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Faz esta terça-feira um ano que o resultado eleitoral das legislativas ditou uma divisão tal de votos que PSD/CDS, PS, CDU e Bloco de Esquerda adormeceram sem certezas sobre o que aconteceria nos dias seguintes. E se eles não sabiam, imagine-se os portugueses. Quem governaria? A força política mais votada? O conjunto de partidos que conseguisse entender-se? A esquerda, unida pela primeira vez? Um mês e meio de dúvidas e discussões, dentro dos partidos e fora deles. O debate político voltou a dois polos: de um lado, a direita a reclamar-se como a única força com legitimidade para governar; do outro, a esquerda a apontar um voto de protesto contra os partidos da austeridade, que tinham perdido a maioria absoluta.
Tudo isto provocado por aquela noite de discursos calculados (alguns mais ressentidos) que não permitiram uma conclusão: estava tudo em aberto. À distância de um ano, o Observador ouviu os cinco discursos mais importantes dessa noite e tentou encontrar os sinais para aquilo que havia de acontecer no mês e meio seguinte, entre as reuniões de construção à esquerda e a deterioração da ideia de Bloco Central. E os sinais estavam lá. Ora volte a ouvir e a ler algumas das frases mais relevantes daquela noite.
As deixas de António Costa à esquerda
“O PS tem sido defensor de moções construtivas, não inviabilizaremos um governo sem termos governo para viabilizar. Ninguém conte connosco para sermos só uma maioria do contra”
Foi a frase que mais revelou sobre aquilo que António Costa trazia na cabeça há meses — mas sem certeza se teria margem para concretizar. O desafio à esquerda ficou lançado de forma clara, já na fase de resposta às perguntas dos jornalistas, e com uma condição: não aprovaria a queda de um Governo PSD/CDS sem ter uma alternativa para apresentar.
A moção de censura construtiva é uma figura que os socialistas já defenderam em mais do que uma revisão constitucional e passa pela obrigação de apresentar uma alternativa de Governo viável quando se avança no Parlamento com uma moção de censura. Naquela noite — e no momento em que Costa disse esta frase — PCP e Bloco de Esquerda já tinham dito que apresentariam moções de rejeição ao programa de um governo da direita. O PS só estaria com eles se os dois partidos se dispusessem a encontrar uma alternativa que estava até adjetivada: “Credível e séria”.
“A perda da maioria pela coligação constitui um novo quadro político fruto da expressiva vontade de mudança que constitui, no PSD e CDS, o ónus de criarem condições de governabilidade no novo quadro parlamentar. A coligação tem de perceber que há um novo quadro. A coligação não pode julgar que pode governar como se nada tivesse acontecido.”
Neste dia, Costa não tinha nada para apresentar, apenas intenções. Sabia que Cavaco Silva dificilmente faria outra coisa do que nomear primeiro-ministro o líder do partido vencedor nessas eleições. Mas já tinha alguns dados, fruto de conversas informais com elementos dos partidos à esquerda do PS nos dias anteriores às eleições, que lhe permitiam fazer esta ameaça à direita. Esta frase tratava-se disso mesmo: uma ameaça a PSD e CDS. O quadro político mudou, há uma nova correlação de forças, o que estariam os dois partidos dispostos a fazer para acompanhar esse quadro?
“Manifestamente não me vou demitir. O partido fará serenamente a avaliação dos resultados eleitorais. Assumo por inteiro a minha responsabilidade por estes resultados. Há uma coisa que todos os socialistas sabem a meu respeito desde que me inscrevi na JS aos 14 anos: eu nunca sou, nem nunca serei um problema para o PS, nunca faltarei quando for preciso, nem nunca estarei quando estiver a mais”
Claro que este era o dado que faltava — mas ficou subentendido — na intervenção que Costa fez antes de chegar à parte das respostas à comunicação social. Acabou por dizê-lo de forma clara já nessa fase, provocando um forte aplauso na cave do Altis, onde dezenas de socialistas (da mais alta patente à mais baixa) não sabiam o que pensar. Tinham começado a noite cabisbaixos e terminavam a gritar “Cos-ta, Cos-ta”, o nome do derrotado da noite que não saía derrotado mas desafiador. E com as suas linhas vermelhas traçadas, parte delas valiam sobretudo para uma eventual negociação à direita: “Virar de página na política de austeridade e na estratégia de empobrecimento consagrando um novo modelo de desenvolvimento, uma nova estratégia de consolidação de contas públicas assente no crescimento e no emprego, no aumento do rendimento das famílias e na criação de condições de investimento pela empresas. Em segundo lugar, a defesa do estado social e dos serviços públicos, na segurança social, na educação e na saúde, para um combate sério à pobreza e às desigualdades”.
Linhas vermelhas para a direita, e balizas para as negociações que já sabia que ia iniciar à esquerda nos dias seguintes: “Respeito pelos compromissos europeus internacionais de Portugal e a defesa dos interesses de Portugal na União Europeia. Por uma política reforçada de coesão que permita o crescimento sustentável e o desenvolvimento do país”. Faltava apenas controlar o PS internamente — e Francisco Assis era um dos elementos a ter em conta numa eventual divisão interna –, mas aí também não dava o flanco: “O partido fará serenamente a avaliação dos resultados eleitorais”. Quem quisesse falar, falasse agora.
