, iria ser culpabilizada, não o agressor. Estava naquela situação porque queria — era o que iam dizer.
O que comecei foi começar a tomar anti-depressivos e calmantes. Na altura, consultei a APAV e eles fizeram um retrato exatamente igual daquilo que ia acontecer: da próxima vez que ele me batesse, começaria a chorar e a vitimizar-se. Foi precisamente o que aconteceu. Da segunda vez que me agrediu, comecei a chorar e ele começou a chorar a seguir.
Fizemos as pazes. Mas a violência foi sempre galopando. Já às portas do Natal, ele tirou-me o cartão multibanco e o meu ordenado passou a entrar diretamente na conta dele. Não tinha dinheiro e tinha de lhe pedir sempre que precisasse. E tive de gerir isto de forma a que ninguém percebesse o que estava a acontecer.
Houve um dia em que tivemos uma grande discussão e ele saiu de casa. Algum dos meus vizinhos chamou a polícia porque ouviu os gritos e os murros nas portas. Foi nesse dia que decidi contar aos meus pais. Contactei também o pai do meu filho, que é advogado, para saber o que tinha de fazer. Estava desfeita em lágrimas por ter de assumir ao pai do meu filho que aquilo estava a acontecer comigo.
Apresentei queixa à polícia, mas ele ia para casa dos meus pais chorar e até à porta do meu trabalho chegou a estar. Fez tudo exatamente como a APAV me tinha avisado: disseram-me que ele ia aparecer a meio da noite de pijama a chorar à minha procura. Foi precisamente isso que aconteceu.
Foram tantas as vezes que ele me bateu que não me consigo lembrar da primeira. A mais dolorosa aconteceu quando o meu filho tinha um ano. O meu marido agarrou-me pelo pescoço, atirou-me contra a parede de uma das esquinas do corredor e ficou a apertar-me. Ouvia o meu bebé a chorar, a tentar gatinhar até nós pelo chão do corredor. E só tentava virar a cabeça para ver se o conseguia espreitar e acalmar: “A mamã já vai, meu amor. Está tudo bem”.
Não estava tudo bem. As agressões continuaram a acontecer. Ele batia-me ou ofendia-me, durante uns dias as coisas acalmavam, mas tudo regressava outra vez. Ao contrário do que oiço de muitas vítimas, na minha história não há a chamada “lua de mel”. Ele nunca tentou pedir desculpa. Se tento conversar com ele sobre esses episódios, diz com toda a confiança e com toda a paz que, se aconteceu, foi porque eu merecia. Porque se digo algo com que ele não concorde, a culpa é minha. Eu é que fui a primeira a reclamar, por isso a agressora sou eu. Sou burra, estúpida, não tenho ninguém e ninguém estará do meu lado.
O pior é que ele parece ter razão. Já me aconteceu ir a uma médica de emergência contar o que me estava a acontecer e ouvi-la dizer: “Como assim? Está a dizer-me que o seu marido chegou às sete da manhã, bêbedo, deitou-se no sofá e que a senhora, em vez de o reconfortar, decidiu fugir?”.
A proposta dela no divórcio de mútuo consentimento era que o nosso filho ficasse à guarda dela, eu apenas fazia visitas. Queria que desistisse do nosso filho. Quanto à casa, e considerando que a casa era a nossa, perguntou-me quanto queria receber de compensação para não a vender e dividir o montante. Respondi-lhe na altura que precisava de falar com um advogado para saber qual a melhor forma de fazer o processo. Ela disse que iria também falar com um advogado para entrar com um processo litigioso.
Entretanto, num dos dias em que estava a trabalhar e ela em casa dos pais, trocou a fechadura da nossa casa. O objetivo era claro: ficar com a casa uma vez que cometi o erro de confiar e a deixar em nome dela. Pegou nas minhas coisas pessoais e enviou-as para casa dos meus pais. Liguei-lhe e perguntei: “O que está a acontecer para a minha mãe estar a receber as minhas coisas em casa dela?”. E ela respondeu dizendo que estava apenas a fazer o que a advogada dela lhe disse para fazer.
