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Dentro de uma sala com o candidato e o principal assessor, num almoço acompanhado peixinhos da horta e choco frito e, não menos importante, todos os dias na roda dos candidatos — seja do carro, da bicicleta, da trotinete ou até na esteira de um barco — foram várias as situações em que o Observador conseguiu entrar dentro das máquinas que preparam as campanhas eleitorais em Lisboa. Em mangas de camisa, enquanto comem uma entrada ou recostados num tuk tuk, os candidatos (e quem os acompanha) revelam o outro lado da campanha.
Fernando Medina. O placard com a agenda de Moedas (e o nome de Temido) e o candidato que resiste a jogar à italiana
“Será que o Moedas pode inventar qualquer coisa para o debate?”. Faltam pouco mais de cinco horas para o último confronto televisivo com todos os candidatos a Lisboa, na RTP, e Fernando Medina está sentado no topo da mesa do gabinete de trabalho da sua sede de campanha na Rua Augusta. Tem as mãos cruzadas atrás da cabeça e uma folha A4 à frente, para tirar notas. Por baixo dos papéis está um grande mapa da cidade. Está pensativo e estranha a paragem de agenda do adversário ao segundo dia de campanha oficial para preparar o debate da noite. Já é a segunda vez que faz aquela mesma pergunta.
Da ponta de lá da mesa que ocupa a sala toda tem o seu assessor de imprensa, Pedro Sales. Já têm longas horas de preparação de outros debates — por exemplo, o que ocorrera dias antes com o adversário do PSD — e a esta altura da campanha já está tudo mais do que batido. Ainda assim, o candidato do PS quer saber “o que andam os outros a dizer nas últimas 24 horas”. Enquanto ouve a resposta, vai fazendo scroll down no seu telemóvel, é recorrente vê-lo assim entre ações de campanha, quando circula no mini-autocarro descapotável da sua candidatura. Abre a aplicação do Twitter e pesquisa “Fernando Medina” para saber, ali no segundo, o que andam a dizer de si nas redes sociais.
Na rua anda sempre com o seu assessor de imprensa e com o diretor de campanha, Sérgio Cintra, o presidente da concelhia do PS em Lisboa que é responsável por toda a agenda (e é também administrador da Santa Casa de Lisboa). Para as ações de campanha faz-se também acompanhar dos nomes da sua lista mais adequados — por exemplo no dia das rendas acessíveis segue com a arquiteta Inês Lobo, que foi alvo de ataques da oposição, por ter projetos com a Câmara, que muito irritaram Fernando Medina que a quer no pelouro do Urbanismo. E também de Inês Ucha, outro nome da sua lista que aponta ao pelouro de Obras e Habitação. É Medina que toma a dianteira de todas as explicações, mas volta e meia pede detalhes ao seu staff.
“Sou obcecado com os números desde que trabalhei com António Guterres“. Foi seu adjunto em São Bento, quando Guterres foi primeiro-ministro, e foi apanhado duas vezes sem os números na ponta da língua, o que era fatal junto do antigo líder socialista que hoje é secretário-geral da ONU. “Sofri muito como assessor”, lembra-se. Mas aprendeu e lição e desde então anda com uma pasta com vários dados. Leva-a até entrar nos debates, mas não a coloca em cima da mesa: “Dá imagem de insegurança”.
Tem o adversário mais ou menos localizado. No placard que ocupa toda a parede da sala de trabalho estão dispostas várias informações de campanha, incluindo a agenda de Carlos Moedas nessa semana. É o único adversário que está referido naquele painel de informação. Também está lá perdido, do lado direito do mesmo placard, o nome de Marta Temido. É vizinha (embora seja da freguesia de Arroios e ele das Avenidas Novas) e encontram-se no mercado 31 de janeiro, no Saldanha. Da última vez que se viram combinaram que a ministra da Saúde havia de passar pela campanha. É um ativo de popularidade que Medina não foi o único socialista a aproveitar nesta campanha.
Marta Temido: o trunfo eleitoral que os autarcas do PS não dispensam
“Bem, e a que questões chatas é preciso responder? Há de aparecer aquilo da [revista] Sábado”. No dia do debate, a publicação semanal tinha feito um título com a quantidade de artistas contratados pela Câmara Municipal de Lisboa que constavam agora na Comissão de Honra do recandidato ao lugar. “Bom, isso é responder com a agenda cultural da câmara que é muito extensa”, responde-lhe o assessor que prefere focar o trabalho de preparaçõ do debate na mensagem geral a passar, naquilo que defende que “é a única coisa que importa que saia do debate: és o único presidenciável“.
