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Em 'SURRENDER', Bono, atualmente com 62 anos, faz uma viagem pelas suas memórias, da infância até ao crescimento e sucesso dos U2

John Hewson

Em 'SURRENDER', Bono, atualmente com 62 anos, faz uma viagem pelas suas memórias, da infância até ao crescimento e sucesso dos U2

John Hewson

O momento em que conheceu a mulher, o início dos U2 e uma trapaça televisiva: este é um capítulo das memórias de Bono

Demorou sete anos a escrevê-lo, finalmente foi publicado. Já disponível em Portugal, SURRENDER é uma viagem pelo passado de Bono e dos U2. O Observador revela um dos capítulos, "Song For Someone".

Publicado esta terça-feira em vários países, incluindo Portugal, ‘SURRENDER’ é um livro de memórias que teve uma gestação longa. Bono, nome artístico do vocalista dos U2 (que se chama na realidade Paul David Hewson), escreveu-o ao longo de sete anos, revendo todo o seu percurso, desde a infância e juventude em Dublin até às digressões de estádios lotados.

Escrita na primeira pessoa, a obra narra vários momentos marcantes, pessoais e profissionais, da vida do cantor e vocalista dos U2: da morte precoce da sua mãe, quando o futuro músico tinha apenas 14 anos, ao momento em que conheceu a sua mulher, Alison Stewart, passando pelas causas em que se empenhou como ativista e pelo crescimento e turbulências da banda que gravou canções como “With or Without You”, “One”, “Beautiful Day”, “Sunday Bloody Sunday” e “Where The Streets Have No Name”.

Em pano de fundo das suas memórias pessoais e profissionais estão 40 canções dos U2, de que Bono se serve quase como mote de inspiração para a escrita e introspeção — mas que em alguns casos também disseca, explicando mesmo os seus sentidos.

Agora que ‘SURREENDER’ chegou às livrarias portuguesas, o Observador revela um excerto desta “história de um peregrino que não consegue avançar… com uma dose generosa de diversão pelo caminho”, como a descreve o próprio autor. Neste capítulo, “Song For Someone”, Bono recua aos tempos de escola secundária, onde conheceu a futura mulher Ali Stewart, e ao início dos U2. “A verdade é que eu tinha melodias na cabeça desde que me lembrava de existir”, escreveu.

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A capa do livro de Bono, já disponível nas livrarias

Song for Someone

You got a face not spoiled by beauty
I have some scars from where I’ve been
You’ve got eyes that can see right through me
You’re not afraid of anything they’ve seen.

A fusão de dois internatos, o Mountjoy e o Marine, com os seus edifícios de tijoleira vermelha, celebrizados por Christopher Nolan no livro Sob o Olhar do Tempo, deu lugar à nossa escola. A escola pública Mount Temple, uma das primeiras escolas secundárias não denominacionais e mistas da Irlanda.

Havia um bloco para as aulas de Ciências, um bloco para as de Matemática e um pequeno edifício anexo para as de Economia, mas o edifício principal da Mount Temple era um prédio térreo de betão com três corredores — um verde, um amarelo, um roxo — que se cruzavam a meio formando um corredor maior, conhecido como a Alameda. Foi na Alameda que vi pela primeira vez Adam Clayton, que espiei pela primeira vez Larry Mullen e a sua bonita namorada, Ann Acheson, que, pela primeira vez, dei de caras com David Evans, a quem ninguém se tinha, ainda, lembrado de chamar Edge.

Setembro de 1973. Começo a aperceber-me de que a vida de um romântico por vezes pode ser confusa para o coração. Tenho provas disso, estou a ler os sonetos de Shakespeare. De uma coisa tenho a certeza: apesar das hormonas e de toda a angústia, as raparigas são mais interessantes do que os rapazes, mental, física e espiritualmente. No início do meu segundo ano em Mount Temple estou impressionado e determinado a transformar a admiração em galanteio. Estamos na primeira semana de aulas depois das férias de verão, vejo duas miúdas giras do primeiro ano a encaminharem-se para a sala e atravesso-me no seu caminho.