Apesar de a casa estar em nome dela, mudar a fechadura de uma morada de família sem a concordância das duas partes é violência doméstica. Ou seja, a própria advogada incentivou à prática do crime de violência doméstica, o que é lamentável. Na minha opinião, essa advogada nem cédula profissional deveria ter. De um momento para o outro, a pessoa em quem confiei, e com quem me casei, tirou-me o lar, e começou a tentar afastar-me do meu filho. Tive que recomeçar do zero e longe do meu filho. E hoje tenho que lutar por ele.
A advogada que ela arranjou trabalha numa sociedade conhecida, cujo interesse são honorários, única e exclusivamente. Os casos que defendem na praça são casos com contornos de corrupção, crimes financeiros, entre outros. Essa sociedade não tem interesse em equilíbrios e nem se preocupa por estar no meio do processo uma criança bebé. A proposta que foi feita em tribunal por parte dessa advogada referia que criança só estava comigo muito de vez em quando, além de usar um conjunto de mentiras com o objetivo claro de me denegrir junto do juiz.
Tentaram montar um cenário de um pai ausente, manipulador, violento e negligente, recorrendo inclusivamente a queixas falsas junto da polícia. Não sou nada disso, nunca fui. Após ter o meu filho, fazia horários de trabalho mais curtos para estar com o bebé. Estive presente em todos os banhos, alternava noites para ela poder descansar, todas essas coisas. E tenho colegas que podem confirmar isso. A mãe do meu filho inclusivamente afirmava junto de amigos que eu era um pai como poucos, que fazia tudo melhor do que ela. Há testemunhas disto.
Isso foi o início de um processo de alienação parental, que é também considerada violência doméstica. A partir do momento em que foi feita a queixa falsa na polícia contra mim, a minha advogada aconselhou-me a avançar com a queixa com factos reais de violência doméstica praticada contra mim. Existem várias provas com ameaças e ofensas. Foram apresentadas à polícia, sendo que a própria polícia diz que algumas das provas, apesar de serem casos reais, não são legalmente aceites como prova. Muitas das ameaças telefónicas foram presenciadas por terceiros, embora essencialmente família, cujo peso em termos de testemunhas não é tão relevante.
Ainda assim, cheguei a ir várias vezes à PSP apresentar queixa das várias ameaças, a conselho da APAV. Mas a única coisa que me dizem na polícia é: “Sabe como é… você é o homem, ela é a mulher. Quando a violência parte da mulher para o homem, ninguém faz nada…”. Perguntam-me o que aconteceu, explico e ainda lhes entrego as provas. Mas nunca chega a lado nenhum. Cheguei mesmo a dizer à polícia: “O que é preciso para se fazer alguma coisa? Estão à espera do dia em que não aguente mais e reaja de forma violenta? Ou estão à espera do dia em que ela me dê um tiro para alguém perceber que há violência doméstica e tem que ser parada?”. Garantem-me que, se mantiver a calma, ela vai acabar por pagar pelo que fez.
Na altura em que ele estava supostamente a ser operado, fui para casa dos meus pais no Alentejo para me afastar um bocado. Enquanto lá estava, a minha conta de Instagram foi apagada. Desconfiei que tivesse sido ele, mas desvalorizei: achava que ele não estava bem em termos mentais e que ele tinha feito isso por consequência dos problemas que tinha.
Quando voltei a Lisboa, ele ligou-me a dizer que tinha a impressão que eu e as minhas amigas não acreditávamos que a doença dele era verdadeira. Perguntei-lhe: “Porque é que dizes isso?”. E ele respondeu: “Porque eu entrei no teu e-mail. Do teu e-mail consegui entrar no teu Facebook e no teu Instagram. E li as tuas conversas todas”. Acusou-me de o usar durante a relação toda. E pediu para, no dia seguinte, ir até casa dele devolver todos os presentes que ele me tinha dado.
Eu fui, mas levei uma amiga comigo, algo que ele só soube quando já estava a chegar perto de casa dele. Ele andava psicótico e, tanto quanto eu sabia, tinha tentado suicidar-se, por isso decidi levá-la para minha própria proteção. Quando chegámos lá, pousei as coisas no chão, mas ele disse: “Não, estou demasiado fraco da operação. Tens de meter essas coisas no meu quarto para ires buscar também as tuas coisas”. Depois dirigiu-se à minha amiga: “Tu aqui não entras”.
