Índice
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Pergunta a pergunta, conheça o contexto dos temas que foram escolhidos para o Votómetro Brasil 2002 do Observador. Estes são alguns dos temas decisivos na campanha para Presidente que opõe Jair Bolsonaro, Lula da Silva, Ciro Gomes e Simone Tebet.
O combate à Covid-19 justifica a necessidade de confinamentos (lockdowns) e as consequências negativas para a economia
Ao contrário do que aconteceu em Portugal, onde António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa unificaram o discurso, os políticos brasileiros divergiram no combate à Covid-19. O presidente Jair Bolsonaro posicionou-se contra os confinamentos e contra a vacinação obrigatória, enquanto a maior parte dos governadores seguiu os comités científicos dos seus estados – pró-confinamentos e pró-vacinação. Na campanha, Bolsonaro vem defendendo as suas escolhas, enquanto a oposição o responsabiliza pelas quase 700 mil mortes por Covid-19 no Brasil.
As mulheres devem ter o direito de decidir sobre a interrupção da gravidez e o sistema público de saúde precisa de estar preparado para atendê-las
Candidatos a cargos de eleição direta sempre evitaram o tema da interrupção da gravidez, que é extremamente polémico num país religioso como o Brasil. Na campanha eleitoral deste ano, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva quebrou o tabu e se pronunciou favoravelmente à interrupção da gravidez. “Deveria ser transformada numa questão de saúde pública e todo mundo ter direito”, disse ele num evento em São Paulo. O vídeo foi usado pela campanha do presidente Jair Bolsonaro no seu trabalho de reconquista do eleitorado evangélico.
O porte de armas é uma questão de liberdade individual. Num país violento como o Brasil, os cidadãos devem ter o direito ao uso e porte de arma para se defenderem dos criminosos
A marca do Presidente Jair Bolsonaro é trazer de volta ao debate público temas que já estavam “pacificados” no Brasil, em consensos que se estendiam da direita à esquerda. Em 2005, os brasileiros aprovaram, em referendo, o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, que proibia, com algumas exceções, o comércio de armas de fogo e munição. A taxa de homicídios no Brasil, embora esteja em queda, ainda está entre as mais altas do mundo – acima de 20 por 100 mil habitantes a cada ano, enquanto em países como Portugal e Alemanha o índice não chega a 1. Uma lei mais liberal em relação às armas é a bandeira central do bolsonarismo neste tema.
Na Amazónia, é preciso punir exemplarmente o desmatamento e os crimes relacionados, como mineração ilegal e apropriação ilegal de terras, mesmo que isso afecte a economia da região
Eis outro consenso que vai da direita à esquerda e é desafiado pelo Presidente Jair Bolsonaro. Desde o governo Fernando Collor, o Brasil vem construindo um aparato legal e estruturas fiscalizadoras para inibir o desmatamento – que, após atingir picos nos governos Lula e Fernando Henrique Cardoso, caiu e mudou de ordem de grandeza. Bolsonaro tirou poder das estruturas fiscalizadoras e delegou ao exército a proteção de áreas como a Amazónia, além de incentivar atividades comerciais na região. Embora não tenha chegado aos picos anteriores, o desmatamento cresceu mais de 70% nos seu período de governo, expondo o Brasil a críticas internacionais.
A criação e garantia de reservas indígenas deve ser uma prioridade do governo
A demarcação de terras indígenas foi iniciada no governo Fernando Collor e, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, passou a fazer parte do pacote de medidas para conter o desmatamento. Para além dos direitos dos povos originários, estudos académicos mostram que a demarcação de terras indígenas contribui para a preservação. O presidente Jair Bolsonaro desafia esse consenso, sendo programaticamente contra a demarcação de novas terras, e a favor de leis que facilitem a concessão de escrituras aos que ocuparam terras ilegalmente no passado.
A maioridade penal deve ser reduzida de 18 para 16 anos, pois grande parte dos crimes relacionados com tráfico de drogas é cometida por menores de idade
O debate sobre a redução da maioridade penal existe no Brasil desde 1993, cinco anos após a promulgação da Constituição de 1998, quando se criou a primeira proposta de Emenda Constituicional tratando do tema. Tal emenda tramita até hoje no parlamento. O debate na sociedade é acalorado. Os que são favoráveis à redução lembram que em vários países a maioridade penal se dá a partir dos 14 ou 16 anos. Os que são contra argumentam, entre outras coisas, que o sistema penal brasileiro está em colapso e não favorece a ressocialização.
No âmbito internacional, o Brasil deve abandonar o alinhamento automático com os Estados Unidos e o bloco Ocidental para investir na diplomacia Sul-Sul, aproximando-se dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China), fortalecendo o Mercosul e estreitando laços com países africanos
Desde a Segunda Guerra Mundial, quando lutou ao lado das tropas aliadas, o Brasil é um aliado preferencial dos Estados Unidos na América do Sul. O país, no entanto, sempre adotou posições independentes. Tal independência se acentuou com a “diplomacia sul-sul”, nome cunhado no governo de Luiz Inácio Lula da Silva e que fazia referência ao fortalecimento da atuação do país em blocos regionais, além de se posicionar como mediador de conflitos internacionais.
