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LEON NEAL/AFP/Getty Images

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O que é que o Cazaquistão tem?

Do solo brota petróleo e gás natural e a capital compete com o Dubai em arrojo urbanístico. O Cazaquistão vai receber a Expo e tenta abrir-se à democracia. Mas (ainda) está longe de o atingir.

Setembro de 2006. Na Casa Branca, os presidentes George W. Bush e Nursultan Nazarbaiev. Em frente à embaixada do Cazaquistão, o “jornalista da TV Borat Sagdiyev” dirige-se aos media: “Dizem que na minha nação as mulheres são tratadas com igualdade e que todas as religiões são toleradas. Isto são invenções nojentas”. O jornalista é na realidade o ator Sacha Baron Cohen que, num golpe de génio, promove o falso documentário Borat: Aprender Cultura da América para Fazer Benefício Glorioso à Nação do Cazaquistão.

Borat é uma personagem de um filme que, apesar de rodado nos Estados Unidos (e na Roménia), apontou os holofotes para um país tão grande quanto desconhecido no Ocidente. “A única coisa certa sobre o Cazaquistão neste filme é a sua posição no mapa”, escreveu na página da BBC o cazaque Yerlan Askarbekov, num texto em que recorda a forma como o filme foi recebido naquele país da Ásia Central.

Apesar de o objetivo de Borat ter sido confrontar os norte-americanos com os seus próprios preconceitos através de um humor desabrido (e para alguns, chocante), a imagem que colou aos cazaques era a de um povo violentamente misógino, perseguidor de judeus e que se alimentava de urina fermentada de cavalo. À época, se o ministro dos Negócios Estrangeiros, com fair-play, olhava para os números de pedidos de vistos a subir em flecha, outros, como o porta-voz do Governo (que Borat acusa de “impostor usbeque”) ou o embaixador em Londres, criticavam a ignorância do Ocidente na escolha do país.

Muito mudou no mundo em pouco mais de dez anos deste incidente político-cultural. Mas o inglês Sacha Baron Cohen continua a surpreender enquanto comediante e o cazaque Nursultan Nazarbaiev mantém-se como um líder autoritário.

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O Cazaquistão voltou ao radar mediático. Neste ano, em duas ocasiões recebeu conversações de paz sobre a Síria, nas quais o regime de Bashar al-Assad e alguns grupos opositores se sentaram à mesma mesa, o que aconteceu pela primeira vez. A capital, Astana, vai acolher a exposição universal. E o regime promete abrir-se a reformas políticas.

“O objectivo da reforma que está em cima da mesa é uma redistribuição significativa de poderes e de democratização do sistema político como um todo”, declarou o presidente no final de janeiro.

O anúncio foi feito pelo presidente, na TV. Explicou que nos primeiros anos de vida do país enquanto entidade independente foi necessária uma “estrutura vertical e centralizada”. Mas os tempos estão a mudar, como diria o mais recente Nobel da Literatura. O Cazaquistão vai encetar um processo de alterações constitucionais, no qual Nazarbaiev vai ceder poderes ao Parlamento e ao Governo. “O objetivo da reforma que está em cima da mesa é uma redistribuição significativa de poderes e de democratização do sistema político como um todo”, declarou o presidente no final de Janeiro.

Os pormenores ainda estão a ser definidos, mas a revisão constitucional irá dar aos deputados responsabilidades no que toca ao controlo do executivo (incluindo a moção de censura) e este, por sua vez, ganhará autonomia e assumirá funções que estão até agora reservadas ao líder. Já o presidente deverá concentrar-se nas relações externas, na defesa e na segurança. E, caso parlamentares e governantes entrem em desacordo, poderá desatar o nó – para evitar bloqueios institucionais e, ao mesmo tempo, manter o estatuto de comandante.

O que esperar desta mudança anunciada? “As reformas constitucionais propostas ajudarão a assegurar a estabilidade do sistema político, a proporcionar mecanismos mais eficazes de resposta aos desafios modernos e, finalmente, a avançar no sentido do desenvolvimento democrático”, diz o chefe da missão diplomática do Cazaquistão em Portugal, Nurzhan Abdymomunov.

