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Trinta e nove feridos, um deles grave, 50 casas ardidas, quase 27 mil mil hectares consumidos pelas chamas em sete dias de fogo. Monchique ardeu, mas o Governo insiste que não houve falhas e destaca a maior vitória neste grande incêndio: não houve vítimas mortais. O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, enalteceu na noite de quinta-feira, dia 9, que o “incêndio está estabilizado sem perda de qualquer vida humana”. Também o primeiro-ministro, disse na quarta-feira que Monchique foi a “exceção que confirmou a regra do sucesso”. Isto embora António Costa tenha depois dito que as suas declarações — que repetiu duas vezes e num contexto que justificava os títulos feitos — foram “deturpadas e descontextualizadas”.

O Observador ouviu especialistas em incêndios, constitucionalistas, operacionais no terreno, membros da Autoridade Nacional da Proteção Civil e diversas outras entidades para responder às grandes dúvidas que saem deste incêndio: como começou? Que falhas existiram? Por que razão ardeu de forma descontrolada durante sete dias?

Porque ardeu Monchique durante sete dias?

A complexidade e a intensidade do fogo de Monchique não surpreende nenhum especialista contactado pelo Observador. Depois dos fogos trágicos do ano passado que provocaram 116 mortes, e na sequência dos trabalhos da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) de preparação para os eventuais fogos deste ano, a serra de Monchique aparecia sempre no topo dos pontos sensíveis para 2018. Porquê? Porque tem uma elevada acumulação de combustível, porque já não ardia a sério desde 2003 e porque o tempo estimado de retorno do fogo é de 12 a 15 anos. Ora, de 2003 para 2018 vão 15 anos, logo, a combustão da biomassa estava precisamente no seu valor mais elevado.

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Depois, porque o trabalho de gestão e limpeza do material combustível não é feito devidamente, por a grande maioria do território naquela região ser propriedade privada. “O pequeno proprietário só gasta dinheiro para a sua gestão diária, não pensa na gestão do combustível”, afirma Francisco Oliveira Miguel, antigo coordenador da Proteção Civil. Isto, aliado às condições meteorológicas, torna a serra de Monchique um cenário perfeito para um incêndio.

O que fez o fogo propagar-se tão rápido e de forma tão descontrolada é o que causa mais perplexidade, mas nem aí há uma resposta única. Ao Observador, Paulo Fernandes, professor do Departamento de Florestas da Universidade de Trás-os-Montes (UTAD), nota que o momento-chave que fez o cenário mudar de figura aconteceu ao fim de dois dias (começou na passada sexta-feira) quando o fogo mudou de área — passou de uma vegetação mais densa para um matagal alto e mais disperso. “O fogo começou numa área relativamente limitada e esteve dois dias a ser gerido sem se propagar muito. Questiono-me como é que foi possível terem deixado o fogo sair de lá”, afirma, explicando que inicialmente o fogo ardia a uma altura “abaixo das copas das árvores”, onde a velocidade do vento é menor, e quando “entrou pelo matagal alto desenvolveu-se muito mais rapidamente”.

Tem tudo a ver com o vento. “Quando o fogo transita para os matos, onde a velocidade do vento é duas vezes maior, isto faz com que a velocidade de propagação do incêndio triplique”, afirma o especialista da UTAD. Foi o que aconteceu: o incêndio passou de uma zona pura de eucalipto para uma paisagem mais selvagem com mistura de mato e árvores dispersas: tudo vegetação que cresceu depois do grande incêndios de 2003 e que, como tal, está no seu auge de combustão.

Provavelmente não há uma resposta certa para a pergunta “porque é que deixaram o fogo sair daquela zona inicial”. Mas o antigo coordenador da Proteção Civil Francisco Oliveira Miguel arrisca uma explicação pragmática: uma questão de prioridades. É que a Proteção Civil “dá uma atenção muito maior à proteção da vida humana, primeiro, depois à proteção das infraestruturas e só depois ao ambiente”.

“Essa hierarquia de prioridades foi desviando a estratégia de combate para as urgências em vez de se concentrar numa lógica mais sustentada no tempo”, diz. “O que aconteceu em Monchique foi que só quando a estabilização das povoações ficou mais controlada é que se começou a pensar de outra forma e a analisar o terreno”.

Os meios enviados para o local são suficientes?