As universidades públicas devem cobrar algum tipo de mensalidade, na medida em que grande parte dos alunos do ensino superior provém das camadas mais ricas do Brasil
Trata-se de outro debate antigo na sociedade brasileira. O modelo educacional do Brasil é semelhante ao da Índia logo depois da independência – criar universidades públicas de ponta para formar elites capazes de conduzir os destinos do país. Tal mentalidade vem mudando no sentido de aumentar os gastos com ensino básico – que contribui para a melhoria da distribuição de renda – e diminuir com o ensino superior. O sistema de quotas tornou esse debate mais complicado, pois permitiu que estudantes com menor renda tivessem igualmente acesso à universidade pública.
É importante ampliar o apoio estatal aos artistas, principalmente em áreas em que o mercado não gera recursos para a cultura, como artes plásticas, música clássica e manifestações populares regionais
Desde o governo Fernando Collor o Brasil tem mecanismos de incentivo à cultura — no âmbito federal, a chamada “Lei Rouanet”. Tais mecanismos têm dois objetivos: incentivar manifestações culturais populares e estabelecer e estabilizar um mercado cultural que possa funcionar sem precisar de incentivo. Ao longo de diversos governos, tais leis vêm sendo aperfeiçoadas nesse sentido. O presidente Jair Bolsonaro modificou várias regras com o intuito, segundo ele, de democratizar a lei – mas vários criadores o acusam de perseguir artistas que lhe fazem oposição.
Os rendimentos de capital (ex: dividendos bolsistas), heranças e grandes fortunas devem pagar mais impostos, para subsidiar programas sociais
Na estrutura de impostos do Brasil, as empresas pagam impostos altos, mas os seus donos pagam muito pouco. O objetivo disso seria que os recursos fossem canalizados para os setores mais produtivos da economia – a empresa pode ir à falência, mas o dono fica com dinheiro para investir novamente noutra empresa. O imposto sobre heranças também é baixo. Já há algum tempo há um debate sobre mudar essa estrutura, considerada regressiva. Tal reforma é apoiada por vários setores, da direita à esquerda. O debate envolve estudos sobre até que ponto tal taxação traria recursos substanciais no sentido de subsidiar programas sociais.
Temas como a sexualidade e a diversidade sexual não devem constar dos currículos escolares. A abordagem destas questões deve ser de responsabilidade exclusiva das famílias
O termo “ideologia de género” surgiu em 1998 na Conferência Episcopal do Peru, no âmbito da Igreja Católica. Combater tal ideologia se tornou bandeira de católicos e evangélicos na América Latina. Uma peculiaridade brasileira é o fato de que os grupos religiosos se organizaram politicamente, e hoje ocupam espaço relevante nas casas legislativas. A ideia de que a educação sexual dos filhos deve ser responsabilidade das famílias e não das escolas não é uma bandeira original do bolsonarismo, mas foi adotada recentemente por Jair Bolsonaro e foi um dos motes de suas campanhas eleitorais em 2018, retornando agora em 2022.
O próximo governo deve acabar com as emendas de relator, o chamado “orçamento secreto”
A democracia brasileira é considerada “hiper-representativa”, pelo número elevado de partidos. Nesse ambiente, o Presidente precisa contar com “moedas de troca” – de preferência, éticas e transparentes – para formar maiorias. Como o Presidente tem poder discricionário sobre várias áreas do orçamento, tornou-se comum que parte dessas verbas – e cargos – fossem distribuídas pelos partidos apoiadores do governo. Jair Bolsonaro abriu mão de parte desse poder ao instituir o “orçamento secreto”, no qual os parlamentares da base de apoio dispõem livremente de uma fração dessas verbas. Em troca, dão-lhe apoio irrestrito. Embora o destino das verbas possa ser rastreado a posteriori, tal mecanismo vem sendo criticado pela falta de transparência.
A maior parte do dinheiro dos impostos deve ser utilizada para impulsionar os sectores estratégicos da economia, com o objetivo de gerar crescimento
Trata-se do grande debate económico do Brasil desde a famosa contenda entre Eugênio Gudin e Roberto Simonsen no âmbito do governo Getúlio Vargas. Gudin defendia, em linhas gerais, a ideia “liberal” – crescimento a partir de investimento privado, com o governo a tratar apenas do enquadramento legal. Simonsen defendia que o governo deveria investir em determinados setores que pudessem gerar emprego e crescimento – e aí surgiu o “desenvolvimentismo” brasileiro. A ideia desenvolvimentista, expressa acima, vem sendo hegemónica em vários períodos do Brasil desde então — da ditadura militar à política de “campeões nacionais” do governo Dilma Rousseff.