Serão duas horas para 11 candidatos e, nas contas de Medina, que incluem os descontos das perguntas do moderador, não terá mais de oito minutos, por junto, de intervenção. E ainda que concorde com a estratégia ali delineada em traços largos — falar pouco e manter serenidade quando é atacado –, Medina está inquieto e quer mais. Pergunta por Moedas outra vez e quando na resposta ouve apenas o simples conselho do “concentra-te na tua agenda”, atira desafiador: “Ó Pedro, a tua tática é jogar à italiana e no fim ganhar por um a zero!” Ri-se. Sabe que a maioria absoluta não é provável, a própria sondagem telefónica que a candidatura encomendou deu essa mesma referência. Mas tem vontade de entrar a provocar.
— E se eu levasse o cartaz da habitação?
— Não, ninguém consegue ver nada.
— Mas aquilo é o plano que ele não tem..
— Não.
— Mas se criarmos um facto no debate, mais evitamos que eles os criem.
O cartaz da habitação é um mapa da cidade, com várias bolinhas vermelhas, os pontos de intervenção do programa de renda acessível: onde vão ser construídas casas de raiz, onde vão reabilitar prédios já existentes da CML ou adquiridos recentemente, estão também assinalados os projetos futuros. É a água onde Medina mais gosta de se mover nesta campanha. Na manhã desse dia tinha andado de capacete e colete refletor, cheio de pó nas mãos, nos sapatos, nas calças, no meio das obras de alguns dos apartamentos (em Entrecampos e em Alvalade). Subiu até a um 12º andar, num prédio sem elevador, só para mostrar a vista dos apartamentos que a CML vai alugar a lisboetas, mas a preços controlados.
Não é só entusiasmo de obra, o socialista sabe que este programa que desenhou atinge o eleitorado que o seu adversário do PSD quer conquistar: a classe média lisboeta. É o terreno diretamente disputado a Moedas e quer moer o adversário por aí, sempre que pode. Foi assim boa parte da campanha.
A sua relação com Moedas já foi mais próxima. Chegou a tratá-lo por tu, ainda no início do ano o fazia. Mas entretanto meteu-se a candidatura contra a sua e uma estratégia eleitoral que classifica de “casos e casinhos” que esfriou a ligação. Hoje não comunicam e trocam, mais ou menos publicamente, acusações de arrogância.
Conheceram-se quando Medina estava entre os dirigentes que representavam o PS nas delegações que se reuniam com a troika, mas guarda mais memória de Vítor Gaspar, desses momentos, do que de Carlos Moedas. No início do ano, quando o social-democrata ainda era administrador da Gulbenkian, encontraram-se num evento da Fundação. Dias antes, o comentador dominical da área do PSD Luís Marques Mendes tinha lançado Moedas como uma possibilidade para Lisboa. Foi logo no início do ano e mal viu Moedas não resistiu à provocação. Mas a resposta do lado de lá não lhe deu grandes certezas sobre esse avanço.
Medina garante que “é disciplinado” quanto à postura que deve manter no combate político, segue o que lhe dizem, mas são várias as vezes em que desacerta com esse guião e ele mesmo se surpreende com a agressividade das suas palavras. Um dos assuntos que mais o faz escalar é precisamente o adversário do PSD. Exemplo disso é a surpresa quando lê que os jornais escreveram que, de manhã, atirou a Moedas de forma mais descontrolada, em conversa com os jornalistas: “Tantos meses e tantos cérebros a pensar e não conseguiram ter nenhuma solução nem nenhuma proposta credível para resolver os problemas da habitação! A única proposta é dar descontozinhos às famílias mais ricas”.
Enquanto prepara o debate, volta a tentar incluir a habitação nos temas a pôr em cima da mesa. Dessa vez com outro argumento: “Acho que dizer isso do acordo de esquerda, que é no dia seguinte que se vê, é curto. Quero vincar a diferença na habitação, que não tenho qualquer preconceito com os privados”. Mas o assessor percebe onde quero candidato afinal chegar e trava-o, mais uma vez. “Isso é para o centro, são 17% dos eleitores, não te podes esquecer dos outros lados”.
Passaram-se quatro anos desde que Medina se candidatou pela primeira vez à Câmara como cabeça de lista, a diferença face a essa campanha, que o Observador também acompanhou diariamente, é assinalável. Medina está mais solto nas ruas, embora conserve alguma rigidez perante as críticas que ouve.
