A família reunida em volta da mesa celebrando a paz e amor, que eram o cerne da mensagem do aniversariante que a cada 25 de dezembro celebramos: à partida, é isto o Natal, a celebração da pureza de coração, das boas intenções, do sono dos justos. Exceto, talvez, para Hollywood.
A indústria cinematográfica tem uma ideia diferente do que é o Natal. Tome-se o exemplo de “Die Hard” (em Portugal “Assalto ao Arranha-Céus”), a história de um homem que, na véspera de Natal, quer reunir-se com a esposa, de quem está separado. Não lhe basta ir ter com ela a Los Angeles, à festa de Natal da empresa dela – o que, como qualquer pessoa que já foi a uma festa de Natal de uma empresa, seria só por si seria cansativo, irritante, possivelmente horrível e certamente matéria para um ótimo guião.
Não, esse homem (chamado John McClane e desempenhado por Bruce Willis) tem de, pelo meio, dar cabo de um ataque terrorista (que na realidade não existe, serve apenas de disfarce para os maus assaltarem um cofre), o que implica rastejar por entre canos, cair em (ou caminhas descalço por) cima de vidros partidos, matar uma data de pessoas pouco cristãs e no fim, provoca o falecimento do último malandro, descalço, de roupa rasgada, suja de óleo, pó e sangue, segundos antes de finalmente encontrar a mulher que nem um reparo faz à indumentária de Willis, ao estado do seu cabelo, à sua higiene em geral, enquanto Willis sorri, feliz por ter conseguido evitar a festa de Natal da empresa da sua esposa.
[o trailer de “Die Hard”:]
O filme foi lançado a 15 de julho de 1988 mas a ação decorre na véspera de Natal e, no fundo, é esta a ideia que os homens de fato cinzento que tomam decisões têm da celebração em causa: um evento tão insuportável que se faz tudo para não passar por ele, incluindo caminhar sobre vidro ou andar aos tiros com ladrões que não conhecemos e que nunca nos fizeram mal algum. (Por ironia, com o tempo “Die Hard” começou a ser visto como um filme de Natal e passa nas televisões nessa data).
Às vezes Hollywood é ainda mais direta: a 25 de dezembro de 1990, fez agora 30 anos, a Paramount estreou mundialmente “O Padrinho III”, um ato que pode ser caracterizado de duas formas: ou a empresa precisava tanto de dinheiro que quis capitalizar no Natal com a sequela da sequela de um filme de êxito; ou odeia tanto o Natal que o quis arruinar dando ao mundo 162 minutos de corrupção, traições, maldade pura, ópera e matanças em barda – ou, como se diz em Hollywood, segunda-feira de manhã.
[o trailer da nova versão de “O Padrinho III”:]
Se a vox populi não estiver errada, talvez a Paramount tenha sido ainda mais pérfida na sua oferta: “O Padrinho III” é visto quase unanimemente como o pior da trilogia, um dos piores filmes de sempre, o pior filme de sempre de uma saga e o pior desempenho da uma atriz na história do cinema, no caso o de Sofia Coppola, filha do realizador do filme, Francis Ford Coppola, no papel de filha de Michael Corleone, aka O Padrinho. Segundo esta versão, a Paramount odiará tanto o Natal que o quis estragar a toda a gente – e mais ainda aos fãs da série – oferecendo-lhes o pior filme de sempre.
Felizmente, a vox populi está quase sempre errada: “O Padrinho III” é um filme tremendo, imbuído de uma carga dramática, trágica, de um pathos que nem os dois primeiros filmes da saga possuíam. Nos dois primeiros tomos da saga era-nos dada a conhecer a ascensão de Vito Corleone de biscateiro a chefe da máfia, a sua morte, a sua substituição pelo filho aparentemente menos habilitado (por ser mais intelectual, usar menos os punhos, enfim, aparentar ser menos macho), Michael.
Mas o que o tomo III nos traz é uma espécie de sabedoria: que ninguém que cause mal está livre, por mais poder que adquira, de ser alvo do mesmo mal; que o remorso corrói e o preço a pagar por obter o que queremos a todo o custo pode (ou é quase sempre) demasiado elevado. “O Padrinho III” era um filme de quem precisava de dinheiro porque o havia perdido todo nas suas aventuras cinematográficas megalómanas e queria simultaneamente receber um cheque gordo e livrar-se de vez da série – e esta acidez que percorria a canalização existencial de Francis Ford Coppola pingou para a fita, tornando “O Padrinho III” um dos mais desesperançados filmes alguma vez escritos, um belíssimo filme sem uma réstia de crença na humanidade, apesar das aparições cómicas de Sofia Coppola a tentar imitar uma atriz sem talento que por acaso fora escolhida para um papel por ser filha do realizador.