— Sabem onde fica o laboratório de Ciências?
— Não, nós somos do primeiro ano. Acabámos de chegar. Tu não és do segundo ano?
— Estou perdido — respondi. — Provavelmente estarei perdido para sempre.

As raparigas riram-se como riem as raparigas quando os rapazes estúpidos dizem coisas estúpidas, e foram-se embora. Não me permito assumir a falta de interesse delas e, em vez disso, ponho-me a pensar se entre mim e a loira houve química. Talvez não. E com a amiga? De certeza que não. A amiga com cabelo escuro encaracolado, uma camisola cor de laranja que deve ter sido tricotada pela mãe, uma saia de xadrez e botas Wellington. Quem se veste assim?

Não é acanhada mas parece preferir não dar nas vistas, inclusive nas minhas. É a primeira vez que ponho os olhos em Alison Stewart, ainda sem saber que ela já tinha posto os seus em mim, que a sua amiga Sharon há um ano que a tenta convencer de que ela e eu fomos feitos um para o outro.

"Numa das sextas-feiras seguintes, pouco tempo depois, beijei Alison Stewart pela primeira vez debaixo de uma cobertura de betão. Alegria pura. Ainda que ligeiramente desesperada. Beijar não fazia parte do currículo escolar, mas descobri que era algo que podia ser aperfeiçoado com o cúmplice certo. Alison pareceu sugerir que havia ainda muito a melhorar."

Não faço ideia disso neste primeiro encontro, mas houve algo que me deixou fascinado. Os seus olhos castanhos levaram-me para outro lugar, o seu tom de pele sugeria paragens mais longínquas do que a explicação espanhola normal para o «irlandês moreno». E também parecia inteligente. Sei que me interesso por raparigas estudiosas. Raparigas que parecem que estão a fazer os trabalhos de casa, que reluzem de transpiração na biblioteca demasiado quente. Raparigas que têm ar de quem faria os meus trabalhos de casa.

Ainda demorei dois trimestres, mas acabei por convidar Alison — Ali, como ela prefere — para ir comigo ao clube dos jovens da paróquia de Saint Canice. Chamávamos às nossas noites de sexta-feira a Rede, o que aquilo era, uma oportunidade equânime para rapazes e raparigas caírem nas garras uns dos outros, porque as raparigas tinham tanto interesse em ir em busca de presas quanto os rapazes. A Rede porque disfarçávamos o átrio da igreja, pendurando grandes redes nas paredes e iluminando-o com uma luz vermelha. O lema foi sugestão minha: «Apanha a tua mosca na rede.» (Eu sei.)

Numa das sextas-feiras seguintes, pouco tempo depois, beijei Alison Stewart pela primeira vez debaixo de uma cobertura de betão. Alegria pura. Ainda que ligeiramente desesperada. Beijar não fazia parte do currículo escolar, mas descobri que era algo que podia ser aperfeiçoado com o cúmplice certo. Alison pareceu sugerir que havia ainda muito a melhorar.

Iris tinha morrido apenas há alguns meses, e eu não fazia a mais pequena ideia de que a sua partida me deixaria à guarda de um outro guia espiritual, a alma perfeita para fazer das minhas imperfeições a minha força. O átomo tinha sido dividido, a energia estava a ser libertada, mas naquele momento ao pé da cobertura das bicicletas de West Finglas nada se moveu ou alterou. Nem sequer Alison Stewart.

Não saímos.

Disse para mim que ainda estava a recuperar da separação da filha do reitor. E, de qualquer modo, andava a sair com Cheryl.

E gostava de Wendy e de Pamela. E de Susan.

O ponto principal? A morte da minha mãe, um acontecimento em relação ao qual eu estava em negação. Tinha o coração partido e, depois de tantos meses de sofrimento, finalmente começava a acalmar. Não queria que alguém viesse sobressaltá-lo.