Já no quarto, quando estava a pôr as minhas coisas dentro da mochila para me ir embora, ele apareceu no quarto com uma faca de cozinha e com uma arma que eu achava ser verdadeira. Disse-me: “Dá-me o teu telemóvel, quero ver as mensagens com o teu ex-namorado”.
Comecei a tentar chegar ao hall de entrada e a gritar para a minha amiga chamar a polícia. No hall de entrada, ele empurrou-me contra as paredes, sufocou-me com o antebraço, tudo isso sem nunca largar a faca na mão direita ou a arma na mão esquerda. Estava deitada no chão e ia tentando conversar com ele. Perguntava-lhe: “Porque é que estás a fazer isto?”. Ele só dizia que eu lhe tinha arruinado a vida. E tão depressa ameaçava que me ia matar naquele momento, como afirmava que aquilo não ia acabar ali e que ia tornar a minha vida num pesadelo.
Entretanto, a certa altura, disse: “Quero que tu rapes a tua cabeça”. Eu negava, mas ele obrigou-me a sair do chão e a ir até à casa de banho. Voltou a exigir que rapasse o cabelo e eu dizia que não o ia fazer. Respondeu: “Ou rapas o teu cabelo ou bato-te. Tu humilhaste-me e vou humilhar-te a ti também”. Quando voltei a negar, ele deu-me um soco na cara.
Tive de ceder. Comecei por rapar a parte de trás do cabelo, mas ele interrompeu-me e disse: “Não quero que rapes atrás. Tens de rapar em cima”. Foi o que eu fiz. Quando já estava a cortar a parte de cima do cabelo, tocam à campainha. Ele foi à porta e percebeu que era a polícia. Voltou e disse: “É a polícia. Podes ir embora”.
Foi em finais de novembro. Nós tivemos uma discussão por motivos económicos porque desde que chegámos a Portugal ele nunca ficou satisfeito com os trabalhos que tinha e chegou inclusivamente a despedir-se sabendo que não teria direito a nenhum tipo de subsídio. Durante dois meses o único ordenado que entrava era o meu. Nunca quis deixar de ter o nível de vida a que estava habituado: continuou a sair, a beber copos com os amigos. E a nossa situação financeira agravou-se muito.
Tivemos uma discussão muito grande e ele tentou sufocar-me, mais uma vez. Obrigou-me a ir ao banco. Quando lá estávamos, recebemos a chamada de um amigo que é da Guarda Nacional Republicana a pedir para nós irmos ter com ele porque sabia o que estava a acontecer e queria falar connosco para tentar minimizar os estragos. Ele acedeu. Quando lá chegou, o nosso amigo não havia possibilidade de as coisas serem feitas pelas vias mais fáceis e pediu à minha mãe para me acolher em casa dela — senão eu teria de viver com o meu filho numa casa de acolhimento. Ela aceitou.
Quando fui a minha casa buscar algumas das minhas roupas ele tentou bater-me, mas não conseguiu porque estava lá o meu padrasto, que não permitiu. Ao chegar a casa, a minha mãe apercebeu-se que eu me tinha esquecido da medicação que estava a fazer. Então ligou a um amigo em comum que estava com ele e pediu-lhe que levasse essa medicação à casa da minha mãe.
Só que esse amigo não veio sozinho. O meu ex-marido saltou o portão, que estava trancado, e entrou de rompante pela porta da cozinha. Eu estava ao telefone ao pé da salamandra, porque era novembro e estava muito frio. Ele atirou a minha cabeça contra o parapeito da janela, que é de mármore. Eu, com a tontura, caí no chão. E ele pontapeou-me várias vezes por todo o corpo. E a minha mãe assistiu a isso.
O meu pai foi a pessoa que mais me chocou. Disse que ouviu da boca dele que eu é que o agredia verbalmente, ouviu tudo aquilo que eu digo, mas como um diz uma coisa e outro diz outra, tem as dúvidas dele. Em tribunal, a advogada do meu ex-marido perguntou ao meu pai se eu, estando a tomar medicamentos anti-depressivos e calmantes, não estaria psicologicamente instável e ter provocado os ferimentos em mim própria, ter-me auto-lesionado. E o meu pai encolheu os ombros e disse que sim, que podia ser.