O caderno de encargos comunista
“Honrando os nossos compromissos, assumimos desde já a apresentação, no início dos trabalhos parlamentares, de um conjunto de iniciativas legislativas com vista à recuperação e devolução dos rendimentos e direitos roubados nos últimos anos:
- Valorização dos salários, designadamente o aumento do salário mínimo nacional para 600 euros em 2016, e do valor real das pensões de reforma;
- Combate à precariedade, designadamente com alterações à legislação laboral e a aprovação de um Plano Nacional de Combate à Precariedade e a valorização da contratação coletiva;
- Reposição dos salários, pensões, feriados e outros direitos cortados, designadamente os complementos de reforma;
- Reforço e diversificação do financiamento da Segurança Social e reposição dos apoios sociais, designadamente no abono de família, subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego;
- Pelo reforço do Serviço Nacional de Saúde e do acesso à saúde com a contratação de médicos, enfermeiros e outros profissionais, reposição do transporte de doentes não urgentes e abolição das taxas moderadoras;
- Uma política fiscal justa que tribute fortemente os grupos económicos e financeiros e alivie os impostos sobre os trabalhadores, os MPME’s e o povo;
- Revogação da recente alteração à Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez”.
Este é um dos pontos mais importantes da breve declaração de Jerónimo de Sousa. O líder comunista dava aqui provas de que estava preparado para o tabuleiro de jogo que estava a abrir-se na sequência daquelas eleições. Havia trabalho feito pelo PCP, que se tinha preparado para a eventualidade de poder ser chamado à responsabilidade na noite eleitoral. Aqui era exposto todo um caderno de encargos para quem quisesse entender-se com o PCP. Eram sobretudo condições que não hostilizavam os socialistas — se o PCP quisesse fazê-lo tinha muito por onde pegar, mas preferira jogar pelas convergências mais realistas. Havia ali matéria — como havia de provar-se nas negociações que se seguiriam — para uma mesa negocial.
O Bloco a adivinhar “dias e anos difíceis”
Foi o discurso mais breve da noite eleitoral, mas ainda serviu para Catarina Martins fazer o seu prognóstico (certeiro, para os dias que se seguiam):
“Sabemos que vão ser dias e anos difíceis vai-se falar muito de crise política, de jogos de influência e de arranjos, mas o Bloco de Esquerda não esquece o que é essencial: a crise social, uma criança em cada três que é pobre, um milhão de desempregados e mais de um milhão e pensionistas com menos de 10 euros por dia. Esses são os problemas que assustam Portugal”
Os dias seguintes foram exatamente como a líder do Bloco de Esquerda previu nestas palavras ditas naquele 4 de outubro de 2015: de “arranjos” e “jogos de influência”. Catarina Martins estava prestes a entrar para uma negociação, repetiu as condições do seu partido — com que tinha confrontado António Costa num dos debates televisivos durante a campanha eleitoral — e ainda acrescentou uma descrição da situação social, para afastar o fantasma que sabia que a direita não hesitaria em colar a qualquer entendimento de esquerda, ao referir que aqueles é que eram “os problemas que assustam Portugal”.
Catarina Martins foi a primeira a falar, mas já ouvira uma declaração vinda do PCP naquela noite, proferida por Francisco Lopes a partir do Centro Vitória (onde os comunistas estavam reunidos para acompanharem a noite eleitoral), e com grande significado: os comunistas não reconheciam a vitória da direita. “Perde a maioria absoluta e perde a possibilidade de formar governo, a menos que haja por parte do Presidente da República uma entorse dos resultados eleitorais”, disse o comunista. Os bloquistas quiseram ouvir melhor a intervenção de Francisco Lopes quando prepararam a declaração final dessa noite, onde avançariam pelo mesmo caminho, abrindo a porta ao derrube de um governo liderado por PSD e CDS. A “geringonça” estava a dias da montagem final, mas ainda estava longe de ter forma ou até nome, quanto mais uma alcunha consolidada.
Portugal à Frente avisa para a “vitória na secretaria”
“Nos últimos dias da campanha não foram poucas as vozes em setores da oposição a tentar desenhar uma estratégia de obstrução sistemática, parece-me que o país recusou essas vozes e essa obstrução. Engana-se quem julga que o radicalismo serve para liderar um Estado, um governo e um país”, afirmou naquela noite Portas.
As frases são claras. O líder do CDS estava atento às movimentações que via à esquerda nas declarações que acabara de ouvir de António Costa e também de Jerónimo de Sousa e de Catarina Martins, mas já trazia essa desconfiança da campanha eleitoral. No dia 26 de setembro, tinha lido as declarações de Costa ao Expresso, em plena campanha eleitoral, e tinha mantido o alerta elevado: “Costa chumba governo de direita minoritário”. Ali, na noite a partir da qual tudo se começaria a jogar, carregou nas palavras para se referir à esquerda e colá-la ao “radicalismo” e à “obstrução”. A argumentação de PSD e CDS era a mesma que usavam na estrada eleitoral: o esforço dos portugueses tinha sido demasiado grande, nos tempos da troika, para ser colocado em risco por uma solução de governação que diabolizavam ainda antes de terem a certeza que se poderia concretizar.
“Iremos promover a convocação dos órgãos nacionais para formalizar um acordo de governo que sempre esteve subjacente ao acordo de coligação. É um passo indispensável para que se possa comunicar ao Presidente da República que a força política mais votada está disponível para formar governo e contrair todas as responsabilidades inerentes”, afirmou Passos Coelho.
O líder do PSD deu aqui um dos argumentos que António Costa havia de usar semanas depois quando precisou de justificar o insucesso de um acordo do Bloco Central. Passos Coelho tinha saído das eleições com uma vitória, mas sem a necessária maioria absoluta — condição de estabilidade governativa — pelo que precisava de abrir as portas ao diálogo. Mas quando explicou o passo que daria no momento a seguir às eleições, falou na necessidade de formalizar o acordo de Governo. Deixou o PS para a segunda parte das suas prioridades, colocando-o como o parceiro lógico tendo em conta as afinidades ao nível do projeto europeu. Apontou para o que os unia, mas sobretudo para o que separava (e muito) o PS e a esquerda à sua esquerda.
Não lhe serviu de muito.