Photo of BONO and U2 Photo of U2 U2 Surrounded By High-Rise Buildings In Shinjuku U2

Imagens de Bono e dos U2 na sua primeira década de atividade (anos 1980)

Peter Noble/Redferns

Nos anos seguintes, Ali e eu partilhámos alguns momentos de intimidade, mas a epifania só teve lugar no meu quinto ano, andava eu pelos dezasseis. O meu amigo Reggie Manuel, que torcia por mim e Ali, estava a dar-me boleia para casa na sua Yamaha 100 quanto tive uma espécie de visão de Ali Stewart a atravessar o pátio da escola. Se calhar foi o fumo do motor a gasolina a dois tempos que esbateu a imagem, mas ela parecia flutuar e transformar-se em água na minha mente, na água mais fresca, límpida e pura. A névoa de calor transformou-a numa miragem e dei por mim no deserto, um soldado rebelde e sedento, como os que tinha visto num filme acerca da Legião Estrangeira Francesa. Montado num cavalo, atravessava os portões de Mount Temple segurando-me ao bom senso de Reggie. Naquele dia tinha uma canção diferente na cabeça, provavelmente «School’s Out» de Alice Cooper, mas que se pode substituir por «Teenage Kicks» de The Undertones, se porventura for precisa uma banda sonora para este momento. Eu sabia que tinha de convidar o futuro para um encontro.

Um encontro de adultos.

Nos poucos anos que passaram desde que nos conhecemos, nunca me esqueci do nosso primeiro beijo desesperado, mas, como o meu aproveitamento escolar tinha descido e a minha personalidade azedado, algo dentro de mim disse-me que não era suficientemente bom para ela. A única coisa que me fazia continuar, como cantava Bob Dylan em «Tangled Up in Blue», eram as canções que estava a começar a ouvir na minha cabeça e o incentivo de amigos como Reggie Manuel, o Cocker Spaniel.

Foi de novo Reggie quem me convenceu a aparecer em casa de Larry Mullen, uma tarde depois de Larry ter afixado um anúncio na escola.

Reggie, levou-me naquela Yamaha a casa de Larry, na Rosemount Avenue, para uma reunião que definiria o curso do resto da minha vida.

Na bateria

«Baterista procura músicos para formar banda.»

Como o nosso destino vem ter connosco por acaso. Meia dúzia de amadores responderam ao convite que Larry colocou no quadro de anúncios da escola, e agora, no fim das aulas, acotovelávamo-nos todos na cozinha de Larry, quente como um forno.

Como conseguimos pôr a bateria, os amplificadores e os aprendizes de estrela de rock numa divisão tão pequena naquele primeiro encontro? Embora a guitarra e o baixo tenham pedido atenção com os seus amplificadores e pedais de distorção a lançarem argumentos de peso sobre o porquê de estarem ali, a bateria ocupava mais espaço físico e musical.

Naquela primeira quarta-feira depois das aulas parecia que ninguém estava afinado, excepto Larry, que se mostrava muito à vontade no meio do caos metálico.

Bem, ele estava em casa. A cozinha era dele. Tudo o que ainda hoje me agrada na forma como Larry toca estava já presente na época — a força primordial dos timbalões, o pontapé na barriga do bombo, o vigor e a pancada na caixa e o som que ribombava nas janelas e nas paredes. Era de uma violência bonita, modulada pela armadura de ouro e prata brilhante dos pratos, estranhamente orquestral, preenchendo frequências. Este estrondo dentro de portas, pensei, vai deitar a casa abaixo.

E reparei logo noutro barulho, que vinha lá de fora, o som agudo de raparigas a rir e a gritar do outro lado da janela. Larry já tinha um clube de fãs, e durante a hora seguinte iria dar-nos uma aula acerca da mística da estrela do rock. Ligou a mangueira do jardim e espantou-as.