Ainda sou vítima de violência doméstica. Diz-se que precisamos de ter coragem. Não, não é só coragem. Aqui o medo grita muito alto todos os dias e todas as noites, pensando nas consequências para os filhos. O que é melhor e o que é pior. E a cabeça em água, constantemente a pensar nisso. Sou mãe. Sei que sou forte e que sempre aguentarei, seja qual for o caminho que tomar. Mas qual é o caminho que trará menos consequências para mim e para o meu filho?
Não, não há apoio. A sociedade não está preparada para nos apoiar. No dia em que estiver, saio desta situação. No meu caminho encontrei médicos, advogados, polícia e família que, se não são a favor do machismo ou da violência doméstica, pelo menos nada fazem e banalizam este problema. Para eles, sou e serei apenas mais uma.
Ele tentou chegar ao meu coração falando com os meus colegas de trabalho, os meus pais e a minha família. Conseguiu. Reconciliei-me com ele e mudámos de casa. Fiquei grávida, mas decidi não ter o filho. Como é óbvio: naquela situação não podia ter um filho porque estava na corda bamba. Fui ao hospital, fiz os exames e fui para casa com os comprimidos abortivos.
Dois dias depois de ter feito o aborto, estava em casa cheia de hemorragias, psicologicamente afetada, ele deu-me uma sova tão grande que me internou no hospital. Bateu-me sempre entre as costas e o pescoço para não haver marcas. Só tive tempo de encontrar um telemóvel ligado lá em casa — ele desligava-os quase todos — e telefonar para o meu irmão. A minha cunhada avisou a polícia e pediu-lhes por tudo para chegarem a minha casa antes do meu irmão.
Nesse dia, lembro-me perfeitamente que ele me começou a dar pontapés enquanto eu lavava a loiça para me distrair. Olhei para o lado e tinha uma faca perto de mim. Juro que a única coisa que pensei foi: “Eu vou matá-lo”. Mas houve ali um momento de reflexão: “Tu vais desgraçar a tua vida”. Então preferi que ele tivesse feito tudo o que ele me fez do que eu ter feito coisa pior. Na altura já não tomava a medicação. Talvez se tomasse não tivesse tido este discernimento.
Quando a polícia entrou em minha casa, ele afirmou que tudo o que estava partido era da minha responsabilidade porque não estava mentalmente bem. Havia sangue pela casa. A polícia respondeu: “Meu senhor, nós sabemos muito bem quem é o maluco aqui”. Fui para o hospital, onde estava sempre acompanhada por algum auxiliar.
A primeira memória que tenho foi quando a minha mãe e eu fugimos de casa quando ela descobriu que o meu pai tinha uma arma. O meu pai, que era viciado no jogo e no álcool, já tinha sido violento com ela no passado. Como estava desempregado, o único ordenado que entrava era o da minha mãe, que era muito pequeno. E ele roubava-lhe o dinheiro. E se não chegasse acusava a minha mãe de o esconder.
Mas o dia em que a minha mãe se apercebeu que ele tinha uma arma em casa foi a gota de água. Antes, quando eu não tinha ainda um ano, ele atirou-me para o berço. Mas num desses episódios em que ele pedia dinheiro à minha mãe, chegou a dizer: “Um dia mato-vos”. Foi por isso que a minha mãe saiu. Tinha apenas dois anos quando fugimos, mas ainda me lembro de a minha mãe me levar ao colo enquanto segurava um saco na outra mão e o meu pai aos gritos na cozinha.
Ainda assim, não nos deixou em paz: perseguia a minha mãe e ameaçava-a. Isso durou até aos meus 12 anos. Chegou a acontecer nós estarmos a chegar a casa onde morava com a minha mãe e ele estar apenas parado numa carrinha perto da porta. Cheguei a ver o meu pai encontrar a minha mãe à porta da ama que cuidava de mim e bater-lhe. E de a agredir à porta do tribunal, na presença da nossa advogada, e ameaçar: “Eu vou acabar contigo”.
Depois, tudo isso acabou. Acho que ele se fartou de nos perseguir, também porque levou uns pequenos apertos de uns amigos nossos. A última vez que o vi foi quando fui visitar a minha avó paterna e o encontrei lá por acaso. Agora não mantenho nenhum contacto com ele. Vou sabendo onde está porque tenho quem mo diga, mais por uma questão de segurança, mas sei que está fora do país. E é essa a distância que quero manter.