Quando lhe pedem esclarecimentos concretos, ouve a anota, com tempo. Quando o assunto é um ataque mais direto á sua obra, responde, muitas vezes, ríspido. Por exemplo, em plena Avenida Almirante Reis — a via da polémica ciclovia que nasceu pela calada do isolamento e que entupiu trânsito e paciência — quando seguia de bicicleta numa ação de campanha, dois homens reclamavam porque uma senhora tinha acabado de tropeçar nas lombas de separação de faixa ali colocadas sob a sua gestão. A resposta de Medina é que nada teria acontecido se a senhora tivesse atravessado na passadeira.
Gaba-se de há quatro anos, quando passou na Avenida da República em campanha, ter ouvido buzinadelas, e de, agora, fazer um mini-comício em plena hora de ponta, na esquina perto da pastelaria Versailles com autocarros elétricos e ciclistas a passarem nas suas costas. Garante que ele mesmo usa as ciclovias e, no dia em que dá uma volta desde Telheiras ao Martim Moniz, mostra o seu modelo topo de gama elétrico. “Estão a ver como não é só para o boneco? Nem ao fim de semana! Ando muitas vezes para ir trabalhar e ponho aqui o blazer e a garrafa de água”. Está tudo arrumado na mala lateral impermeável instalada na bicicleta. Conta o percurso que faz até casa quando sai da CML e garante que, com o apoio elétrico à pedalada humana, leva uns nove minutos.
“Bem, acho que vou para casa descansar”. São 17h57 e o candidato dá a preparação do debate dessa noite por feita — mas ainda acaba por fica mais meia hora à conversa. A preparação do frente a frente com Carlos Moedas demorou bem mais tempo. Conta divertido como esteve, primeiro, muito tempo a ouvir pessoas sobre se devia ou não aceitar um debate a dois. Depois, ouviu as mesmas pessoas sobre a estratégia a alinhar. Na sua equipa não se entendiam sobre a tática a seguir: entrar agressivo? Entre os que ouve com regularidade está, por exemplo, o antigo ministro José António Vieira da Silva, que também ouviu sobre essa estratégia.
No fim de tudo, calou-se. Já tinha decidido, mas sozinho. Não disse nada a ninguém e seguiu para o debate sem abrir o jogo. A decisão tinha sido ir pelo combate, endurecer o tom logo à partida, independentemente do que pudesse chegar. Entrou logo a prometer “denunciar as tentativas de aproveitamento político” de situações de suspeita, numa referência ao caso de Manuel Salgado e ainda nem Moedas tinha feito qualquer intervenção. Naquelas hora de alta tensão, os dois a trocarem acusações fortes e Medina disparou, quase de rajada, um vasto conjunto de ataques: “é um a camaleão”; “quer parecer moderninho”; “tem um cabaz de Natal e promete tudo a todos”; “qual o valor do passe para os idosos, diga lá?”.
Saiu irritado com o tom crispado que ele próprio tinha imprimido logo de início. Foi sempre em crescendo até ao fim. Descontraiu ainda no estúdio da TVI, onde tinha decorrido o frente-a-frente, quando olhou para um dos ecrãs e ouviu os comentadores, na TVI 24, a darem-nos como vencedor. No seu staff lamenta-se, ainda hoje, que “o problema do debate foi que correu bem de mais“. E isto porque se teme que o facto de não ter havido propriamente uma bipolarização, entre Medina e Moedas, durante a campanha acabe por prejudicar o resultado eleitoral, distribuindo os votos em vez de os concentrar num dos lados daquele antagonismo. Agora os dados já estão lançados.
Carlos Moedas. O abraço de Portas, o último discurso e os sinais para o futuro
Paulo Portas entra no camarim onde Carlos Moedas prepara o seu grande e último comício da candidatura, do lado oposto da entrada para a “Sala de Espectáculos”. Os dois trocam um abraço e algumas palavras de circunstância. O par de olhos estranho àquele círculo mais íntimo impede conversas mais profundas. “Depois falamos”, diz-lhe Portas. No final, em declarações aos jornalistas, o antigo líder do CDS violou a regra que auto-impôs, abriu uma exceção para falar de política nacional e fez o endorsement a Carlos Moedas.
Foi sempre ele um dos grandes confidentes de Carlos Moedas ao longo de todo este processo. Não só no processo de decisão, como ao longo de toda a campanha, período em que os dois se mantiveram em permanente contacto. Moedas ouviu Portas antes de avançar, e não ouviu Passos, facto que se tornou notícia logo no arranque da candidatura. Portas marcou presença no último grande ato da campanha eleitoral de Moedas, Passos não. Nem na quinta-feira, nem antes, nem depois.