Adam Clayton estava no baixo. Não consegui perceber muito bem o que tocava, mas parecia fazê-lo muito bem. David Evans, apesar de toda a barulheira em seu redor, tinha a aura mais sossegada de todos. Não precisava de estar em sintonia com ninguém porque estava em sintonia consigo mesmo. Por ali também estiveram, durante pouco tempo, Ivan, o irmão de Neil McCormick; Peter Martin, um amigo de Larry que tinha uma réplica de Telecaster de um branco imaculado, que parecia acabada de sair a montra da loja (estava entusiasmado o bastante para ma emprestar, mas provavelmente arrependeu-se assim que os meus dedos começaram a sangrar e a sujaram); e Dik, o irmão mais velho de David Evan, um «crânio» muito conhecido. Dik e Dave eram tão inteligentes que fizeram uma guitarra elétrica. Tão inteligentes que costumavam tentar fazer-se explodir um ao outro com experiências químicas e, segundo um dos vizinhos, Shane Fogerty, um dia provocaram uma explosão no abrigo de jardim da família. Tinham fama de ser esquisitos — simpáticos, mas esquisitos.

Na guitarra

A minha memória mais antiga de David Evans é geométrica. O rosto angular do rapaz encostado à parede da Alameda, em Mount Temple, a dedilhar um tema de guitarra complicado de um grupo de rock progressivo chamado Yes. Não parecia irlandês nem galês — embora tenha nascido em Gales —, parecia um nativo americano. Ou, pelo menos, ia ao encontro daquilo que eu achava que devia ser a aparência de um nativo americano. Tinha o cabelo escovado para a frente e começava, por assim dizer, a tornar-se fixe.

Em 1976 tinha quinze anos, era um ano mais novo do que eu. Andava na turma de Ali, e dizia-se que os dois eram os melhores alunos daquele ano. Dizia-se também que ele tinha um fraquinho por ela, que deram grandes passeios e coisas do género. Aquilo em que me saí melhor com Ali — com quem não estava, tecnicamente, a sair nesse momento — foi a ensinar-lhe a tocar «Something», de George Harrison. Na guitarra. Eu, que não sabia realmente tocar guitarra, agora tinha de competir com um guitarrista a sério. David Evans conseguia tocar tudo o que quisesse. O que talvez seja uma maneira de simplificar porque ele conseguia tudo o que quisesse.

O tema de guitarra muito complicado que estava a dedilhar no corredor da escola era de um álbum dos Yes chamado Close to the Edge — eu sei, eu sei — e envolvia harmónicos, aquelas notas tipo sino que mais tarde o tornariam famoso. Ainda hoje discutimos horas a fio as razões pelas quais considero que o rock progressivo é mau. Edge cede sempre ao meu ponto de vista e depois ignora por completo aquilo em que acabámos de concordar. O rock progressivo continua a ser uma das únicas coisas em que discordamos.

"Acho que não votei no nome [U2], mas certamente não impedi que fosse escolhido. Sou um de quatro, e uma banda de rock ‘n ‘ roll autêntica não é liderada pelo vocalista. Conduzida talvez, mas não liderada. Impedi claramente a escolha de The Flying Tigers, a segunda opção que Steve apresentou."

Edge comprou a sua primeira guitarra em 1977, numa loja do lado leste da Forty Eighth Street, em Manhattan, durante uma viagem de família aos Estados Unidos. Era uma Gibson Explorer, com um formato igual ao da sua cabeça, um grande queixo e um crânio cónico. Terá sido nesta altura que ganhou oficialmente a alcunha de Edge, embora em termos oficiais isso tivesse tido mais que ver com o som do seu cérebro do que com o respetivo formato. Quando Edge tocava guitarra, entrava numa espécie de transe. Não sabia realmente o que estava a fazer, não sabia o nome dos acordes que tocava algo que ainda hoje acontece, por vezes.

Edge tem conhecimentos de teoria musical suficientes para o saber, mas na verdade o que se passa é que sente a escala musical à sua maneira, vai à procura das notas, de uma ordem específica das notas que as outras pessoas ainda não usaram. Procura o espaço entre estas, procura o vazio entre as notas. Busca o desbaste de tudo até à sua expressão mínima.

Edge é um minimalista por natureza. Eu não. Eu sou maximalista.

Edge tem uma expressão impassível, de jogador de póquer. Eu não.