Os meios foram para o local rapidamente e em força, como mostram os dados da própria Proteção Civil (cedidos ao Observador pelos gestores do site Fogos.pt). Pouco depois do fogo ser detetado, às 12h46 de dia 4 de agosto, já estavam no local 34 operacionais, sete veículos e dois meios aéreos. Uma hora depois, já eram 205 os efetivos no local, 58 meios terrestres e 9 meios aéreos. Nesse primeiro dia, às 19h27, já eram 414 os efetivos no terreno, 129 os meios terrestres e 10 os meios aéreos. O dia fechou ainda com mais operacionais (eram já 611 os efetivos) e meios terrestres (177), enquanto os meios aéreos não podiam voar. A partir de sábado houve sempre entre 700 a 1000 operacionais. Também houve vários meios aéreos. Perante estes dados, os especialistas acreditam que não foi por falta de mobilização de meios que o fogo não foi extinto mais cedo.

Segundo Francisco Oliveira Miguel, não é uma questão de insuficiência de meios mas sim de “ausência de meios especializados”. Já era isso, de resto, que apontava o relatório da Comissão Técnica Independente a propósito dos fogos de Pedrógão e da zona centro: “Faltam-nos bombeiros florestais”. E qual é o perfil e o objetivo do bombeiro florestal? “É aquele indivíduo que, com ferramentas manuais ou máquinas pesadas, vai para o meio do monte fazer o trabalho de antecipação e de separação da área ardida com a vegetação por arder”, explica, sublinhando que têm de ser profissionais especializados, e que esse trabalho não pode ser feito apenas por sapadores florestais. Segundo este antigo coordenador da Proteção Civil já há equipas das forças especiais de bombeiros em Portugal que frequentam cursos de análise de incêndios, mas é ainda assim uma formação insuficiente.

Era possível evitar ou travar o fogo mais cedo?

Em teoria sim, na prática não. Segundo os especialistas consultados pelo Observador, existem formas de focar as atenções no combate ao incêndio florestal para evitar que este se propague floresta fora; mas as condições do país, tanto no ordenamento do território como na estrutura de combate ao fogo, tornam difícil a aplicação dessas soluções.

O antigo coordenador da proteção civil Francisco Oliveira Miguel, que esteve no terreno em Monchique a dar apoio, explica ao Observador que as operações de combate a incêndios em Portugal estão geralmente consumidas pelas prioridades de proteção da vida humana e de infraestruturas, deixando a defesa do ambiente — ou seja, da floresta — para segundo plano. No caso concreto de Monchique, explica, só houve espaço para pensar na terceira dimensão “a partir da noite de terça feira, quando a operação acalmou”, já que até aí o foco foi em evitar que o fogo chegasse perto das populações.

Para além disso, a capacidade das equipas no terreno nesta matéria é limitada. “Esta terceira prioridade exige conhecimento profundo do território, exige análise técnica do território e exige operacionais no terreno que saibam orientar. Isto falta em Portugal”, explica Oliveira Miguel, sublinhando que a formação desta capacidade técnica demora tempo.

Isso mesmo reforça Paulo Fernandes: “É impossível mudar de um ano para o outro um sistema que sempre funcionou assim.” O nosso sistema de proteção civil, da forma como está montado atualmente, é reativo, porque se concentra em salvar as pessoas e não em prevenir o incêndio. “É uma bola de neve. Quanto maior o incêndio se torna, mais aldeias precisam de evacuação”, reforça Paulo Fernandes.

A formarem-se as tais equipas técnicas que combateriam o incêndio dentro da floresta, estas poderiam ser compostas por sapadores. No terreno, estas equipas podem seguir algumas estratégias concretas para evitar reacendimentos, como explica Paulo Fernandes. “A única forma de evitar é gerir [o terreno] na forma de mosaico ou criar faixas para quebrar a continuidade do fogo”, explica ao Observador. Estas estratégias, diz, não foram seguidas, devido às dificuldades colocadas pelo ordenamento do território. “As únicas zonas onde isto é feito são no Norte do país, em territórios baldios do Instituto de Conservação da Natureza e da Floresta, onde não há propriedade privada”, resume. “No Sul, como é propriedade privada, não se faz.”

Num sistema de combate perfeitamente planeado e oleado, dizem os especialistas, deveria existir de imediato no terreno uma destas equipas a trabalhar só na dimensão de proteção da floresta, para evitar que o fogo se propague e para prevenir os reacendimentos. Mas, mesmo constituindo essas equipas, tal não chega. “A estrutura de comando tem de ter capacidade de as absorver”, alerta o antigo coordenador da Proteção Civil.

