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A correr em pistas paralelas à polémica comissão parlamentar de inquérito, os primeiros passos para a venda da posição do Estado (se parcial, se total se verá) na TAP foram dados no ano passado, mas o processo formal ainda mal começou.
Não há um decreto-lei a aprovar a operação, apenas uma resolução a mandatar a Parpública para contratar assessores. Gestores, responsáveis políticos e membros de gabinetes (atuais e antigos), que passaram nas últimas semanas pela comissão parlamentar de inquérito à tutela política da gestão pública, têm revelado o menos possível sobre esta privatização que o primeiro-ministro meteu na agenda em setembro do ano passado.
Mas António Costa já admitiu que o Estado pode ceder a totalidade do capital da TAP (pela qual os socialistas tanto lutaram em 2016), mas como avisou o ex-administrador, Diogo Lacerda Machado, “ninguém (comprador da TAP) vai aceitar menos do que o controlo depois do que aconteceu”. Isto apesar de o advogado, e amigo de António Costa, defender que o Estado deveria pelo menos “conservar uma pequena participação” na TAP.
Por motivos totalmente diversos, o PCP e a Iniciativa Liberal têm sido os partidos que mais perguntas fizeram sobre este tema e os únicos que até agora obtiveram algumas respostas. A TAP vai ser posta à venda com uma almofada de capital (700 milhões de euros da ajuda do Estado serão pagos nos finais de 2023 e 2024) e com um ativo reforçado (mais de 400 milhões de euros) por prejuízos fiscais dedutíveis nos lucros dos próximos 11 anos.
Outra confirmação é a de que a decisão de privatizar a TAP agora (este ano) é política, já que não há qualquer obrigação assumida pelo Estado em Bruxelas de vender a empresa. Ainda que membros do Governo insistam que, a prazo, a empresa não sobrevive sozinha, sem estar integrada num grupo de aviação, apontando a TAP como a única companhia de bandeira na Europa que ainda está por sua conta (com o Estado por trás).
Já sobre o quanto, o como e o quem ainda muito pouco se sabe e é provável que o tema se mantenha fora do radar até terminarem os trabalhos da comissão parlamentar de inquérito, o que está agendado para julho. Não só por causa dos danos reputacionais para a empresa do que se tem ouvido, mas porque qualquer avanço no processo que seja público, irá levar a novos pedidos de documentos e perguntas por parte dos muito deputados, inquiridores da CPI.
Bruxelas não exige privatização
Enquanto adjunto económico por quatro anos no Ministério das Infraestruturas, Frederico Pinheiro acompanhou os processos relacionados com a TAP, sobretudo no tempo de Pedro Nuno Santos, o ex-ministro do qual se afirma ainda próximo. Em respostas ao deputados Bruno Dias e Bernardo Blanco, o ex-adjunto fez a clarificação.
Na decisão de resgate à TAP aprovada pela Comissão Europeia não está qualquer obrigação da empresa ser alienada. E não há esse compromisso do Estado português. Do lado das Infraestruturas, adiantou Frederico Pinheiro, “sempre houve a desconfiança de que a Comissão faria essa pressão e exigiria esse compromisso e houve um firme envolvimento para isso não constar no plano (….). E não consta em lado nenhum que o resgate seria um passo temporário para a privatização”, acrescentou o ex-adjunto. Frederico Pinheiro confirmou também que no plano negociado em Bruxelas não consta qualquer obrigação de devolução direta do dinheiro aplicado na TAP. Há um entendimento de que a recuperação seria indireta, através do impacto positivo da empresa na economia (como Pedro Nuno Santos não se cansou de repetir).
Devolver a ajuda pública. O que distingue a TAP da Lufthansa e da Air France?
Sobre o resto relacionado com a privatização, um dos temas dos documentos classificados que estariam no famoso computador que foi resgatado após uma intervenção do SIS, Frederico Pinheiro remeteu para os políticos. O atual responsável político, João Galamba, quase nada adiantou no dia seguinte à audição de Pinheiro nas poucas perguntas que lhe foram colocadas sobre o tema. Quando, na fase final da inquirição de sete horas, foi confrontado por Bruno Dias com uma TAP “sobrecapitalizada” para poder ser vendida por mil milhões de euros, “repetindo o esquema de a empresa ser comprada com o próprio dinheiro”, o ministro das Infraestruturas respondeu:
“Admitindo que houve sobrecapitalização, a TAP será vendida por um valor mais alto. Vale mais e o valor que pagarão por ela será mais elevado”.