A maior parte do dinheiro dos impostos deve ser investida em saúde, educação e segurança pública, para consolidar o Estado social consoante a Constituição de 1988
A Constituição de 1988 inaugura o que seria uma era “social-democrata”. Em vez de dar prioridade ao investimento em setores específicos, o dinheiro deveria ser canalizado para a área social – educação, saúde, segurança pública e combate à pobreza. Essa “conversão” se inicia no governo Fernando Henrique Cardoso, que privatiza empresas e aperfeiçoa várias políticas sociais previstas na Constituição, como a expansão da educação básica e do Sistema Único de Saúde. Continua no primeiro governo Lula – mas sem privatizações. No segundo governo Lula e no governo Dilma Rousseff, a ideia desenvolvimentista retorna aos poucos, comprometendo os recursos que deveriam ir para a área social.
O Brasil tem uma carga fiscal altíssima. O governo deve cortar impostos, mesmo que isso tenha um impacto nos programas sociais e nos subsídios a setores da economia
Trata-se da ideia liberal defendida por Eugênio Gudin nos anos 1950. Tal ideia raramente é hegemónica num país de mentalidade prioritariamente desenvolvimentista, mas sempre encontra adeptos em governos, universidades e think tanks. Antes de ir para o governo, o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, costumava se definir como um militante do “liberalismo” contra a “social-democracia”. Num país desigual como o Brasil, mesmo os liberais defendem a necessidade de que o governo se comprometa com programas sociais.
O Exército deve estar subordinado ao poder político. Nunca poderá envolver-se na luta político-partidária
Eis outro tema que estava “pacificado” da direita à esquerda e voltou ao debate com o Presidente Jair Bolsonaro. A Constituição de 1988 estabeleceu claramente o papel dos militares fora da política, subordinado aos poderes constituídos. O Presidente Fernando Henrique Cardoso foi o primeiro a nomear um civil para o Ministério da Defesa, tradição que continuou nos governos Lula e Dilma Rousseff e foi quebrada por Michel Temer. O Presidente Jair Bolsonaro, por seu turno, trouxe vários militares aos primeiros escalões do governo, e em mais de uma ocasião invocou uma interpretação da Constituição repudiada pela maioria dos juristas: a que supostamente estabelece o Exército como “poder moderador”.
O governo deve ser rigoroso com a responsabilidade fiscal, criando mecanismos restritos do tipo teto de gastos
A Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso, é uma conquista num país em que a inflação deixou marcas profundas. A ex-Presidente Dilma Rousseff sofreu um impeachment por transigir com a responsabilidade fiscal – e, depois do seu governo, foi criado um mecanismo extra para controlar as despesas públicas, o “teto de gastos”. Quase todos os candidatos defendem a responsabilidade fiscal e a respectiva lei. Há, no entanto, divergências sobre o “teto de gastos” – o mecanismo é criticado pela oposição e, na prática, foi dinamitado pelo próprio governo para aumentar os gastos em ano eleitoral.
A independência do Banco Central deve continuar, e o seu papel deve ser essencialmente de controle da inflação, sem preocupações com o desemprego
São dois debates diferentes e muito presentes no Brasil. O primeiro é sobre a independência do Banco Central. Ela passou a existir informalmente no governo Lula, que se comprometeu a não interferir no trabalho do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles – e respeitou o compromisso. O governo Jair Bolsonaro formalizou a independência, antiga reivindicação do ministro Paulo Guedes. Há quem discorde de tal medida, no entanto, e há quem acredite que o Banco Central não deve ser apenas o guardião da moeda – função definida pela Constituição brasileira – mas tenha também outras metas, como ocorre nos Estados Unidos.
A empresa pública de exploração de petróleo Petrobras deve ajudar a manter os preços dos combustíveis sob controle, mesmo que isso gere prejuízo aos seus acionistas
Historicamente, a Petrobras, empresa de economia mista, age no Brasil quase como uma instituição de Estado, ajudando a amortecer as flutuações do preço do petróleo. No governo Michel Temer definiu-se que ela acompanharia a flutuação internacional de preços, o que maximizaria o lucro dos acionistas – entre eles o próprio governo brasileiro, que teria assim dinheiro para investir em programas sociais. Essa política de preços é defendida nos meios liberais, e está sob ataque à esquerda e à direita. Um dos seus maiores críticos é o próprio Presidente Jair Bolsonaro.
João Gabriel de Lima é um dos coordenadores do Votómetro Brasil 2022 do Observdor. Jornalista e escritor, nasceu em São Paulo, morou no Rio de Janeiro, vive em Lisboa. É colunista do jornal Estado de São Paulo (um dos maiores do Brasil), colaborador da respeitada revista Piauí e do site ambientalista Um Só Planeta. Foi editor de Cultura na revista Veja e diretor das revistas Época (grandes reportagens) e Bravo! (temas culturais). Atualmente, realiza o doutoramento em Ciência Política na Universidade de Lisboa.