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Até dia 9 de março, As Ilhas Encantadas vai andar por várias regiões do país (e não só), de Évora ao Funchal, da Mealhada a Santarém, passando inclusivamente pelo Luxemburgo
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Até dia 9 de março, As Ilhas Encantadas vai andar por várias regiões do país (e não só), de Évora ao Funchal, da Mealhada a Santarém, passando inclusivamente pelo Luxemburgo

Até dia 9 de março, As Ilhas Encantadas vai andar por várias regiões do país (e não só), de Évora ao Funchal, da Mealhada a Santarém, passando inclusivamente pelo Luxemburgo

O regresso às Ilhas Encantadas de Amália Rodrigues

Não cantou e não fez "dela própria". Filmada em 1965 por Carlos Vilardebó, foi atriz dramática de corpo inteiro. Esta é a história de um filme maldito, recuperado pela Cinemateca e de novo projetado.

Um navio chega perto de uma ilha, repleta de tartarugas, onde habita uma mulher, Hunila. O marido e o irmão já partiram. Está só. Parece que entramos num sonho. A câmara, que até então se preocupara em mostrar aquela paisagem exótica — porque estamos em 1965 e o filme As Ilhas Encantadas parte de uma adaptação de um livro de Herman Melville — numa espécie de sonho de Luís de Camões até às sereias dos Amores, vira-se para esta mulher. Ela enche o ecrã, tem tons morenos, um olhar que desafia sem ser preciso qualquer diálogo, uma assombração. Não será vítima, nem musa, nem femme fatale. Provoca desejo, distancia-se dentro do silêncio ensurdecedor daquela ilha deslumbrante. É Amália Rodrigues, que aceitou o desafio do luso-francês Carlos Vilardebó para entrar em As Ilhas Encantadas, única longa metragem deste realizador.

Cheia de encantos e contradições, Amália desempenhou nesta longa-metragem o único papel dramático da carreira, sem cantar uma única vez. Na história da matemática, dos números, correu mal, muito mal, já que António Cunha Teles, mítico produtor madeirense que ajudou a criar o chamado novo cinema português ao produzir Verdes Anos (Paulo Rocha) ou Belarmino (Fernando Lopes) , abriu falência depois do projeto. Mas o cinema não é uma linha contínua e o que se fez naqueles anos, em pleno Estado Novo — período durante o qual só os resistentes ousaram filmar outra ideia de país — pode ganhar um novo significado agora.

As críticas a As Ilhas Encantadas em Portugal foram más. O realizador era visto como “estrangeiro”, mesmo tendo feito um percurso interessante nas curtas-metragens, trabalhando com materiais dentro da lógica do cinema documental francês, com presenças em festivais como o de Cannes (A Pequena Colher, 1961, valeu-lhe a Palma de Ouro), mas sem um selo de qualidade que agradasse à crítica nacional. “Contentemo-nos com fazer apelo ao nacionalismo aforismo ‘santos da porta não operam milagres’ para encontrar justificação satisfatória ao estranho critério que consistiu em confiar a um cineasta estrangeiro no fim de contas a árdua tarefa e grave responsabilidade de representar uma cinematografia de um país cuja essência e problemática lhe eram até então inteiramente alheios. Os meios de produção postos à sua disposição pelo Fundo de Cinema teriam encontrado entre nós um intérprete à altura de oferecer de Portugal, das ambições e das coordenadas básicas do seu cinema, uma perspetiva mais exata, mais nossa”, escreveu Soares da Costa nos Cadernos Antológicos de Cinema e Teatro a propósito da ida de As Ilhas Encantadas até Veneza.