Ninguém acredita em mim e isso está a deixar-me de rastos. A minha mãe é a única exceção porque assistiu a essa agressão mais recente.
Quando cheguei a Portugal percebi que, infelizmente, as pessoas ainda não estão conscientes do que é a violência doméstica. E desvalorizam o problema. Muita gente acha que é só um problema de casal. Foi exatamente isso que me aconteceu quando regressei. Havia gente que me dizia para pensar no nosso filho, que não seria capaz de cuidar dele sozinha, que ele andava a choramingar porque estava arrependido do que tinha feito.
Sofri tanta pressão que acabei por retirar a queixa — embora o processo tenha continuado por ser um crime público. No dia em que fomos a tribunal, não prestei declarações. Mas mesmo assim ele foi condenado com pena suspensa.
Em Espanha, o tribunal decidiu que, pelo menos durante três anos, ele não se podia aproximar de mim. Sofria tanta pressão de gente que me fazia crer que precisava dele para educar o nosso filho que voltámos para Portugal na esperança de refazer a vida aqui. Foi então que ocorreu a agressão a que a minha mãe assistiu. Já o deixei. Neste momento, há outro processo andamento.
Já tentei apresentar queixa à polícia. Fui acompanhada de um familiar. E sabe o que ouvi? “Vão ter de voltar mais tarde. Neste momento não está aqui o meu colega para escrever a queixa. E eu não posso fazê-lo porque o meu trabalho neste momento é guardar o posto”. Depois ainda acrescentou: “Tem a certeza que pretende apresentar queixa? É que 90% dos casos não dá em nada”.
Por telefone, a mesma coisa. Disseram-me: “Pois, infelizmente fazem esse tipo de coisas para ver se é mesmo violência doméstica e vai em frente com a queixa ou se é mais uma que depois desiste”. Na polícia, explicaram-me que fazem uma espécie de seleção e que, mesmo assim, dos casos selecionados, a maior parte é arquivada.
A seguir, tentei marcar uma consulta com a psicóloga da escola do meu filho. Mas ela respondeu: “Já sabemos que homens e mulheres são diferentes. Se não correu como queria, talvez é porque a senhora seja demasiado controladora”. No gabinete de apoio à vítima é parecido: somos ridicularizadas como se fossemos unicamente mais uma.
Também já procurei um advogados, mais por causa do medo que tenho pelos meus filhos. O meu advogado disse-me que “se a violência ocorre fora de casa, já não é violência doméstica”. “Tudo o que o seu marido e sogra fizerem contra si, se não estiverem dentro de casa, não é considerado violência doméstica. Se a senhora responde ao seu marido, mesmo que não seja a gritar, mesmo que não lhe chame nomes, também não é violência doméstica”.
Por isso é que não percebo os cartazes das associações de apoio à vítima. Aparece sempre uma mulher com marcas físicas profundas e extremamente triste. Porque é que não colocam uma mulher arrumada e aparentemente bem? É que assim transmite-se que a violência precisa de ser física para que o caso chegue a tribunal. E o outro tipo de violência — aquele que não se vê?
Fiz queixa na polícia, mas o meu advogado disse-me: “Vais avançar com isto para quê? Para ganhares 250 euros de indemnização? Para teres o processo a correr no tribunal, quereres refazer a tua vida e arrastares toda a gente para a lama com isto? Achas que o valor irrisório e a pena que ele não sofreu valem a pena?”. Isto foi em 2011. O que a violência doméstica é agora não é o que era à época.
Depois desta história, já voltei a viver com outra pessoa que me tratava muitíssimo bem, mas eu nunca consegui confiar nele como podia. À primeira coisa que correu mal, disse-lhe: “Vamos ficar por aqui, não quero mais nada contigo”. Criei as minhas próprias inseguranças. Não discuto com namorados, com amigos ou colegas. Viro as costas porque uma discussão para mim é como se fosse um rastilho.
Entretanto, sei que ele voltou a ter outras mulheres e que uma delas tentou mesmo o suicídio. Eles são extraordinários manipuladores. Parecem todos excelentes pessoas. Antes de ele casar pediu para almoçar comigo e eu aceitei. Pediu-me perdão. Justificou-se. Que ele não era assim e que a culpa tinha sido do vício no jogo.