Ao contrário do que aconteceu com Portas, a amizade entre os dois, Moedas e Passos, é de outra natureza, mais retilínea, menos emotiva. Se Passos não guardou rancor por não ter sido ouvido no período de reflexão, Moedas não ficou sentido por Passos ter decidido não se juntar à campanha e ter preferido manter a reserva. Seja como for, Moedas cumpriu o seu ciclo para lá de Passos.
No camarim, é a vez de Luís Marques Mendes. Por ironia, os dois mais influentes comentadores de direita e dois possíveis candidatos a sucessores de Marcelo Rebelo de Sousa quase se cruzam nos bastidores — ele que, a par de Paulo Portas, foi outro que Moedas fez questão de ouvir antes de tomar a decisão e que não pode estar ali por razões institucionais.
Mais expansivo, Marques Mendes mostra-se incrédulo com a ausência das televisões e Moedas haverá de concordar. Foi, de resto, uma constante ao longo de toda a campanha: o pequeno ecrã ainda é um pequeno tirano, e sem televisão não há campanha, sem campanha mediática não há notoriedade e sem notoriedade dificilmente existirão hipóteses reais de vencer um incumbente como Medina.
Na cabeça de Carlos Moedas e da comitiva que o acompanha, a falta de cobertura mediática foi um obstáculo permanente. Isso e a opinião publicada, sobretudo da direita e do centro-direita, que nunca o viu como o campeão desejado ou desejável. Se os obstáculos foram intransponíveis ou não, as eleições de domingo (também) poderão ajudar a esclarecer. A sensação que tiveram, no entanto, é que o campo nunca esteve nivelado de forma justa: fosse pela preferência por Medina, fosse pelo desgaste dos dois maiores partidos da coligação, fosse pela contestação a Rui Rio e pelo clima de pré-guerra civil que se vive no partido.
Paulo Rangel também ali estava, no corredor. A presença do eurodeputado tinha sido confirmada horas antes pela equipa de Moedas. Ele que acabou por marcar inevitavelmente a campanha autárquica, incluindo a de Lisboa. A entrevista no “Alta Definição”, a presença ao lado de vários candidatos do PSD por esse país fora, as notícias sobre as suas alegadas intenções, o contra-ataque da direção de Rio, a presença, na véspera do comício de Moedas e no dia em que Rio e Rodrigues dos Santos desceram até Lisboa, ao lado de Miguel Pinto Luz, tudo contribuir para ajudar a transformar estas autárquicas num plebiscito à permanência de Rio.
Durante os dias de campanha, foram muitas as vezes que os homens de Moedas se queixaram disso mesmo: a pré-campanha interna no PSD estava a desviar esforços e atenções. Para os homens do antigo comissário europeu, atingir Moedas passou a ser um dano colateral na guerra contra Rio. No arranque da pré-campanha, Moedas esforçou-se por dizer que “não era número dois de ninguém”, mas a narrativa mediática estava montada. Numa campanha já com poucos recursos e com dois aparelhos partidos — o de PSD e o do CDS –, tudo ficou mais difícil.
Paulo Rangel nunca chegou a entrar no camarim, onde Carlos Moedas esteve sempre acompanhado pelo seu assessor, António Valle, antigo homem de Pedro Passos Coelho. Mas seria Rangel a fazer o discurso da noite. “Para concluir, deixem-me só deixar aqui uma palavra pessoal: queria agradecer ao Carlos Moedas a disponibilidade, o espírito de serviço e a coragem que demonstrou nesta candidatura”, disse Rangel já em cima do palco.
Seria um momento carregado de simbolismo. Moedas, depois de muitas hesitações, acabou por aceitar ser o ticket de Rio em Lisboa, arriscando tudo numas eleições altamente desfavoráveis. Rangel recusou ser a cara de Rio no Porto e prepara-se para arriscar tudo numas internas de desfecho imprevisível.
Naquele espaço, estavam ali quase todos os que estão em condições políticas de ser, num futuro próximo, a liderança da direita. Não estavam Rui Rio, nem Francisco Rodrigues dos Santos, deslocados noutros pontos do país, mas estavam Portas e Mendes e também Rangel. Só Carlos Moedas rabiscava com uma letra perfeita nas folhas de discurso que levaria para o palco a expressão “‘Novos Tempos’ é já.”