"O seu argumento, o modo como está a ser dirigido, a beleza dos cenários levam-se a acreditar que resultará num bom filme" dizia a fadista, citada na "Coleção Cinema"

Quase 60 anos depois, o filme esteve em 2023 no Festival Lumiére, em Lyon. A imprensa francesa apelidou-o de “tesouro do cinema exumado”. Na viagem seguiu uma cópia restaurada, ao abrigo do projeto FILMar, da Cinemateca, financiado pelo programa Cultura do Mecanismo Europeu EEAGrants. Agora, até dia 9 de março, As Ilhas Encantadas vai andar por várias regiões do país (e não só), de Évora ao Funchal, da Mealhada a Santarém, passando inclusivamente pelo Luxemburgo. Estará também patente, de 18 de fevereiro a 20 de abril deste ano, uma exposição de Augusto Cabrita, O Olhar Encantado, na Bibiloteca Municipal de Marvila, em Lisboa, com fotografias da rodagem do filme de 1965. Esta digressão faz parte da itinerância do FILMar (mais de cem filmes em mais de 30 localidades, todos os detalhes aqui).

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Na equipa do filme estavam nomes bem conhecidos, como o vulto da fotografia Augusto Cabrita, acompanhado pelo francês Jean Rabier, ou até, num pequeno papel como marinheiro, Belarmino Fragoso (o Belarmino de Fernando Lopes). E, apesar das críticas nacionais, em 1964, Amália Rodrigues mostrava-se em entrevista confiante no sucesso do filme. Já tinha feito várias participações à frente da câmara como em Fado Corrido (1964) ou Capa Negras (1947), portanto, um set de rodagem não lhe era estranho. Já tinha também entrado no estrelato de Hollywood ou em filmes internacionais como Os Amantes do Tejo (1955), como relembrado pelo jornal Público. Uma diva, em todo o seu esplendor. Partiu para fazer um filme maldito em Porto Santo, na Madeira; contudo, saiu de lá com um prémio de melhor atriz atribuído pelo Secretario Nacional de Informação. Ou seja, o escárnio e mal dizer não pintavam todo o ambiente de As Ilhas Encantadas. “O seu argumento, o modo como está a ser dirigido, a beleza dos cenários em que se situa são fatores que me levam a acreditar que resultará num bom filme, cheio de interesse, que satisfará os mais exigentes”, dizia a fadista, citada na Coleção Cinema, n40. Depois da estreia, voltava atrás: “Quanto a mim, é a minha melhor interpretação no cinema. Em Portugal, o filme sofreu por minha causa. Por uma espécie de má vontade contra mim. Como era um filme artístico, criticaram logo”.

"Amália tinha uma grande força. O Carlos Vilardebó percebeu isso, o que não era fácil, porque ele era uma pessoa muito tímida e reservada, tal como a sua mulher. Este foi o seu lançamento como artista de cinema. A Amália marcava muito bem, como se dizia entre nós, nem precisava de ser dirigida."
Fernando Matos Silva, assistente de realização em "As Ilhas Encantadas"

A história de As Ilhas Encantadas é feita de amor, desespero e solidão. É a história de um náufrago (Pierre Clémenti) que numa ilha no Atlântico encontra Hunila (Amália), mulher perdida na solidão gerada pela morte do irmão e do marido, vítimas de um mar imperdoável numa existência insular de destino aparentemente traçado. Ambos acabam por ser descobertos por um outro navegador, Manuel Abrantes (Pierre Vaneck), que ali chega no Gazela, “interpretado” pelo navio-escola Sagres. É Abrantes que, além de personagem, serve de narrador e nos conta a nós, do lado de cá, que encantamento foi aquele e como aconteceu.

Na viagem seguia também um jovem assistente de realização, Fernando Matos Silva. Mal a conversa com o Observador se transporta para a rodagem de cerca de dois meses na Madeira, Matos Silva rapidamente desdramatiza a aura maldita de As Ilhas Encantadas. “Sim, pode dizer-se que foi uma experiência exótica, porque foi a primeira longa-metragem do Vilardebó e logo com uma montagem Hollywoodesca”, conta. Matos Silva teve de ir até às ilhas pelo Paquete Funchal, ajudar a transportar todo o material, onde se incluíam grandes geradores, mas também deu uma mão na repérage (reconhecimento de um local antes de qualquer filmagem). Fez de tudo e com pouco mais de 20 anos. Descarregou, assistiu e até arranjou automóveis, da marca Opel, para a produção. Um feito que surpreendeu, e muito, Amália Rodrigues, com quem desenvolveu uma grande cumplicidade. “Tínhamos uma equipa muito rodada, fomos buscar o Augusto Cabrita, com muita experiência em televisão, que vestiu os marinheiros, fez tudo para imitarmos o navio Sagres. Havia uma relação boa. Houve até uma noite em que a Amália cantou numa taberna onde comemos frangos à moda da Madeira”, conta. Uma rodagem tranquila, com um fim que remeteu este tesouro para os calabouços. Nem tudo foi trágico. Por exemplo, o diretor de fotografia tornar-se-ia o grande fotógrafo de Amália Rodrigues, até à morte do ilustre barreirense 1993, aos 69 anos.