Consegui perdoar. Sou o tipo de pessoa que pensa que, para seguirmos em frente, temos de fazer as pazes com estas situações. Mas não esqueço. Nunca vou conseguir esquecer. E quase ninguém sabe da minha história. Mas é importante que se saiba: quase ninguém sai à primeira chapada, nem à segunda. É a vergonha que nos mantém ali.
Isto afetou totalmente a minha vida. Enquanto cresci, houve uma figura masculina em minha casa que era o meu padrasto. Ele esteve connosco desde os meus cinco anos, mas nunca lhe chamei pai. Sempre que falavam comigo e se usava a expressão: “O teu pai…”, tinha medo. Se a minha ama dissesse: “O teu pai vem aí”, escondia-me debaixo de uma cama. Na minha mente, como não tinha medo do meu padrasto, não lhe chamava pai, mas sim pelo nome próprio.
Mesmo a relação que tinha com o meu padrasto não era a que se tem, presumo eu, com um pai. Porque era uma coisa distante. Era uma espécie de bom amigo que estava lá em casa, até porque ele não me educava — pelo menos não com a mesma liberdade que a minha mãe. Ela é que me dava castigos e essas coisas, mas ele não intervinha nesse processo.
Os episódios que vivi com a minha mãe desencadearam imensos ataques de ansiedade ao longo do crescimento. E tive uma depressão violenta entre os 16 anos e os 19. Ainda hoje esses ataques de ansiedade acontecem. Fiz terapia há pouco tempo e aquilo que percebemos é que o facto de ter crescido habituado a ter medo a uma determinada hora, fez com que os meus ataques acontecessem à mesma hora, mesmo sem fonte de medo.
Por exemplo, a minha mãe ia buscar-me à ama por volta das 17h30 ou 18h. A essa hora, tinha sempre medo que houvesse um conflito se o meu pai fosse lá também. E isso a acontecer todos os dias parece ter feito com que o meu cérebro disparasse adrenalina a essas horas. Por isso, ainda hoje, normalmente três vezes por semana, tenho ataques de pânico a essa mesma hora, sem razão nenhuma. Só que agora, graças à terapia, é como se observasse os ataques de fora: identifico-os e, como fico menos nervoso, eles vão-se embora mais depressa.
Mas houve um lado positivo. Acho que, enquanto homem e marido, ou eventualmente pai, toda essa experiência me formou para ser a oposição daquilo que via. Diz-se muito que os miúdos vêm as coisas em casa e depois repetem, mas esse não foi o meu caso. Como aquilo me causava tanto medo e tanta angústia, e como não guardei revolta, acho que fiquei em paz.
Se ele me procurar um dia — espero que não aconteça –, julgo que não vai ser difícil dizer “não” a qualquer tentativa de reaproximação. Quando era adolescente, tinha muita raiva e muito ódio. Mas agora já não me interesse, não quero saber.
Quanto à minha mãe, penso que tínhamos uma espécie de pacto de silêncio. Nós percebíamos os dois que o outro estava a perceber o que estava a acontecer. Não precisávamos de conversar sobre a coisa, nem sequer de fazer uma psicanálise ao meu pai. Até porque eu não o conhecia: ele era só ameaçador, mas não estava presente nem falava comigo.
Ainda assim, entre os meus 16 e os 19 anos, tentei perceber a história da minha mãe e do meu pai. Não lhe perguntava a ela porque sabia que isso lhe causaria sofrimento, mas conversei com pessoas mais ou menos próximas da família. Percebi algumas coisas. Outras nem por isso, mas também aprendi que não tinha de perceber. Já mais tarde, aos 23 ou 24 anos, escrevi um conto baseado naquilo que me tinham contado e mostrei-o à minha mãe. Ela disse: “Foi mais ou menos isto que aconteceu comigo”. Foi por isso que depois escrevi um livro de ficção baseado nesses episódios, o “Preciosa”.