“O Cazaquistão tem uma fortíssima colónia russa. Quem domina e quem exerce o poder continua a ser toda uma elite que está dependente das boas relações com a Rússia. As reformas são mais para ver se há uma abertura em relação à Rússia siberiana”
António Tomé, professor da Universidade Lusófona

“Diria que não é só fachada. Há uma tentativa em compreender o que poderá ser melhor para o país”, comenta Licínia Simão. A investigadora do Centro de Estudos Sociais, especializada no espaço pós-soviético, explica: “O que está a acontecer no Cazaquistão deve ser enquadrado nos processos de transição que estão a ocorrer por toda a Ásia Central. Mas não é só na Ásia Central: o caso de Angola é semelhante, onde há um presidente no poder há muito tempo. A morte recente do presidente usbeque, Islam Karimov, lançou o debate na sociedade cazaque. São ensaios para saber como é que os grupos de pressão vêem as alterações que vão sendo propostas para posicionar nos sítios certos as pessoas que mais interessam à elite política.”

António Tomé, também professor universitário, reconhece a abertura do país, mas não se mostra tão otimista quanto ao alcance da propalada reforma. “O Cazaquistão tem uma fortíssima colónia russa. Quem domina e quem exerce o poder continua a ser toda uma elite que está dependente das boas relações com a Rússia. As reformas são mais para ver se há uma abertura em relação à Rússia siberiana”.

Neste ponto a docente da Universidade de Coimbra converge com o seu colega da Lusófona: “O Cazaquistão tem uma particularidade, que passa pelo facto de ter uma classe oligarca importante. Há sectores económicos e financeiros que estão muito envolvidos na governação do país, um bocadinho à semelhança da Rússia.” Além da percentagem da população de etnia russa no território (que se situa em cerca de 20% da população, um valor elevado, mas já foi muito superior), António Tomé, na qualidade de doutorado em Poder Aerospacial destaca que Moscovo mantém os direitos sobre o cosmódromo de Baikonur. Foi dali que o primeiro homem foi enviado para órbita (Iuri Gagarine) e dali continuam a ser lançados os foguetões para a Estação Espacial Internacional.

“O Cazaquistão não deseja hoje nenhum regresso à subserviência sob o domínio da Rússia, nem a subjugação sob a hegemonia chinesa, nem tão-pouco uma intromissão crescente ou o estabelecimento de bases militares por parte dos EUA”
Parag Khanna, especialista em geopolítica

Mas há quem relativize a influência da Rússia. O especialista em geopolítica Parag Khanna, na obra O Segundo Mundo (Ed. Presença), recorda que a palavra kasakh significa livre e “o Cazaquistão não deseja hoje nenhum regresso à subserviência sob o domínio da Rússia, nem a subjugação sob a hegemonia chinesa, nem tão-pouco uma intromissão crescente ou o estabelecimento de bases militares por parte dos EUA”.

Democracia? Não, para já

Ou seja, abertura sim, mas os padrões não são bem os ocidentais. “Há uma sociedade mais aberta e diversa do que nos restantes países da região, mas diria que não há espaço para uma verdadeira política democrática, neste momento, nem de verdadeiras preocupações pelos direitos humanos, porque desde 2001 tem havido uma instrumentalização da ameaça terrorista: com a guerra contra o terrorismo, os países da região aproveitaram para acusar opositores de serem ativistas islâmicos, ou de serem terroristas”, comenta Licínia Simão. Não há religião oficial, mas a maioria da população é muçulmana.

Quer isso dizer que a oposição é incipiente? Mais do que isso: “Não existe oposição em nenhum dos cinco países da Ásia Central. Temos o Usbequistão, porventura um dos mais autoritários, juntamente com o Turcomenistão; temos o Tajiquistão também com um regime muito autoritário mas com grandes fragilidades em termos da imposição desse autoritarismo, até pela natureza sócio-económica daquele país; e depois temos o Quirguistão, que é desde 2010 o primeiro país com um regime parlamentar na região, o que é uma novidade muito interessante. E temos o Cazaquistão com uma imagem de maior abertura, mas ainda assim com um regime extremamente centralizado.”

O consulado de Nazarbaiev trouxe o culto da personalidade ao líder máximo, elevados níveis de corrupção e um historial pouco edificante no que respeita a liberdades, direitos e garantias.

A grande figura do país e a imagem viva dessa centralização é o mesmo homem que anunciou a delegação de poderes: Nursultan Nazarbaiev, à frente dos destinos do país desde 1990, ainda antes da independência. Filho de um pastor, estudou metalurgia e engenharia, mas terá sido a militância no Partido Comunista, iniciada nos anos 60, que lhe dá o passaporte para a elite cazaque. Foi sucessivamente membro do politburo, presidente do conselho de ministros, primeiro secretário do partido e por fim líder da república soviética, quando em Moscovo se chamava a região de Ásia Média e Cazaquistão e quando a planificação central juntava o território à Sibéria. Com o colapso da União Soviética foi um dos impulsionadores da Comunidade de Estados Independentes. Esse tempo faz parte dos manuais de História: o país é hoje o mais bem-sucedido dos vizinhos ‘istãos’. “O Cazaquistão tinha uma tarefa particularmente dificil porque é um país muito diverso etnicamente. A construção nacional foi bem sucedida e reforçou a ideia do Estado”, afirma Licínia Simão.