Se o tempo de Moedas é já ou não só a contagem dos votos o dirá. No núcleo duro do candidato ainda acreditam que é possível. Porque as sondagens não são fiáveis, porque os meios tradicionais já não têm o monopólio da informação, porque há uma maioria silenciosa que vai sair à rua no domingo. Mas mesmo que não o queiram admitir — e não querem — o cenário da derrota é o mais provável.
Num dos telefonemas noturnos que o Observador manteve com Carlos Moedas, o antigo comissário garantia que jamais se arrependeu da decisão de avançar. Ganhando ou perdendo, a experiência vai deixar marcas. Não há exatamente uma desilusão com a política, mas o perder de uma certa inocência. Se quiser ambicionar a outros voos no futuro, Moedas sabe que precisará de mais músculo, mais recursos e mais argúcia, aquela que só se adquire quando se aterra nos circuitos da carne assada.
Seja qual for o desfecho, Moedas não pensa para lá de 26 de setembro. Foram quase sete meses de campanha, a pensar uma candidatura de raiz, com tudo o que de bom e de mau isso implica, até de desgaste físico — perdeu alguns quilos durante esta corrida eleitoral e muitas horas de sono.
Quem com ele lida de perto e lhe conhece a tendência para dizer “jamais” quando se frustra com a política, já o aconselhou a ter calma antes de dizer desta água não beberei. Quando se despediu dos apoiantes do Centro de Congressos de Lisboa, deixou uma frase no ar que é todo um programa. “Dei tudo o que tinha”. Mas a viagem pode ter começado verdadeiramente agora.
João Ferreira. O coletivo que tudo decide
Quem acompanha João Ferreira arruada após arruada notará que o candidato raramente se apresenta em nome individual: cada vez que estende um folheto a um potencial eleitor, diz que ali poderá conhecer “os candidatos da CDU”, sem mais. Não é por acaso: num partido que privilegia o coletivo, toda a campanha é organizada a pensar no conjunto — e não apenas no candidato.
A tendência nota-se assim que os elementos da comitiva que combinaram tomar café com o Observador chegam ao quiosque de Carnide e gracejam: “Olha, há tanto tempo que não te via!” “Nós estamos sempre juntos, é uma comuna”. A primeira deixa é de Isaura Lobo, que dá apoio no gabinete eleitoral da CDU Lisboa; a resposta irónica é de Nuno Ramos de Almeida, jornalista, que participa na organização e produz textos e vídeos para a campanha. Ao lado sentam-se Ricardo Varela, assessor de comunicação; Jaime Rocha, que dá apoio à campanha e faz a ligação a outras organizações; e João Carlos Pereira, do apoio à secção de informação e propaganda do PCP.
Logo de início, frisam precisamente que estão ali como representantes de um coletivo maior e que não é só deles que depende a organização da campanha. Mas passa muito por ali: nas ações diárias de Ferreira, as presenças de Ricardo, em constante comunicação com os jornalistas, Nuno, Jaime e João são constantes. Mesmo assim, apressam-se a explicar que a CDU “não se foca só na campanha do primeiro candidato” e que os candidatos das 24 freguesias — serão cerca de 40 mil pelo país todo, dado de que a CDU, que valoriza particularmente a sua implantação autárquica, se orgulha — têm “agenda própria”. “Somos diferentes, isto é uma causa”, traduz o assessor de imprensa.
Expressões que todos repetem: o trabalho é “contínuo” e não se faz apenas nestes quinze dias; o contacto com pessoas e organizações é “constante”; e, sobretudo, o “espírito coletivo” impera. Isso “abre um conjunto de contactos com ativistas e organizações”. Ramos de Almeida concretiza: “Mesmo quando não votam em nós, reconhecem que somos gente séria e acham importante dialogar connosco”. E exemplifica: em “debates recentes”, o partido contou com a presença de Ana Drago ou do economista Ricardo Paes Mamede. O grupo ri-se ao lembrar que ainda na véspera um rapaz apareceu de rompante numa arruada para apoiar Ferreira mas recusando aparecer em fotografias, porque é militante do PS: “Era o militante mistério do PS… É motivador”. Essa rede de apoios que não vêm necessariamente do PCP serve para Jaime Rocha contrariar a “caricatura” que por vezes se faz do “espaço da CDU: falam nos Verdes como uma bengala, por exemplo…” E contrapõe: “Temos dezenas de milhares de candidatos independentes”.