Para Francisco Oliveira Miguel, no momento atual “não há margem” no comando de decisão para olhar para a área de combate ao fogo na floresta, com a atenção a ser consumida pelas restantes dimensões. Significa isso que o comando de operações deve então ser dividido por várias pessoas? Para este especialista, essa também não é a solução. “O que se pode fazer é treinar as nossas organizações, sobretudo a ANPC, para encontrar um formato, ativar uma série de células de antecipação, etc.” As propostas muitas vezes já são feitas a nível informal, explica, mas falta “capacidade de as validar e executar” por quem está acima.

Que falhas existiram no combate ao incêndio?

Ao longo dos últimos dias têm sido várias as falhas apontadas à coordenação do incêndio, que ficou nos primeiros cinco dias a cargo do Comandante Distrital de Faro, Vítor Vaz Pinto. O presidente da Associação Nacional de Bombeiros Profissionais, Fernando Curto, denunciava na terça-feira que a estratégia não estava a dar resultados, criticando uma “má coordenação de homens e meios” e falando numa “desorganização total em que ninguém se entende”.

Na quarta-feira, foi a vez do presidente da Associação Portuguesa de Bombeiros Voluntários, Rui Silva. Queixou-se que “tem sido unânime a opinião das populações que não encontram os bombeiros quando precisam”. E acrescentou, responsabilizando o comando distrital: “Muitos voluntários que estão lá sentem que podiam fazer muito mais.”

O Observador falou com especialistas e operacionais que combateram o fogo no terreno que têm apontado algumas falhas e caminhos alternativos:

Não-ativação do plano de emergência. No dia 2 de agosto o presidente do Comissão Distrital de Proteção Civil, Jorge Botelho, afirmou, citado pelo jornal Região Sul, que não havia necessidade de ativar um plano de emergência distrital. Para operacionais que passaram por Monchique, isto foi um erro, já que iria começar uma onda de calor e Monchique estava mais do que identificada como zona de risco. Com este plano ativado haveria logo mais meios para vigilância e para o ataque inicial ao incêndio.

Primeira ignição desvalorizada. Logo na quinta-feira houve um incêndio em Portela das Eiras, que foi extinto ao fim de 6/7 horas. A ignição desse incêndio foi a 12 quilómetros da ignição do grande incêndio que lavra há sete dias. No entender de um especialista ouvido pelo Observador e que esteve no terreno, as equipas que foram enviadas para o primeiro incêndio deviam ter continuado naquele local, mantendo vigilantes e meios de combate por perto nas horas e dias seguintes. Isso, acreditam, teria permitido uma resposta mais imediata à primeira ignição e, eventualmente, extinguir o fogo mais rapidamente.

Máquinas de rasto sem estratégia. O Parlamento aprovou por unanimidade um projeto de resolução que recomendava ao Governo a elaboração de um plano de utilização das máquinas de rasto no combate aos incêndios florestais. A proposta é de abril, mas o plano não foi criado antes do início da época de incêndios. Em Monchique, alguns operacionais queixam-se que as máquinas de rasto só começaram a operar no sábado, quando deveriam ter começado logo durante o dia na sexta-feira (o incêndio começou pelas 14h00). Há também relatos, recolhidos pelo Observador, que a maior parte das máquinas de rasto têm estado paradas. A comandante operacional nacional adjunta, Patrícia Gaspar, destacou esta quinta-feira a importância das máquinas de rasto. Um especialista ouvido pelo Observador acredita que se as máquinas de rasto tivessem sido utilizadas na frente que seguia para a vila Monchique, o fogo poderia não ter galgado a Estrada Nacional 266, o que permitiria uma melhor defesa da povoação. Ao invés disso, as máquinas terão sido utilizados na frente de Portimão para travar a progressão em direção ao autódromo internacional do Algarve.

Bombeiros sem gastar um único litro. Houve algumas corporações de bombeiros que se queixaram de passar várias horas, ou até dias, em Monchique sem que fossem mobilizados. Isso levou, até, o presidente dos bombeiros voluntários a mostrar desagrado com esse facto.

Residentes tratados como turistas. Quando começou a evacuação das casas, as autoridades começaram a dividir os estrangeiros por autocarros: ingleses num autocarro, holandeses noutro e alemães noutro e irlandeses noutro (eram estas as principais nacionalidades). Mas não perguntaram quem era turista e quem era residente. Mais tarde, nos centros de acolhimento, havia imigrantes que queriam voltar às suas casas e as autoridades insistiam que não podiam voltar aos hotéis ou turismo rural, não percebendo que se tratavam de residentes em Portugal.