Mas é muito difícil para mim perceber como é que alguém, como a minha mãe, conseguiu transformar a vida quando está no absoluto esterco. Ao fim de 15 anos, ela conseguiu que a vida mudasse 180 graus. Quando eu nasci, enão tinha sequer dinheiro para me dar de comer, quanto mais a ela. Passaram-se 20 anos e ela passou a ter dinheiro para me pagar um curso superior, ter um emprego estável e oferecer-me um carro.
Atualmente, vejo o meu filho dia sim, dia não apenas ao jantar. Vou buscá-lo à creche, deixo-o na casa onde está a mãe depois do jantar. E tenho fins de semana alternados. Para mim este regime não tem lógica nenhuma, nem para o próprio bebé, e tenho que lutar pela residência alternada. Já tentei aderir ao sistema de mediação familiar para num princípio de boa fé chegarmos a um acordo. Quando me contactaram devido ao meu pedido expliquei tudo o que estava a acontecer. A seguir devem ter ligado para ela, mas só podem fazer a mediação se os dois estiverem de acordo. E ela, provavelmente, não estará. Ela pretende manter o litígio, deve ter mais a ganhar. Eu só quero equilíbrio e justiça.
Não estou à procura apenas dos meus direitos. A questão é que o bebé tem direito de estar com o pai e com a mãe. São os direitos dele. É isso que me guia. Ele é mais importante do que eu. Se ele um dia preferir ficar mais tempo com a mãe no futuro, ajusta-se não haverá qualquer problema. Mas enquanto se está a desenvolver em termos de personalidade, a presença do pai é importante. Está provado.
Estou nisto há mais de um ano. Na minha opinião, a APAV não tem instrumentos de força para lidar com estas situações de violência doméstica, e muito menos conseguem fazer quando se trata de violência de mulheres para homens, porque somos sempre remetidos para a polícia que avalia, envia para o tribunal, e tudo se mantém igual. E talvez isso signifique que alguns dos casos de violência doméstica contra mulheres podem surgir de casos semelhantes ao meu, em que os homens, ao contrário do que tenho feito, cedem e não aguentam ser vítimas e passam a agressores.
As associações não têm pulso para travar estas situações, o que não permite que o processo seja eficiente. E a polícia por sua vez assume uma posição quase machista equivalente ao existente na sociedade: “Isso não é nada! Então você tem medo de uma mulher?”. E na verdade, não é uma questão de medo. É uma questão de querer respeitar princípios e valores que nos foram transmitidos e os princípios da sociedade em que vivemos.
Perguntam-me a toda a hora se preciso de ajuda psicológica porque acham que é impossível alguém sobreviver bem a isto. Eu sobrevivo, apenas pelo meu filho. Não sou eu quem precisa de ajuda psicológica, é a minha futura ex-mulher que precisa dessa ajuda provavelmente. E precisa de uma advogada que defenda os interesses de uma família que se desfez enquanto casal, mas mantém um filho e que têm coisas em comum.
Uma coisa é certa: nunca nos sabemos com quem nos casamos. Revela-se o pior das pessoas nestas alturas. E o pior é que nada se resolve, e a violência doméstica continua. Continuo a ter que lidar com esta violência, afastado do meu filho, e ela mantém-se impune, numa casa que não é só dela, com o meu filho quase a tempo inteiro. É triste.
Toda a cena durou 20 minutos. A polícia levou-me para a esquadra e apresentei queixa. Depois disso, percebi que ele me tinha mentido em muitas coisas. Dizia-me que estudava Psicologia, quando na verdade estava a tirar Artes Performativas. Contou-me que fazia dobragens para séries e anúncios enquanto trabalhava no bar do pai dele.
Mesmo a forma como ele agia perto de mim ou dos meus amigos era manipulada. Se me queixasse de alguma coisa que ele fazia, ele nunca mais repetia a mesma atitude. Tentava moldar-se, aperfeiçoar-se conforme aquilo que achava o ideal. Para os meus amigos, ele era incrível. Mas, no fundo, só era este tipo de pessoa.
Ele nunca mais tentou comunicar comigo. Na faculdade chegou a haver boatos de que ele só tinha reagido assim porque o andava a trair. Isso não era verdade. Mesmo que fosse, não havia justificação para o sofrimento que aqueles 20 minutos me provocaram.
As fotografias com ilustrações correspondem a entrevistados que falaram sob anonimato e cujos nomes identificados neste artigo são fictícios.