A tal “seriedade” e a preparação que costuma ser apontada como qualidade a João Ferreira confirma-se nos debates, defendem: “Muitas vezes, os outros quando querem confirmar dados, dizem: como disse o João Ferreira… ele é uma espécie de referência, de certificação da qualidade dos dados”, diz Ramos de Almeida. E logo Ricardo intervém para completar: “Acaba por dar corpo ao coletivo”.
Nessa preparação para os debates, a candidatura tem “a vida facilitada”: os oito anos de Ferreira na vereação e o tal trabalho contínuo ajudam — “e comparativamente com os candidatos que chegaram agora… nós não chegámos hoje”, refere Ricardo.
A maneira como Ferreira chega às ações de campanha é que varia: sendo uma campanha local e não nacional, o candidato tanto vem de carro — não é a opção que a comitiva prefere, mas por motivos de agenda (apertada), é o que convém — como de bicicleta ou de metro, “pelos seus meios”. E no meio disso consegue dormir? “Ele dorme. Se é o tempo necessário é que é outra coisa…”. Nos últimos dias será mais difícil: a agenda tem-se intensificado e tem-se apostado mais no contacto de rua, depois de muitas ações sentadas e a falar para o público que já está convencido; a comitiva garante que sente uma “onda crescente”, como descreve João Carlos Pereira.
Nesta campanha, não há grupos de WhatsApp específicos: na comunicação é o “vale tudo”, há muitos telefonemas, trocas de mails, “até gritos e gestos na rua, quando nos encontramos”; gracejam. Até porque as tarefas já estão, de antemão, “divididas”, e quem conhece o PCP sabe que a organização é um valor privilegiado.
Mesmo assim, como em qualquer grupo, há imprevistos a que se responde com uma “capacidade de ir inventado”, conta Isaura Lobo: “Temos sempre um plano B ou C”. Exemplos? “Oh, tanta coisa… o tempo… ficarmos sem colunas…”. Ainda há pouco, um problema mais bicudo, conta Jaime Rocha: “Estava a haver um velório perto do sítio da nossa ação, por isso mudámos de local!”. Para outros imprevistos, lembra Isaura, chegou, na campanha de 2017, a haver um pacote de arroz pronto para ser usado pela comitiva, caso houvesse um azar e algum telemóvel se molhasse — nesse caso, valeria a solução caseira. No coletivo, há sempre uma rede de camaradas pronta a improvisar.
Beatriz Gomes Dias. O media training para responder a “candidatos mal educados”, os milhares de notificações de Whatsapp e os pratos vegetarianos
O quarteto está sentado nas escadas do Capitólio, em Lisboa, de computador ao colo. Já passa das 23h de quinta-feira, o sprint final da campanha está em andamento — o Bloco acaba de fazer uma espécie de comício de encerramento com Catarina Martins e Mariana Mortágua no palco — e só falta acertar uns pormenores sobre a agenda do dia seguinte, o último da campanha. Como sempre, Filipa, Ricardo e Rodrigo são as três figuras que se juntam em volta da candidata para rever o calendário e combinar todos os detalhes — é preciso fazê-lo antes de que Beatriz regresse, a pé, para casa, para descansar antes do seu último dia de campanha.
O cenário foi uma constante durante estes quinze dias: esteja a comitiva onde estiver, é certo que Ricardo Moreira — nº2 nas listas e diretor de campanha –, Rodrigo Rivera — assessor de comunicação — e Filipa Gonçalves — assessora e coordenadora do gabinete de Manuel Grilo, atual vereador do BE — estarão lá. São eles que, horas antes de se juntarem à porta do Capitólio para planearem o último dia, se sentam com o Observador numa esplanada lisboeta, no rescaldo da maior arruada da campanha, na Rua Morais Soares.
E é ali que fazem também um rescaldo da campanha propriamente dita e dos tempos que a antecederam, da preparação necessária para apresentar Beatriz Gomes Dias — que já era eleita por Arroios, mas virtualmente desconhecida a nível mediático — à cidade e ao país. Foram cerca de “quatro meses” de preparação, de muitas conversas e visitas com Manuel Grilo, que colaborou na transição da pasta, recorda Filipa.
“Essa relação entre o Manel e a Beatriz já existia”, conta Ricardo. “São os dois professores” — ele do ensino primário, ela de Ciências no 2º e 3º ciclos — estiveram os dois no Sindicato de Professores da Grande Lisboa, dão-se muitíssimo bem. E ele quis sair para terminar a carreira como professor”, explica.