O que nos traz ao Natal de 2020, quando Francis Ford Coppola já tem a conta de novo recheada e chegou àquela idade em que se está borrifando para o que os outros dizem e pensam, enquanto a sua filha Sofia sobreviveu à vivissecção pública de que foi alvo por parte da crítica e acabou por se tornar uma realizadora de mérito com pelo menos um par de filmes muito bem conseguidos.
No Natal de 2020, portanto, comemoraram-se os 30 anos de um filme que toda a gente quis esquecer e que por mero acaso se encontra de novo nas salas embora ligeiramente alterado (como aliás toda a gente costuma estar no Natal): a “Part III” da saga “Padrinho” está de regresso numa nova montagem, embora com um nome diferente, sendo agora chamada “O Padrinho, de Mario Puzo – Coda: A Morte de Michael Corleone.” Hey, o spoiler não é meu, é deles – e compreende-se, porque já sabemos que a malta do cinema gosta de estragar o Natal.
O Mario Puzo do novo título – e isto não parece, mas é uma tentativa de explicar a importância desta re-montagem, e para isso preciso de vos dar contexto – foi o autor do romance O Padrinho, no qual o filme se baseou, um livro que foi o primeiro paperback a vender mais de seis milhões de cópias. “O Padrinho” (o filme) não se afasta muito de O Padrinho (o livro), mas empresta-lhe um ritmo (lento, parcimonioso, o ritmo de frutos a murchar, de uma velha a atravessar a passadeira) que confere ainda mais peso à violência brutal do filme.
Talvez o grande mérito de “O Padrinho” (o filme) fosse a sua capacidade de captar instituições queridas dos católicos, como o respeito pelas hierarquias, mesmo que o topo das hierarquias seja ocupada por escroques, o machismo das famílias tradicionais, a duplicidade da ideia de honra, evocada sempre que alguém nos ofende, mesmo que tenhamos acabado de violar o gato de quem de seguida nos ofendeu, etc. Retire-se de “O Padrinho” o poder de mandar matar gente e o que ali temos é uma família tradicional latina no que tem de mais medieval (e que mais atrasa o progresso da humanidade).
1972, o ano em que foi lançado, foi todo de “O Padrinho”, que fez mais dinheiro que qualquer outro filme nesse ano e recebeu críticas arrebatadoras, isto apesar de ter passado a vergonha de ser nomeado para 11 Óscares por aquela que é a mais insignificante das instituições americanas. Apesar deste revés, “O Padrinho” vingou – e logo no ano seguinte estava a ser incluído na lista de melhores filmes de sempre, atrás de “Citizen Kane” (que é provavelmente o pior filme de Orson Welles e fica a milhas dessa obra-prima que é “A Sede do Mal”).
Por norma são precisos anos e anos até um filme surgir nesse tipo de listas, que privilegiam o passado, mas “O Padrinho” foi um clássico instantâneo e, como todos os clássicos instantâneos, foi incorporado na cultura popular, ao ponto de os próprios mafiosos se começarem a vestir como Don Corleone, cujos gestos e forma lenta de falar foram imitados por todos os miúdos (adolescentes, vá) no exato segundo em que acabaram de ver o filme pela primeira vez.
A parte 2 de “O Padrinho”, lançada em 1974, tinha o curioso nome de “O Padrinho, Parte II”, uma imposição de Francis Ford Coppola que queria evitar que os espectadores pensassem que o filme era só uma forma de capitalizar no sucesso do anterior (o que, do ponto de vista dos executivos, era a mais pura verdade), e vissem ambos os filmes como um todo contado em duas partes.
Se “O Padrinho” mudou por completo a ideia que tínhamos do filme de gangsters (por norma filmes rápidos, com muitos diálogos, disparados a uma velocidade estonteante), “O Padrinho II” ultrapassou por completo as fronteiras do género, tornando-se numa espécie de História Prática da América: com as suas mudanças temporais, alternando entre o regresso à infância de Vito na Sicília e a evolução de Michael enquanto padrinho, Parte II traça uma espécie de geografia do desespero que conduziu milhões aos EUA, sem nada e dispostos a tudo, como que revelando que nas fundações desse país estão as vidas destruídas de quem para lá fugiu e está (já nos EUA) uma falta de rede, de apoio da comunidade que facilmente deixa cada um entregue à sua sorte, disposto a, perante a fome, pegar numa arma e roubar ou fazer justiça pelas suas próprias mãos.