Culto a Nazarbaiev

Porém, do outro lado da balança, o consulado de Nazarbaiev trouxe o culto da personalidade ao líder máximo, elevados níveis de corrupção e um historial pouco edificante no que respeita a liberdades, direitos e garantias. É verdade que não chega ao ponto do Turcomenistão, no qual o falecido Nijazov se auto-intitulou de turkmenbashi (pai dos turcomanos) e, como mero exemplo, mandou erigir uma estátua da sua imagem com 35 metros de altura e a particularidade de seguir o sentido do sol.

Já de Nazarbaiev há uma exposição permanente (com objetos da sua infância ou ofertas de outros líderes) num instituto com o seu nome, uma nota de 10000 tenge (o equivalente a 30 euros), ou o nome da principal universidade, e no edifício emblemático de Astana, Bayterek, num dos andares do topo, num pedestal, está um molde da mão direita do presidente. Os turistas são encorajados a pousar lá a mão e a pedir um desejo.

O culto da presidente mantém-se em todo o país

STANISLAV FILIPPOV/AFP/Getty Images

Em 2010, o Parlamento aprovou uma lei na qual o “primeiro presidente e líder da nação” mantém o direito a intervir na política após reformar-se e concede-lhe imunidade, bem como à família, que, não é segredo, se tornou numa das mais ricas do país. No índice mais recente de perceção de corrupção da ONG Transparency International, o Cazaquistão está em 131.º, junto com o Irão, a Rússia, a Ucrânia e o Nepal. Noutras listas, como a da democracia, elaborado pela Economist Intelligence Unit, o país situa-se em 139.º, entre o Ruanda e o Zimbabué; segundo os Repórteres sem Fronteiras, pertence ao grupo de estados em que a liberdade de imprensa é mensurada em “situação complicada”.

O diplomata Nurzhan Abdymomunov responde às críticas sobre a ausência de um Estado de direito ao informar que o país se encontra em vias de adotar quatro convenções do Conselho da Europa sobre criminalidade, no sentido de aproximar o sistema judicial cazaque aos padrões europeus. “O Estado de direito foi definido pelo presidente Nazarbaiev como um fator importante na resposta do Cazaquistão aos desafios globais na aspiração de se tornar numa das economias mais competitivas do mundo”.

O Cazaquistão conseguiu atrair mais de 231 mil milhões de dólares em investimento direto estrangeiro nos últimos 11 anos. A entrada do país na OCDE e na Organização Mundial de Comércio são objetivos a prazo.

É na economia que os dados são mais simpáticos: 42.º posto na na lista de 2017 de liberdade económica da Fundação Heritage (a título comparativo, Portugal encontra-se em 77.º). Em contraste com os países vizinhos, o próprio presidente é o primeiro a tratar de negócios e a captar investimento.

Em entrevista ao The Astana Times (assim mesmo, em inglês), o vice-ministro para o Investimento e Desenvolvimento, Yerlan Khairov, explica como Nazarbaiev promove o país no campeonato da atração de investimento estrangeiro. “Nas visitas ao estrangeiro, o chefe de Estado encontra-se com os dirigentes das grandes companhias (…) A experiência demonstra-nos que esta é uma das mais bem-sucedidas ferramentas para promover o clima de investimento favorável”. E deu o exemplo de Tóquio: “No quadro da visita decorreu um forum de negócios nipónico-cazaque (…) Foram assinados 15 acordos comerciais no valor de 1,2 mil milhões de dólares”.

O Cazaquistão conseguiu atrair mais de 231 mil milhões de dólares em investimento direto estrangeiro nos últimos 11 anos. A entrada do país na OCDE e na Organização Mundial de Comércio são objetivos a prazo.

Energia portuguesa em Astana

Nono maior país do mundo em área (2930 quilómetros separam os extremos ocidental e oriental), o Cazaquistão tem menos de 18 milhões de habitantes. Aos cazaques, originariamente nómadas, juntaram-se desde o século XIX, centenas de milhares de russos; tendência que foi alargada a outros povos eslavos já no século XX. Com a independência, o país atraiu os cazaques no estrangeiro e também migrantes dos países vizinhos, China incluída. Além da agricultura e das minas (é o maior produtor de urânio, por exemplo), o Cazaquistão tem petróleo e gás natural. Muito. Está na lista dos maiores produtores de petróleo (14.º em 2016) e também no topo dos estados que possuem maiores reservas comprovadas.