Porque o comando nacional não assumiu a coordenação mais cedo?

A coordenação passa para o comando nacional a partir do momento que é ativado o nível cinco do Sistema de Gestão de Operações (SGO), que foi revisto em abril deste ano. De acordo com o SGO, esse nível deve ser ativado assim que se ultrapassem os 648 efetivos no terreno. Ora, de acordo com a informação que foi colocada no próprio site da Proteção Civil — cujas sucessivas alterações foram sendo registadas pelo site Fogos.pt, que cedeu essa informação ao Observador — esse número foi ultrapassado às 02h06 de sábado, dia 4 de agosto. Ainda assim, só no dia 7 de agosto, esta terça-feira, quando já estavam mais de 1200 efetivos no local, é que o comando distrital passou para o nível nacional.

A segunda comandante operacional nacional da Proteção Civil, Patrícia Gaspar, veio esta quinta-feira — depois de uma notícia do Público sobre o assunto — justificar o facto da mudança ter demorado três dias com o facto de o SGO ser “flexível” e não para seguir à risca. A Proteção Civil fez ainda um esclarecimento a explicar que “a mudança do comando se processou de acordo com os princípios enunciados no SGO e em função da apreciação da evolução da operação que foi feita a cada momento”. Fica, assim, a saber-se que só ao quinto dia, a 7 de agosto, é que o comando nacional considerou que a gestão da situação era suficientemente complexa para subir a operação para nível cinco e assumir o controlo da operação.

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Ao Observador, Francisco Oliveira Miguel defende que não é por a lei balizar que a partir dos 648 operacionais o comando deve passar para o comando nacional que essa transição deve ser feita imediatamente. “Era muito delicado mudar o comando naquela altura”, defende, sublinhando que essa mudança demora horas e implica a suspensão de todo o processo de tomada de decisões. “A passagem do comando demora no mínimo duas a três horas e se implicar escalões intermédios demora ainda mais”, nota, acrescentando que exige “calma e serenidade”. “Essas condições de relativa acalmia só aconteceram na terça-feira”.

Quantas casas arderam?

Ainda não é possível saber o número concreto de casas ardidas. Esta quinta-feira, a comandante das operações de socorro Patrícia Gaspar confirmou aos jornalistas que as autoridades ainda não sabem quantas casas de primeira habitação arderam. “Não conseguimos dizer”, admitiu, sublinhando que os esforços têm estado concentrados na proteção de pessoas. “Esse trabalho [de contagem] está a ser feito em conjunto com as autarquias”, garantiu.

Os autarcas no local, contudo, já avançam com algumas estimativas. O presidente da Câmara de Monchique, Rui André, explicou esta quinta-feira que o número de casas destruídas no seu concelho, total ou parcialmente, pode estar perto das 50. “Penso que de primeira habitação, totalmente destruídas, serão menos de metade desse número”, acrescentou Rui André, sublinhando que existem também “anexos ou casas de apoio” afetados. Uma equipa multidisciplinar está atualmente no local a tentar avaliar a dimensão dos danos. A autarca de Silves, Rosa Palma, disse não ter conhecimento de casas afetadas no seu conselho.

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As pessoas podem ser retiradas de suas casas à força pela GNR?

De acordo com a lei, sim. Mas tal não significa que nessa retirada a força não seja usada de forma “proporcional”. Centenas de pessoas têm sido retiradas das suas casas nos concelhos de Monchique, Silves e Portimão, tendo algumas delas regressado entretanto — o que dificulta a contagem exata de deslocados. Certo é que só no passado domingo 110 pessoas foram retiradas de vários lugares no concelho de Monchique e até no de Odemira.

Desde então, o pavilhão multiusos de Portimão já recebeu entre 160 a 170 pessoas, de acordo com informações da presidente da Câmara de Portimão, Isilda Gomes. Também a autarca de Silves, Rosa Palma, explica que nesta noite de quarta-feira dez localidades do seu concelho foram evacuadas, tendo os habitantes pernoitado numa escola e regressado entretanto às suas casas.

São vários os relatos, contudo, de moradores que se recusam a largar as suas habitações, como o Observador presenciou.

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“Não quero que esta seja a sua última casa”, disse um agente da Guarda Nacional Republicana (GNR) a uma mulher na aldeia de Enxerim, a fim de a convencer a abandonar o local.

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Os agentes têm usado de todos os meios ao seu dispor para retirar as pessoas das aldeias que o comando pretende evacuar, mas há quem resista — tendo havido mesmo relatos de moradores levados “em algemas”, de acordo com o vereador da Monchique José Chaparro, ou de uma intervenção mais musculada pelas forças de intervenção em alguns locais.