Mesmo assim, foi preciso preparar Beatriz para os debates — em termos de comunicação, porque apesar de todos lhe elogiarem a clareza (“por ser professora, tem o hábito de descomplicar a mensagem”) “ninguém nasce ensinado” a falar para as câmaras, como assume Rodrigo, o maior responsável pelo media training. E é preciso transmitir uma imagem de preparação e evitar gafes — “os debates são preparados ao milímetro”, estudando as propostas dos outros partidos e contactando “os melhores especialistas em cada área” para garantir que as propostas são realistas e que não há passos em falso em direto.
Ainda assim, a própria candidata queixa-se ao Observador da cobertura que foi feita sobre a sua prestação no primeiro debate, na SIC — no geral, os comentadores acharam a candidata apagada e em muitos momentos ofuscada por João Ferreira, do PCP. A equipa assume que foi preciso ajustar a prestação. “No primeiro debate percebemos que havia candidatos que eram mal-educados, atira Rodrigo. “E a Beatriz é uma pessoa extremamente educada e cordial, não queria entrar nesse registo. Mas quando temos candidatos que interrompem, falam por cima, e mais alto, e porque são homens interrompem mais facilmente mulheres.. Tivemos que preparar com ela formas de conseguir explanar melhor o programa sem ser interrompida por ser mulher, por ser mulher negra”, frisa.
Apesar disso, a perceção da equipa é que a campanha foi, depois, em crescendo e que as ações de ruas ajudaram — são as preferidas de Beatriz. O foco passou por esse contacto com a população e também por visitar obra feita que mostre que a influência do BE nestes quatro anos contou mesmo para mudar a cidade — Filipa lembra as visitas ao novo centro de acolhimento para pessoas sem abrigo, num antigo quartel de Lisboa, ou às casas prontas para entregar para arrendamento acessível, materialização das bandeiras do BE. E riem-se quando se lembram de que algumas dessas medidas aparecem agora “nos folhetos” de Fernando Medina: “Há quatro anos dizia que o nosso plano (100% público) para a Habitação era um plano impossível e chamava-lhe PPP: plano para o papel. Se não fosse esse acordo, Medina não teria nenhuma casa para apresentar. Nem uma!…”, frisa Rodrigo.
Por isso, mesmo que Medina tenha feito, durante toda a campanha, questão de ignorar o partido-parceiro, Ricardo explica a estratégia bloquista, que passa por contrariar essa ideia: “O centro da nossa campanha é dizer que o BE se empenhou para quebrar a maioria absoluta do PS. O PS quando tem maioria absoluta não ouve ninguém”. O passo seguinte foi assegurar — coisa que Beatriz fez em todas as iniciativas, sempre que teve o microfone à frente — que o BE quer mesmo influenciar a governação da cidade nos próximos quatro anos, aproveitando a indefinição do PCP. “Isso é uma questão de transparência, não tem que ver com a campanha”, corta Ricardo. “Hoje as pessoas sabem que houve coisas que não foram cumpridos porque há um acordo transparente. Não fazemos acordos secretos. Ficámos surpreendidos por João Ferreira” não fazer o mesmo: “É uma política muito mais difícil de compreender, até pelos eleitores”, sentencia.
Estas e outras análises são feitas sempre pela mesma equipa: se a candidata conta ao Observador que todos os dias, preferencialmente pela manhã, anda para trás na box da televisão lá de casa para ver as peças sobre a sua campanha e as análises que estão a ser feitas, a equipa conta que Ricardo, que acorda mais cedo — pelas 6h30 ou 7h — é o primeiro a ler os jornais do dia e a fazer o clipping. “A seguir acorda o assessor de imprensa”, gracejam — mas Rodrigo também é o que se deita mais tarde, e Filipa a que se dedica a “escarafunchar” a fundo todas as notícias. Depois, quando não estão juntos, trocam mensagens por Whatsapp ( Rodrigo diz que chega a receber mil notificações por dia) nos vários grupos que existem para falar da campanha; o que centraliza tudo chama-se, muito literalmente, “Lisboa” e é ilustrado por uma foto de Beatriz.
A campanha decorre de forma organizada, asseguram… menos no que toca ao transporte da candidata. “É caótico”, ri-se Rodrigo. E explica porquê: Beatriz tanto chega de carro, acompanhada por um deles, às iniciativas como decide ir de transportes ou a pé — mas quase nunca chega atrasada (e é difícil fazê-la atender o telefone à primeira). Na logística, não parece haver outras dificuldades de maior: é “quase vegetariana” e o Observador viu-a escolher um prato de tofu com arroz numa ação durante a primeira semana, mas a equipa explica que também come peixe, “filetes ou salmão” se entrar num restaurante mais “popular”, o que facilita a escolha. No final do dia, e por ser uma pessoa com muitos cuidados com a voz — outra herança dos tempos de professora — bebe o seu chá de gengibre, para evitar a rouquidão. Depois, tudo recomeça.