Segundo o deputado do PCP, essa sobrecapitalização está clara no plano de reestruturação, o qual prevê uma subida “muito substancial do capital próprio da transportadora” entre 2022 e 2025, mas cujo valor não pode revelar porque é segredo.
Última tranche da ajuda só é paga no final de 2024
A sobrecapitalização de que fala Bruno Dias resulta do pacote de financiamento público concedido pelo Estado à TAP de 3,2 mil milhões de euros (um valor que inclui uma ajuda pública de 2,55 mil milhões de euros e cerca de 650 milhões de euros de compensações diretas por danos causados pela pandemia). A última tranche de 980 milhões de euros foi aprovada no final de 2022, mas só uma parte deste cheque entrou já na TAP. No final de 2022, a TAP indicava que este valor seria dividido em três tranches — a primeira de 294 milhões de euros entrou logo no capital, mas as duas seguintes (cada uma de 343 milhões de euros) serão devidas no final de 2023 e de 2024.
Esta distribuição temporal resulta da constatação de que a TAP não precisava de tanta liquidez no final de 2022, dados os bons resultados (que anteciparem em três anos os lucros previstos para 2025) e o reforço da tesouraria. Um comprador pagará mais por uma empresa com excesso de liquidez ou capital, o que pode ajudar a inflacionar as ofertas pela TAP. Mesmo que esta seja uma questão contabilística, já que em termos líquidos e para fazer as contas a quanto o Estado consegue ou não recuperar através da venda ,seja necessário subtrair esse excesso. A Iniciativa Liberal já questionou a venda da empresa com este brinde de mais 700 milhões de euros de capital.
Bernardo Blanco da IL. Pôr mais 700 milhões na TAP antes de vender “parece-me um péssimo negócio”
A dimensão da ajuda à TAP foi autorizada, tendo como pressupostos as condições indicadas no momento da atribuição do apoio — em resposta a um plano desenhado para os efeitos mais negativos da pandemia no setor da aviação — e não as circunstâncias da empresa na fase em que são feitas as transferências financeiras.
Questionada sobre a folga de liquidez da TAP, a Comissão Europeia esclarece que ajuda pública de 2,55 mil milhões de euros foi aprovada no final de 2021 para permitir à empresa regressar à viabilidade. A Comissão concluiu que, com base no plano de reestruturação submetido por Portugal e em medidas adicionais adotadas para preservar a concorrência (a cedência de slots no aeroporto de Lisboa), “a medida iria trazer a TAP de volta para o caminho da viabilidade a longo prazo sem afetar de forma indevida a concorrência.” Bruxelas continua a monitorizar regularmente a implementação da decisão e o plano de reestruturação, tal como previsto na decisão, e está em contacto com as autoridades portuguesas.
O reforço do ativo à boleia do fim do prazo para descontar prejuízos fiscais
E não será o único. Outra decisão tomada pelo Governo no ano passado, e sem nenhuma relação aparente com a TAP, também resultou num reforço considerável do ativo da empresa no horizonte da próxima década, o que pode ajudar a compor um preço simpático. Por força de uma das medidas do acordo de rendimentos assinado com os parceiros sociais, a TAP é uma das beneficiárias do fim do prazo para dedução de prejuízos fiscais em impostos sobre lucros futuros.
Quase metade do lucro de 2022 da TAP resulta de efeitos fiscais
Esta alteração já deu um impulso relevante aos resultados de 2022, e teve igualmente um impacto positivo no ativo por via dos impostos diferidos que foram contabilizados para o futuro e que ascendem a 426 milhões de euros (dos quais 160 milhões resultam de perdas geradas nos anos de 2015, 2021 e 2022) e 206 milhões de euros de créditos a receber (sobretudo da holding TAP SGPS). Este valor, que já tinha sido revelado pelo administrador financeiro da TAP, Gonçalo Pires, na sua audição na CPI, resulta de uma estimativa validada pelo auditor da TAP, a PwC. E tem por base as projeções de resultados apresentadas pela administração da empresa no quadro do plano de reestruturação até 2025 e projeções já entregues a Bruxelas para os anos de 2026 e 2027.