A GNR tem apelado às populações para que obedeçam às ordens das autoridades no local, sublinhando “a necessidade de cumprir com as indicações e orientações das autoridades, principalmente nos procedimentos a adoptar em caso de evacuação”. Mas, em caso de recusa, podem as autoridades forçar os cidadãos a abandonarem as suas casas?

Para o especialista em Direito Constitucional Paulo Otero, a resposta é um redondo ‘sim’, apesar de sublinhar a “dificuldade para todos” da situação. “A Constituição é muito clara quanto a isso. A defesa da inviolabilidade da vida humana é clara”, diz ao Observador. Isso significa que o Estado, através das suas autoridades, tem plenos poderes para retirar pessoas de um local se as vidas humanas estiverem em risco, já que “a salvaguarda da vida humana se impõe à salvaguarda dos bens de natureza material” — neste caso, as casas.

Além disso, explica, há ainda que ter em conta “o interesse público”. “A intervenção da GNR pode servir para evitar a dispersão de meios dos bombeiros, por exemplo”, afirma o constitucionalista. “As pessoas não podem estar à espera que os bombeiros as venham salvar porque eles podem estar mobilizados para outras zonas de interesse como o centro da vila, por exemplo.”

Opinião semelhante tem o advogado Ricardo Serrano Vieira, ouvido pela Renascença: “A atuação policial está legitimada no Código Penal. Queremos salvaguardar a vida e a ordem está legitimada quando há o perigo concreto que pode lesar o bem jurídico que é a vida. Os agentes da autoridade têm de agir em conformidade”, afirmou, destacando que os próprios militares podem ser responsabilizados se não conseguirem retirar as pessoas como lhes foi ordenado.

Tal não significa, contudo, que não tenham de ser respeitados outros princípios, explica Paulo Otero. “A atuação tem de ser adequada, necessária e razoável”, diz ao Observador. “Eles devem usar todos os meios de acordo com a proporcionalidade. [Os agentes] não podem desatar aos tiros ou usar o cassetete, porque isso põe em causa a dignidade humana das pessoas. Mas podem pegar nas pessoas ao colo, por exemplo.”

Embora defenda a retirada de pessoas de local mesmo que contra à sua vontade, o jurista afirma que o Estado não deve de seguida acusar judicialmente os que recusaram sair pelo crime de desobediência: ”Levantar processos-crime a quem se recuse a sair seria desumano e frio”, resume Otero. “As forças de autoridade têm poder para intervir, mas não podem criminalizar quem não cumprir. Esse deve ser o equilíbrio do Direito.”

A limpeza total das matas teria impedido o fogo de chegar às casas?

Paulo Fernandes, da UTAD, considera que, num incêndio desta intensidade, é uma ilusão achar que essa medida seria suficiente para impedir o fogo de chegar a casas. “Neste tipo de incêndios rápidos e intensos, as casas ardem devido a projeções que vêm de longe e a fagulhas e lenha acumulada”, explica. “Depende mais da casa e do que está adjacente do que da limpeza à volta da casa.” A experiência de Pedrógão serviu até para compreender isso mesmo, sublinha Fernandes, que garante que a grande maioria das casas nesse incêndio “arderam não pela chama direta do fogo, mas pelas projecções”.

O constitucionalista Paulo Otero acrescenta ainda que a grande campanha que foi feita em torno da limpeza das matas poderia até ter sido substituída por outro tipo de campanha — em torno da necessidade de respeitar as ordens de evacuação, por exemplo. A sensibilização para esta matéria, diz, “seria bem mais importante do que outras que passaram nas televisões”, como a de limpeza das matas. “Isto faz parte de uma cultura de prevenção”, resume.

O próprio Governo compreendeu a necessidade de sensibilizar as populações nessa matéria, mencionando-o no guia do programa “Aldeias Seguras”, apresentado em abril deste ano. Nesse plano, que deveria ser aplicado em conjunto entre a administração central e as autarquias, foi prevista a criação da figura de um oficial de segurança local e a elaboração de planos de evacuação locais para as zonas de risco de incêndio que deveriam “envolver os cidadãos”. A ANPC, contudo, coloca nas autarquias o ónus de sensibilização da população para a necessidade de estar preparado para uma possível evacuação. No documento, pede-se aos municípios e às freguesias que realizem “um esforço comunicacional direcionado para a adoção de comportamentos práticos” por parte dos habitantes.