Bruno Horta Soares. O choco frito, uma dieta intermitente e a maratona
Bruno Horta Soares lança-se a toda a velocidade ao pão com manteiga e azeite, e haveria de pedir mais. Num piscar de olhos, despacha uma imperial e pede outra. Os milhares de metros percorridos todos os dias abrem espaços a excessos e permitem suspender os cuidados adicionais — ele que só se dá bem com o jejum intermitente.
O ponto de encontro entre candidato e Observador é na Petisqueira Matateu, integrado campo d’Os Belenenses. Coincidência ou não, Horta Soares vem com uma farda que foi alternando ao longo de toda a campanha: azul petróleo, camisa branca, sapatilhas idem, com três riscas, duas azuis, uma vermelha, as cores da Iniciativa Liberal. No pulso direito, um relógio digital com o símbolo da IL como fundo; no pulso esquerdo, uma pulseira da IL; na lapela, um pin do partido. Tudo a rigor.
À mesa, com o assessor de imprensa, Bernardo Blanco, discute-se um programa de comentário político do dia anterior, onde uma influente jornalista e analista política insistia que João Cotrim Figueiredo deveria ter sido candidato do partido a Lisboa. E aponta-se o óbvio: o partido só conseguirá crescer se apresentar outros protagonistas e lançar novos quadros, não ficando exclusivamente dependente da mesma figura. Além disso, de um partido que se diz diferente não se pode esperar que aja da forma convencional. Correu bem com Tiago Mayan Gonçalves nas presidenciais e pode correr bem em Lisboa.
A conversa ia correndo vários temas. “O ano de merda” — frase que marcaria o debate transmitido pela SIC — que acabaria por adiar a viagem ao Polo Norte que estava pensava, as preocupações da mãe com a vida frenética que leva, o efeito que a candidatura pode ter na vida dos filhos, muito longe ainda de perceberem o que pode acontecer, o trabalho como consultor a expensas próprias depois de muitas experiências em escritórios que exigiam demasiado, a especialidade em cibersegurança e as debilidades da Administração Pública, a preocupação com a falta de preparação que a comunidade tem para lidar com o cyberbullying e o que sofrem e o vão sofrer os miúdos com novas práticas de pressão na escola.
Mas a discussão, regada com mais duas imperiais e alimentada à força de dois croquetes com mostarda, ovos rotos com presunto, gambas “à Guilho”, peixinhos da horta e choco frito (partilhados com os demais comensais), andaria sempre à volta do prato principal: a política.
Do desencanto com a JSD e com as práticas instituídas à criação da IL — Horta Soares foi um dos três fundadores do partido; das aspirações do partido às pressões para federar uma direita que em que faltam pontos de convergência e sobram pontos de divergência; da candidatura de Carlos Moedas até às reais hipóteses de eleger o primeiro vereador.
Na quinta-feira, dia em que o Observador almoçou com Bruno Horta Soares, já é conhecida a sondagem do Público/RTP que dá boas perspetivas de eleição à Iniciativa Liberal. Os indicadores animam, mas ninguém ignora os riscos. Carlos Moedas tentou a todo custo bipolarizar a campanha para esvaziar as candidaturas à sua direita; Horta Soares (e outros dirigentes da IL) tentaram a todo custo vender a ideia de que a candidatura de Moedas estava já derrotada e que o apelo ao voto útil era inconsequente, logo, menos vantajoso que a eleição do primeiro vereador liberal. O problema é que a sondagem não é tão conclusiva como esperavam.
O facto de manter todas as perspetivas em aberto para Carlos Moedas, não o arredando de todo da corrida –, pode contribuir para convencer os que querem penalizar Medina a transferirem o voto da IL para a coligação de direita. Ainda que a comitiva que acompanhou Horta Soares entenda que Moedas falhou em conseguir agarrar a campanha, uma sondagem destas pode mudar tudo.
Seja como for, para uma corrida feita “sem dinheiro” e à custa de muito voluntarismo e de uma boa dose de improviso, os objetivos foram quase alcançados. A eleição de um vereador seria a cereja no topo do bolo, mas a “maratona” não se esgota aqui. “Da mesma forma que não se gere start-up como uma grande empresa, a IL não se gere como um grande partido”, diz Horta Soares. Uma outra forma de dizer: há tempo.