“O Padrinho, Parte II”, não só conseguiu ser de novo um êxito de bilheteira como fez de Robert de Niro (desempenhando um jovem Vito Corleone) uma estrela; embaraçosamente, também recebeu 11 nomeações para os Óscares, vencendo seis, incluindo um para DeNiro e outro para Coppola, traumas que, muito provavelmente, ambos ainda carregarão, sabe-se lá a que custo. Pelo meio, o segundo tomo inventou o conceito de sequela e por isso devíamos cancelar para todo o sempre Coppola, mesmo que ele não tenha abusado de ninguém, pois há poucas coisas mais ruins que o conceito de sequela.
Dezasseis anos separaram “Parte II” do terceiro e fatídico filme, feito por dinheiro, como Coppola sempre disse publicamente, como que querendo lavar as mãos da sujeira em que a apreciação pública do filme se tornou. O dinheiro tem espantosas qualidades – e quem duvidar pode dar-me algum que eu, de muito bom grado, demonstrarei as suas virtudes – e alguns defeitos, mas entre estes não consta a obrigatoriedade de se fazer maus filmes por se receber um cheque. O que talvez o dinheiro provoque, quando nos é dado para fazermos uma coisa que não nos apetece, e em particular quando estamos habituados a só fazer o que queremos, é criar em nós uma certa relutância pelo trabalho que temos de executar a troco do cheque.
Nada disto, contudo, faz de “Padrinho III” um mau filme – até porque é um filme espantoso. A razão pela qual o filme desilude até hoje os seus fãs é que as duas primeiras etapas se moviam em terrenos exclusivamente míticos: das bolas de algodão enfiadas na boca de Marlon Brando para criar aquele rosto, passando pela transformação de Michael, aquelas personagens têm uma ténue e vaga relação com os mafiosos reais (que estão mais próximos dos Sopranos, por exemplo, e levam vidas, digamos, menos elegantes). O Padrinho I e II podiam mostrar o horror, mas faziam-no com tanta pinta que os espectadores torciam pelos Corleone como se eles fossem más rezes porque, coitadinhos, teve de ser, enquanto os outros maus eram mesmo maus.
“Padrinho III” retirava o filme desse território mítico (que no segundo tomo incluía quase uma história fundacional da América) e lançava-o num épico de realismo, em que os Corleone recebem o troco e não saem por cima, em que Michael acaba um farrapo, esvaído em culpa pelos seus atos e pelas respetivas consequências. O que III tem de extraordinário e chateia as pessoas é que lhes diz: “Agora vamos parar de brincar ao cinema e mostrar como realmente a vida é”, um ato imperdoável, menos por mim, que adoro o filme (embora também nunca tenha sido convencido pelo desempenho de Sofia).
Há boas notícias para quem até hoje olhou para “Padrinho III” como o Fredo da franchise (isto é, como aquele que não esteve à altura): tanto o início como o fim foram mudados por Coppola (bom, o novo título dá pistas sobre o novo final), que também altera a montagem do miolo do filme, de modo a tornar mais claro que se trata de um filme sobre culpa e redenção e o que se paga pelos atos que se comete.
Desde que aceitaram fazer a parte III que Coppola e Mario Puzo quiseram chamar-lhe “Coda” e quiseram que o filme funcionasse como uma súmula de tudo o que até então tinha acontecido – era o filme que ia enterrar a série, por assim dizer, uma posição curiosa tendo em conta que filmes como “One From the Heart” e “The Cotton Club” haviam deixado Coppola na penúria, pelo que seria inteligente deixar uma porta aberta para um possível IV. Mas não era assim que os Coppola e Puzo viam “Coda” e não foi assim que ele foi feito, antes como uma balança moral a pender para o negrume absoluto.
Trinta anos depois, os odiadores têm nova chance de odiar ou, quem sabe, mudar de ideias. Ao fim e ao cabo, é Natal e há uma quota de mortes no ecrã a que todo o cidadão deve assistir para cumprir a tradição de Hollywood.