“Considerando os pressupostos referidos, é expectável a recuperação dos ativos por impostos diferidos registados no final do ano passado — os tais 426 milhões de euros — num período entre 11 e 13 anos, atendendo a diferentes cenários de sensibilidade”, escreve a TAP nas contas do ano passado. Ainda que estas previsões possam sair furadas, já que dependem da capacidade futura de gerar lucros, são mais um trunfo financeiro que pode ter algum impacto no valor das ofertas.
Prejuízos fiscais. Mudança da lei em 2022 tem efeito positivo de 440 milhões no ativo da TAP
A sondagem do mercado, a narrativa de fuga e a consultora que trabalha há 9 meses sem receber
Se a comissão de inquérito já deu algumas pistas sobre a estratégia de valorização da TAP de olhos postos na venda, já os contornos da operação continuam no segredo dos deuses (ou de alguns computadores). A começar pela forma como foi contratada uma consultora para fazer a primeira “sondagem do mercado” ainda em 2022.
A intervenção da Evercore no processo de venda tem sido alvo de muitas dúvidas dos deputados já que a consultora foi contratada pela TAP, e não pelo Estado, numa escolha da antiga CEO. Durante a sua audição Christine Ourmières-Widener desvalorizou o papel da empresa americana que descreve como sendo o de recolher informação junto de potenciais interessados para ajudar o Governo a preparar o processo. Segundo explicou na CPI, a Evercore esteve a trabalhar vários meses (nove, disse Bernardo Blanco) sem ser paga porque quando foi escolhida se esperava que o processo avançasse mais depressa.
Durante a audição a João Galamba, Bernardo Blanco sinalizou a existência de um parecer jurídico da Morais Leitão feito para a TAP com três cenários para a privatização, dos quais um será o que tem menos exigências jurídicas. O ministro afirma desconhecer este relatório de 2022 (do tempo do antecessor Pedro Nuno Santos), tal como desconhece um relatório com a sondagem de mercado conduzida por uma consultora escolhida pela ex-presidente executiva da TAP, a Evercore, cujo relatório final o seu ex-adjunto admitiu na CPI ter tido conhecimento, sem dar detalhes, mas dizendo que o relatório que recebeu foi da TAP. É nesse documento, citado pelo deputado da IL, que estará prevista a tal “narrativa de fuga”, o que passaria por por cá fora informação sobre os potenciais candidatos à compra da TAP.
A Evercore terá sinalizado três candidatos entre os grandes grupos de aviação — João Galamba desvaloriza, referindo que já houve manifestações públicas de interesse da IAG (British Airways/Iberia), da Air France/KLM e da Lufthansa. A transportadora alemã, apontada como favorita nesta corrida, terá estado próxima de adquirir a participação de David Neeleman na TAP no início de 2020, numa operação que valorizava a companhia em cerca de mil milhões de euros e que aceitava manter a gestão em Portugal e o Estado no capital, segundo relatou Lacerda Machado. O interesse da Lufthansa parece existir em teoria, mas poderá encalhar nas negociações que a empresa alemã mantém com a Itália para a compra da ITA (sucessora da Alitalia).
Apesar de o Governo assumir o cenário preferencial de integração num grande grupo de aviação, não abriu o jogo sobre a dimensão do capital a vender. Várias das personalidades ouvidas na comissão de inquérito avisam que, depois do caso Alexandra Reis e das ingerências políticas na gestão da TAP, reveladas pelos trabalhos da CPI, será muito mais difícil que um privado aceite ser sócio do Estado na companhia aérea. Já o empresário e ex-acionista português, Humberto Pedrosa, sinalizou outro caminho possível, o de um grupo de empresários nacionais, o qual estaria pronto a integrar.
Atualizado às 22h30 com respostas da Comissão Europeia.