Pode-se estar sentado em frente a Edge e nunca saber que ele tem quatro ases e dois valetes. Ou então, que nada tem. É um mestre do bluff.

Há coisas a aprender com as pessoas que não abrem a boca para dizer uma única palavra.

Como, por exemplo, como não reagir em tempos de crise. Como ficar quieto e, porventura, descobrir a leveza que existe na gravidade da situação.

Edge é o silêncio que jaz no interior de cada ruído. É a luz dentro do quadro.

U2 360 Tour - New Meadowlands Stadium

O vocalista dos U2 fotografado em 2011, durante a imponente digressão 360 (uma das mais importantes da história da banda)

Kevin Mazur/WireImage

Adam Clayton acreditava verdadeiramente no rock ‘n’ roll. A música é tudo o que sempre quis fazer. Tinha estilo, atitude, ambição. O seu único problema era não saber tocar. Mas este não é um critério de exclusão automática… na altura eu não sabia cantar. No entanto, Adam tinha uma espécie de dislexia musical que fazia com que conseguisse tocar as partes mais complexas da música e as mais simples, mas não as de dificuldade intermédia. Esta combinação invulgar significava que o diálogo normal entre baixo, bateria e guitarra podia tornar-se aleatório e desgastante durante um ensaio. The Edge, o mais musicalmente dotado de nós, cobria as nossas lacunas. Queria a todo o custo que o seu amigo de infância também fosse seu companheiro de banda.

Edge tinha visto como Adam, aos oito anos, fora banido da família e dos amigos para aquilo que os seus pais, Brian e Jo, descreviam como «os melhores internatos». A família Clayton, vizinha dos Evan em Malahide, desejava que Adam tivesse uma vida boa, o tipo de vida que eles conheceram nas «colónias» e que atribuíam às classes altas britânicas que Brian chegou a conhecer como piloto da Força Aérea.

Tinham usufruído de algumas das melhores coisas da vida quando viveram em bases aéreas no Iémen e no Quénia, e certificar-se-iam de que os seus três filhos, Adam, Sindy e Sebastian, não teriam um princípio de vida humilde como a deles. Infelizmente, estas aspirações criaram em Adam uma espécie de trauma cultural que fez com que não se sentisse bem em lado algum. Pior, sentia-se à margem do sistema por não se comportar em conformidade com o mesmo. As suas feridas não eram evidentes. Na verdade, a armadura jactante que vestiu no primeiro dia de aulas em Mount Temple foi tão convincente e fixe que o seu velho amigo Dave Evans, de Malahide, não o reconheceu.

Deve ter borrado as calças ao atravessar o pátio numa figura que os mais distraídos podiam confundir com uma fantasia: cabelo afro aos cachos louros selvagens, casaco afegão feito de pele de ovelha que parecia ainda viva, e uma T-shirt onde podia ler-se Pakistan ‘76, para manter a autenticidade. Nos pulsos, tinha pulseiras de aço que chocalhavam como sinos roucos quando andava. Que visão e que linha de abertura para impressionar os durões de todas as origens do norte de Dublin.

— Onde posso encontrar a sala de fumadores? — perguntou ele, num inglês perfeitamente britânico.

Para os rapazes e as raparigas que fumavam atrás da cobertura das bicicletas, aquele era um sinal claro… este rapaz não sabe nada e sabe tudo. Apaixonaram-se por ele. Adam fintava tanto os alunos difíceis como os professores com a mesma estratégia. Bons modos. Lia romances ingleses nas aulas de Francês e bebia café de um termos que guardava na mochila durante as aulas de Matemática.

«Impossível de ensinar», foi a reação de uma professora. «Demasiado inteligente para o currículo escolar», foi a reação, porventura mais verosímil, de outra. Adam vingaria na arte e na vida, mas definitivamente não na escola. A escola era uma brincadeira. Raro é o homem que está tão à vontade com o seu próprio corpo, que simultaneamente celebra e escarnece das duas funções fisiológicas e se acha tão encantado com o próprio pénis.

