Quando lhes perguntaram, no início dos respetivos mandatos, se Vladimir Putin era um assassino, Donald Trump e Joe Biden deram respostas bastante diferentes. Enquanto o antigo Presidente norte-americano, em 2017, respondia, desvalorizando, que “há muitos assassinos por aí”, o atual inquilino da Casa Branca não hesitou em responder afirmativamente, em março, marcando um ponto de viragem que criou grande expectativa quanto à cimeira desta quarta-feira e quanto ao que pode ser o futuro das relações entre Estados Unidos e Rússia.
Desde as declarações de Biden à ABC, uma série de acontecimentos — como as condições da detenção do opositor russo Alexei Navalny, a escalada de tensão no Leste da Ucrânia, a imposição de sanções a Moscovo por parte de Washington ou o desvio do avião da Ryanair por ordem do Presidente bielorrusso Alexander Lukashenko — levaram a uma deterioração galopante das relações diplomáticas entre Estados Unidos e Rússia. Os dois chefes de Estado, de resto, foram unânimes no diagnóstico feito pelos analistas, que têm considerado que as relações entre o Kremlin e a Casa Branca atingiram o ponto mais baixo dos últimos anos.
É neste contexto de elevada tensão que Joe Biden e Vladimir Putin se encontram esta quarta-feira em Genebra, na Suíça, para a primeira cimeira entre ambos, uma iniciativa que partiu do Presidente norte-americano, que termina com este encontro uma viagem de oito dias à Europa, onde participou em cimeiras com G7, com a NATO e a União Europeia, ocasiões aproveitadas para reforçar o compromisso dos Estados Unidos com a parceria transatlântica. Putin, por seu lado, voa diretamente de Moscovo para a capital suíça, para um encontro de que, à partida, já sai vencedor, uma vez que consegue pôr a Rússia frente a frente com os Estados Unidos.
“Para a Rússia, esta cimeira serve para provar que é novamente uma grande potência, tal como foi durante o tempo da União Soviética”, afirma ao Observador Taras Kuzio, professor do departamento de Ciência Política da Universidade Nacional de Kiev-Mohya, na Ucrânia. “Para Putin, a cimeira já é uma vitória”, acrescenta o analista.
Conforme escreve o The Washington Post, Biden vai levar para a cimeira em Genebra uma lista de exigências para apresentar a Putin, que vão da Bielorrússia à Ucrânia, passando pela alegada interferência russa nas eleições americanas de 2016 e 2020, até aos ataques informáticos a órgãos do governo norte-americano e a a empresas atribuídos a hackers russos.
No entanto, o problema é que o Presidente russo poderá sempre ignorá-las, deixando os Estados Unidos numa situação de fragilidade. Mas, ao convidar Vladimir Putin para uma cimeira, em plena crise diplomática entre a Rússia e o Ocidente, Joe Biden sabia que estava a fazer uma jogada arriscada, mas também estava disposto a correr o risco para conseguir uma relação “estável e previsível” com o Kremlin, uma intenção que, publicamente, também foi partilhada pelo seu homólogo russo, embora persistam dúvidas sobre uma mudança efetiva no relacionamento entre os dois países.
“Não acredito que aconteça algo de concreto, porque os problemas vão continuar. Na mente de Putin e do seu grupo próximo, a Rússia está em guerra com o Ocidente, e essa mentalidade da liderança russa não vai mudar depois da cimeira”, reitera Taras Kuzio. “O encontro pode reduzir as tensões um pouco, mas não acredito que mude fundamentalmente a forma como a Rússia lida com o Ocidente ou a forma e como o Ocidente olha para a Rússia. Isso vai continuar igual”, conclui.
Baixar as expetativas: uma cimeira que não será “o início de uma nova era”
Tendo em conta os tópicos que separam Biden e Putin, assuntos para discussão na cimeira desta quarta-feira não faltarão. Contudo, precisamente devido às divergências profundas e aparentemente insanáveis, os analistas têm sublinhado que é necessário baixar as expetativas para este encontro, uma vez que é altamente improvável que o mesmo se traduza em avanços significativos nas relações diplomáticas entre os dois países, que atingiram o seu ponto mais baixo desde 2014, quando a Rússia invadiu a Crimeia.
“Duvido que esta cimeira marque o início de uma nova era. Devemos ser realistas e baixar as expetativas, porque será difícil ultrapassar grandes desentendimentos apenas com um encontro”, afirma ao Observador Ivan Timofeev, diretor de programas do think tank Russian International Affairs Council (RIAC). O analista russo antevê que assuntos como a detenção de Alexei Navalny ou as acusações de interferência da Rússia nas eleições norte-americanas, que têm levado às trocas de acusações mais agressivas entre os dois países, possam ser levantados, mas acredita que vão assumir um papel secundário no desfecho da cimeira.
“Os russos acusam os Estados Unidos de interferirem em questões internas, e os americanos acusam a Rússia de interferir nas suas questões internas. Por isso, não há nada para discutir: ambos os lados negam tais interferências, não há um ponto de partida para negociações”, explica Timofeev.
50 minutos de atraso e uma piscadela de olhos depois, como foi a cimeira de Trump e Putin?