Não por acaso, a energia do futuro é o tema da Expo 2017, a decorrer na capital cazaque, Astana. Uma delegação da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) esteve recentemente em Astana (cujo nome, significa “a capital”) com o objetivo de avaliar a possibilidade do país estar representado na exposição universal que inaugura no dia de Portugal, 10 de junho.

A cidade onde este ano vai decorrer a Exposição Mundial

STANISLAV FILIPPOV/AFP/Getty Images

“O nosso país tem todo o interesse em posicionar-se no quadro deste espaço de oportunidades que se está a abrir e a realização da Expo universal neste ano é uma iniciativa que tem um papel instrumental muito significativo. Para abrir canais e espaços de diálogo temos de ter instrumentos e é sabido que as relações económicas e empresariais são ainda relativamente frágeis entre os dois países”, comenta o economista André Magrinho.

Apesar de faltar menos de três meses para o início da Expo, Nurzhan Abdymomunov mostra-se otimista quanto à presença de Portugal: “Tanto quanto sei, o Governo (português) decidiu estar presente”. O diplomata cazaque explica que papel pode ter o nosso país em Astana: “Hoje, Portugal é um dos países mais avançados do mundo em termos de utilização de energias alternativas. As necessidades energéticas do país podem ser supridas durante quatro dias com a energia do vento e do sol – eu acho que isso é fascinante e motivo de orgulho. Penso que esta experiência pode ser demonstrada a 110 países que desejam afastar-se da dependência dos produtos petrolíferos. Isso também é importante para nós, que, apesar de sermos um país com vastas reservas de petróleo, deseja assegurar às gerações futuras a segurança energética.”

Em Janeiro foi constituída a Câmara de Comércio e Indústria Portugal Cazaquistão, tendo como presidente o antigo ministro e administrador da Galp e da PT Murteira Nabo, e como membros fundadores, entre outros, a Fundação AIP, a Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário e as ordens dos Engenheiros e dos Arquitectos. “O papel desta Câmara de Comércio e Indústria tem um papel catalisador da maior importância. Até se pode considerar como um instrumento de diplomacia económica que vai permitir, no fundo, fazer as ligações entre as empresas e as instituições do Cazaquistão e as de Portugal”, diz André Magrinho, que é também adjunto do presidente da Fundação AIP.

“O tema da Expo é a energia do futuro e nós temos capacidades reconhecidas que faz todo o sentido aproveitar num país que está a infra-estruturar em todos os níveis. Portugal tem feito isso em África, na América Latina. E há todo um espaço ligado às novas tecnologias. Estamos a falar de um país que está a registar um crescimento rápido e há uma série de tecnologias específicas, sejam aplicáveis à área da saúde, sejam aplicáveis à área do ambiente, sejam aos sistemas críticos."
André Magrinho, economista

Que se pode esperar para os portugueses naquelas terras? “O Cazaquistão oferece algumas garantias aos investidores em termos de Estado de direito e de proteção dos investidores estrangeiros e isso é uma boa base de conversa. Para já Portugal tem uma relação comercial muito ténue, que passa pela Partex, a empresa petrolífera da Gulbenkian. A criação de uma câmara de comércio é muito interessante”, comenta Licínia Simão.

“O tema da Expo é a energia do futuro e nós temos capacidades reconhecidas que faz todo o sentido aproveitar num país que está a infra-estruturar em todos os níveis. Portugal tem feito isso em África, na América Latina. E há todo um espaço ligado às novas tecnologias. Estamos a falar de um país que está a registar um crescimento rápido e há uma série de tecnologias específicas, sejam aplicáveis à área da saúde, sejam aplicáveis à área do ambiente, sejam aos sistemas críticos. Mas é preciso fazer as coisas com inteligência e é necessário ter instrumentos e meios de acção”, sentencia Magrinho.

Já António Tomé faz jus ao apelido e mostra-se mais incrédulo, querendo ver para crer. Reconhece que se trata de “um país com potencialidades”, mas expressa as suas dúvidas. “É muito claro para mim. Se houvesse completa liberdade de atuação, se fosse um país livre de influências, diria que era uma oportunidade. Todos os países que estão em desenvolvimento podem ser uma oportunidade, até porque os portugueses têm características históricas e atuais de empreendedores, de pessoas que se adaptam e se misturam com a população. Foi assim que nos espalhámos pelo mundo, não foi propriamente para conquistar. Foi pela via do comércio e do conhecimento de outras culturas.”

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