A pedido ou não, já ninguém se surpreendia com as vezes em que o punha de fora. Quem conversasse com ele acompanhado da namorada, a meio da conversa iria aperceber-se de que se aliviava despreocupadamente na relva. A sua corrida lendária todo nu pelos corredores de Mount Temple foi em parte planeada — com sucesso — para ser expulso, mas também por puro divertimento.

Adam era muito divertido na escola, mas foi o primeiro a levar a banda a sério. Não demorou muito até falar com alguém que lhe imprimiu cartões-de-visita onde podia ler-se «Agente dos U2». O seu sotaque posh e o ar descontraído e confiante safaram-no de uma série de complicações por comportamento disruptivo na Dublin da década de 1970

Quando não tinha dinheiro para o bilhete, costumava dar ao motorista do autocarro um «cheque», ou seja, escrevia o nome e morada numa folha de papel. Na maioria das vezes era logo expulso, mas alguns condutores ficavam tão impressionados com a sua lata que o deixavam viajar de graça.

Empreendedor nato, Adam organizou os nossos primeiros concertos e contratou Steve Averill, o cantor de The Radiators from Space, uma abominável banda irlandesa de punk, para ser nosso mentor e arranjar um nome melhor para a banda do que Hype. Steve era vizinho de Adam e Edge em Malahide e, apesar da atitude punk rock, era a melhor pessoa da zona norte da cidade. Tornar-se-ia fundamental na direção de arte da linguagem visual que desenvolvemos ao longo de várias décadas, mas começou o seu trabalho connosco sendo fraternal com Adam e arranjando-nos um nome.

U2.

Cá está, uma letra e um número, perfeitos para imprimir em tamanho grande num cartaz ou numa T-shirt. Se pensar nele como um avião de espionagem, como o U-2, gosto. Mas se o pensar como um trocadilho básico, como «tu também», não me agrada. Acho que não votei no nome, mas certamente não impedi que fosse escolhido. Sou um de quatro, e uma banda de rock ‘n ‘ roll autêntica não é liderada pelo vocalista. Conduzida talvez, mas não liderada. Impedi claramente a escolha de The Flying Tigers, a segunda opção que Steve apresentou.

Photo of U2 U2 360 Tour - New Meadowlands Stadium U2 Concert In Worcester U2 360 Tour - New Meadowlands Stadium

O crescimento da banda foi exponencial, tornando os U2 uma das maiores bandas de pop-rock do planeta

Lex van Rossen/MAI/Redferns

A confiança de Adam era tal que demorámos alguns meses a perceber que era um bluff a nível musical, que não tocava as notas certas na ordem correta nem numa escala específica. Ele parecia não se importar. Em 1976, com o rock prestes a ser turbinado pelo punk, Adam ainda estava na onda do rock ‘n’ roll, uma espécie de Sid Vicious em chique. Se Larry dava vida à banda, Adam era quem acreditava que a banda poderia dar-nos vida.

Nos nossos primeiros ensaios, Dik fazia parte da banda e não era raro eu começar a cantar, por exemplo, «Satisfaction», dos The Rolling Stones, e descobrir que Dik estava a tocar «Brown Sugar». Não é que Dik não tivesse grande ouvido para a música — até tinha —, mas vivia numa espécie de bolha impenetrável onde aquilo que lhe passava pela cabeça nem sempre coincidia com o que se passava na realidade. Nesta altura, Dik argumentaria que num mundo paralelo a canção certa que devíamos cantar era «Brown Sugar».

— Dik faz mesmo parte da banda?

Larry não sabia o que pensar de Dik.

— Quer dizer, ele é bom rapaz e tudo, mas faz mesmo parte da banda?

Acabou por tornar-se claro que Dik ia para a universidade e não poderia ensaiar connosco, portanto a resposta para aquela pergunta surgiu naturalmente, sem que Edge tivesse de explicar ao irmão que Larry não tinha a certeza se ele devia estar na banda. Pouco depois de Dik deixar a banda, Larry encostou-se a mim e perguntou:

— Edge faz mesmo parte da banda?