As imagens de proximidade entre Presidentes, como as que aconteceram em Helsínquia, na Finlândia, em 2018, durante o encontro entre Vladimir Putin e Donald Trump, não deverão, por isso, repetir-se em Genebra. Além disso, no que tem sido interpretado como uma tentativa da Casa Branca não dar um microfone ao Presidente russo, não é esperada uma conferência de imprensa conjunta no final do encontro entre Biden e Putin, sendo expectável que cada chefe de Estado faça as declarações para a imprensa separadamente.
Para esta decisão poderá ter contribuído o que aconteceu em fevereiro, quando o chefe da Diplomacia europeia, Josep Borrell, foi a Moscovo e, ao lado de Serguei Lavrov, exigiu a libertação de Alexei Navalny, acabando por ficar a ouvir, em silêncio, as críticas do ministro dos Negócios Estrangeiros russo.
Biden promete dizer a Putin que não o deixará violar os direitos humanos
O caso de Navalny, de resto, tem sido um dos tópicos que gera uma resposta mais dura por parte do Kremlin, que acusa o Ocidente de querer interferir nas questões internas no país. No entanto, Biden prometeu levar o caso do opositor russo para a discussão com Putin, e na véspera da cimeira, depois de o Presidente russo ter detido que não se comprometia em garantir a sobrevivência de Navalny, Biden realçou que seria uma “tragédia” se a principal figura da oposição na Rússia morresse na prisão, algo que “iria prejudicar as relações” do Kremlin com o resto mundo.
Linhas vermelhas na Ucrânia e os possíveis pontos para aliviar a tensão
Se o caso Navalny — preso desde janeiro depois de ter sobrevivido a uma tentativa de envenenamento com novichok, num ataque que o Ocidente atribui ao Kremlin, que rejeita a acusação — e a forma como a Rússia tem reprimido qualquer dissidência política em ano de eleições legislativas tem sido um dos principais focos de tensão com o Kremlin, na memória está também fresca a mobilização de tropas russas para a fronteira com a Ucrânia, em abril, levando a que a hipótese de uma invasão russa parecesse iminente.
Entre ameaças e demonstrações de força, Putin sobe o tom e testa limites do Ocidente
Após semanas de elevada tensão, com ameaças de parte a parte numa altura em que se temeu que um erro de cálculo pudesse levar a uma guerra entre Rússia e Ucrânia, as tropas russas acabaram por desmobilizar, mas a guerra no Donbass, que opõe separatistas pró-russos às autoridades ucranianas, está longe de estar resolvida. Nesse sentido, é expetável que o assunto seja discutido na cimeira de Genebra, com Putin e Biden a aproveitarem o encontro para definirem as respetivas linhas vermelhas — para Moscovo, a entrada da Ucrânia na NATO; no Ocidente, uma ofensiva militar russa que desestabilize ainda mais a região.
Para o analista Taras Kuzio, especializado nas relações entre a Rússia e a Ucrânia, este pode, aliás, ser um dos tópicos em que Joe Biden pode obter vantagem relativamente a Vladimir Putin.
“Na Ucrânia já não há forças políticas pró-Rússia significativas. A Rússia já não tem influência dentro da Ucrânia, e isso deixa-a numa posição difícil, permitindo que o Ocidente possa impor linhas vermelhas”, sublinha o politólogo britânico, que não acredita que a Rússia esteja disposta a avançar com uma invasão da Ucrânia, tendo em conta os custos associados a uma ofensiva dessa dimensão. “Putin não pensaria em invadir a Ucrânia, porque para tal teria de usar pelo menos metade do exército russo. E, caso o fizesse, não poderia continuar a apresentar o caso como se tratasse de uma guerra civil”, remata.
Não obstante as divergências profundas em questões geopolíticas e nas relações bilaterais, Putin e Biden têm dado alguns sinais de que podem chegar a pontos de entendimento noutras questões, nomeadamente no controlo de armamento nuclear, existindo a expetativa de um acordo mais abrangente quanto ao acordo NEW START prolongado em janeiro por mais cinco anos, mas que ambos os líderes poderão estar interessados em chegar a um compromisso mais ambicioso no tempo.
Putin admitiu querer melhorar as relações com os Estados Unidos
Outro dos resultados concretos que poderão sair da cimeira é o anúncio de uma troca de prisioneiros entre os dois países. Os nomes falados são os dos traficantes de armas e de droga Viktor Bout e Konstantin Iarochenko, cidadãos russos detidos nos Estados Unidos, que seriam libertados como moeda de troca pela libertação dos norte-americanos Paul Whelan e Trevor Reed — condenados, respetivamente, por espionagem e agressão a um polícia russo.
Devido às divergências na maioria dos outros assuntos em discussão, tanto a troca de prisioneiros como um acordo mais abrangente no controlo de armamento podem ser encarados como um primeiro passo para diminuir a tensão entre Rússia e Estados Unidos, embora nem Putin nem Biden acreditem que, nesta fase, devido às divergências profundas, seja possível um começo do zero nas relações diplomáticas entre os dois países.
“Biden e Putin querem demonstrar que não vão pôr em causa os interesses nacionais e que vão para as negociações a partir de uma posição de força. As negociações são importantes para ambos, mas tal não significa que sacrifiquem o interesse nacional para conseguirem boas relações ou um aperto de mãos”, sublinha o diretor de programas do RIAC, Ivan Timofeev. “Ambos vão tentar vender a cimeira para o seu público como uma vitória”, antevê.