"Foi na sala de música que descobri o que era compor uma música em conjunto. Por mais improvável que fosse ousar pensar que seríamos capazes de escrever músicas, a verdade é que eu tinha melodias na cabeça desde que me lembrava de existir."

Edge fazia mesmo parte da banda, e nas semanas que se seguiram tornar-se-ia evidente que Larry, Adam e eu também. Nós os quatro. Sem acreditarmos muito e graças à experiência que foi andarmos num estabelecimento de ensino progressista, aos sábados começámos a ensaiar na sala de música da escola. Também o devemos a vários cúmplices do corpo docente, professores de Música como o Sr. MacKenzie e o Sr. Bradshaw, o nosso professor de História, Donald Moxham, e Jack Heaslip, ora nosso diretor, ora professor de Inglês.

Foi na sala de música que descobri que as canções que não conseguia tocar na guitarra acústica do meu irmão soavam muito melhor quando não as podia tocar com Dave, Adam e Larry.

Não apenas as canções dos The Beatles, The Beach Boys ou Bob Dylan. As nossas próprias canções. Foi na sala de música que descobri o que era compor uma música em conjunto. Por mais improvável que fosse ousar pensar que seríamos capazes de escrever músicas, a verdade é que eu tinha melodias na cabeça desde que me lembrava de existir. E porventura também porque Adam anotou ideias para letras durante anos, ninguém se riu quando sugeri que trabalhássemos em conjunto algumas das nossas ideias. Assim que o fizemos, as músicas pareceram-nos simples e mais convincentes do que as versões que tínhamos tocado. Não éramos muito bons a tocar versões. Não é exagerado dizer-se que os U2 começaram a escrever as suas próprias canções porque não conseguíamos tocar as dos outros.

Passos pequeninos para uma banda pequenina.

Mal comparado, para mim, isto era como nascer de novo. O punk rock deu-me uma palmada no rabo nu e comecei de imediato a emitir vagidos. Quase afinados.

"Foi ainda na sala de música que fizemos a nossa primeira audição, um ano e meio depois do primeiro encontro na cozinha de Larry. Foi a um produtor de televisão chamado Bill Keating, e Steve explicou-nos que, se causássemos boa impressão ao homem, poderíamos chegar à televisão. Televisão? Um programa cultural para crianças chamado Young Line. Não soava lá muito punk rock, mas ainda assim… Televisão!"

Foi ainda na sala de música que fizemos a nossa primeira audição, um ano e meio depois do primeiro encontro na cozinha de Larry. Foi a um produtor de televisão chamado Bill Keating, e Steve explicou-nos que, se causássemos boa impressão ao homem, poderíamos chegar à televisão.

Televisão?

Um programa cultural para crianças chamado Young Line. Não soava lá muito punk rock, mas ainda assim…

Televisão!

Enquanto esperávamos a chegada do produtor de televisão num dia da primavera de 1978, parecia que aquela poderia ser a nossa grande oportunidade. Poderíamos ter visibilidade a nível nacional e depois dominaríamos o mundo.

Infelizmente, quando o caça-talentos chegou e entrou na sala, estávamos a meio de uma discussão acerca do que devíamos tocar.

Que música no início e que música no fim.

— Chiuuu, deixa-o entrar… que vamos fazer?

— Abre a porta… abre a porcaria da porta.

— Ouvi dizer que escrevem as vossas músicas — disse o produtor.

— Sim — respondi, ao mesmo tempo que entrava em pânico, até que de súbito tive uma ideia muito desonesta que poderia resultar. Olhei fixamente para o muito honesto Dave Evans, e de algum modo ele percebeu o que eu já sabia que tínhamos de fazer.

— Sim, de facto — continuei. — Esta é uma das nossas. Chama-se «Glad to See You Go».

Edge deu o sinal que ainda hoje dá quando comunica no palco com Larry e Adam. Não chega a ser um olhar, é uma orientação psíquica que eles parecem compreender, e de imediato fez-se-lhes luz, começaram a tocar a não muito mas ainda assim conhecida música «Glad to See You Go», dos Ramones.

Conseguimos.

Conseguimos pôr o VIP de queixo caído, que não queria acreditar que aqueles miúdos conseguiam oferecer tamanha brutalidade melódica. Marcámos presença no Young Line, e, chegados ao programa, como é evidente trocámos «Glad to See You Go» por «Street Mission», uma canção nossa.

Ninguém reparou.

Outro milagre que atribuímos a Joey Ramone.

O raio que caiu duas vezes no mesmo lugar

Ainda me custa a acreditar que naquela semana de 1976, a semana em que me juntei à banda que se transformaria nos U2, também convidei formalmente Alison Stewart para sair comigo.

Nada voltaria a ser o mesmo. Não se rasgaram os céus, a chuva não parou, e não ficámos no cimo da montanha a olhar a cidade. Na verdade, estávamos na paragem do autocarro de Howth Road, à espera do 31a. Foi às quatro e meia de uma quinta-feira que demos o nosso segundo beijo.

Embora o dia lá fora não estivesse muito interessado nisso, dentro da minha cabeça, por detrás das sardas, a música formava-se com o ruído, uma melodia de canção emergia do barulho. Na minha confusão encontrei clareza, a rapariga que era clara como a água da fonte. Na minha visão, ela andava de novo por cima da água. Tornava-se água.

Mergulhei.

You let me into a conversation
A converstion only we could make
You break and enter my imagination
Whatever’s in there
It’s yours to take

Se os U2 fossem a votos ganhavam a eleição

À quarta-feira só tínhamos meio dia de aulas em Mount Temple, uma tarde livre como um pedaço do fim de semana roubado a meio da semana. Sempre fui desperto, sexualmente falando, mas com Ali ficava particularmente desperto, com os olhos presos nos dela, todos os sentidos sobrecarregados. A sua presença perturbava-me tanto quanto me consolava. Apesar de querer muito ficar sozinho com ela, estava determinado a não me impor a essa pessoa perfeita porque começava a ter alguma reputação como homem do clube da juventude. Mas naquela tarde convenci Ali a ir conhecer o n.º 10 da Cedarwood Road e fiz-lhe uma visita guiada ao meu cubículo minimalista, apenas com uma lâmpada e a cama de solteiro minimalista. Não se tratou de um estratagema para a levar para a cama — não conscientemente —, mas foi o que aconteceu. Que alegria! Nunca conversámos sobre o sexo que não iríamos fazer; simplesmente começámos a seduzir-nos, primeiro de um modo inocente, depois com humor e, por fim, a sério.

Nessa altura, ouve-se o som de uma porta da frente a abrir. A nossa porta da frente.

O meu pai entra, inesperadamente cedo nesse dia. Ali olha para mim sem conseguir disfarçar o choque. Ela não o conhecia.

— Que vamos fazer? — sobressaltámo-nos.

Pânico, pensei.

— Vai para debaixo da cama — disse-lhe com brusquidão.

— O quê?

O olhar dela dizia-me que só podia estar a brincar. O meu disse-lhe que não estava. Se ela não conhecia Bob Hewson, eu conhecia-o demasiado bem.

— Eu não caibo ali.

— Cabes. Tens de caber.

Ela coube.

No momento em que o meu pai chegou ao cimo das escadas e entrou no meu quarto.

— Pelo amor de Deus, o que estás a fazer na cama a esta hora?

— Estou doente — menti, embora tenha começado a ficar um pouco enjoado, como se me encontrasse no local do crime, como se eu fosse o crime.

— Cof… cof — tossi ruidosamente. — Dói-me a garganta.

De todos os dias que o meu pai, mestre da grande Pantomima e da pequena Ópera, poderia ter escolhido para me mostrar o quanto gostava de mim, teve de ser logo aquele. Escolheu aquele para se sentar na minha cama e fazer-me uma série de perguntas relacionadas com o meu bem-estar. Entretanto, Alison Stewart sufocava debaixo do peso de dois Hewson, poucos centímetros acima dela.

Esta é uma situação, ouso até dizer, uma condição, de que ela não se esquecerá facilmente.

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