Fotografias de Augusto Cabrita, feitas durante a rodagem de "As Ilhas Encantadas"

Em As Ilhas Encantadas, estávamos perante algumas das pessoas mais importantes do Cinema Novo e que marcaram a história da filmografia portuguesa para sempre, ainda que essa mesma história precise agora de ser resgatada. Fernando Matos Silva é um desses casos. Não dá a mão ao carimbo de “filme maldito”. É certo que, para o realizador, não foi possível fazer o dinheiro que era suposto. Aponta mais para a falta de relação que o público português tinha com o seu próprio cinema — uma relação que, diga-se, continua a ser feita de amor e ódio, uma bipolaridade que faz com que a quota de cinema português seja a mais baixa dos últimos cinco anos. Quanto a Amália Rodrigues, Matos Silva destaca a simplicidade da fadista, que contrastava com a “fabulosa atriz que era”: “Amália tinha uma grande força. O Carlos Vilardebó percebeu isso, o que não era fácil, porque ele era uma pessoa muito tímida e reservada, tal como a sua mulher. Este foi o seu lançamento como artista de cinema. A Amália marcava muito bem, como se dizia entre nós, nem precisava de ser dirigida”.

Os dois foram vizinhos na Praça das Flores e nas ruas as pessoas apontavam-lhes intimidade. Durante a rodagem, Amália, que não era propriamente fã de alto mar, ficou com medo dos tubarões martelo da região. Pediu ajuda ao então jovem assistente de realização. Ficou-se pelo susto. Para sinalizar a amizade gerada, Amália Rodrigues, certo dia, ofereceu uma página de quadras no dia de aniversário de Matos Silva. Depois dos problemas financeiros de As Ilhas Encantadas, Matos da Silva fez filmes industriais e foi estudar para Londres. Virou-se para a publicidade e para a televisão, tendo também mantido um pé no cinema com Mal Amado, que realizou em 1973.

"Estes restauros têm uma dimensão histórica e política que serve para que possamos rever aquilo que é o nosso conhecimento do cinema português da década de 60, é um encontro de acasos que tem lugar no mesmo território. Estamos, no fundo, a dialogar com a memória."

A seguir ao filme de Vilardebó, Amália Rodrigues partiu para outra aventura. “Nessa altura, a Amália foi vítima de mais uma polémica parva, que foi o disco Amália Canta Camões“, lembra o antigo diretor da EMI—Valentim de Carvalho, David Ferreira (filho de David Mourão-Ferreira, que Amália também cantou). É ele quem lembra artigos do Diário Popular ou os livros de Vítor Pavão dos Santos sobre a fadista, para que se recorde aquilo que muitos na altura descreveram como “ousadia”. David Ferreira acredita que esta má receção de Amália Canta Camões se liga à fricção entre a artista e o público português com o As Ilhas Encantadas. “Todas estas polémicas, até a propósito da comemoração do seu recente centenário, que foi um desleixo total, pertencem a esse fundo, porque os portugueses dão-se mal com o talento. As pessoas que têm nível são alvos a abater, é algo muito português”, acredita.

David Ferreira quis destacar ainda outra história e um exemplo que acaba por resumir todos estes episódios atribulados na carreira de Amália Rodrigues. “No livro Uma Biografia, o Pavão dos Santos conta que a Amália Rodrigues tinha sido falada para entrar no Pátio das Cantigas, do António Lopes Ribeiro. Diz-se que foi chumbada porque o caracterizador tinha dito que a cara dela não resultava. Basta ver o As Ilhas Encantadas para ver que ela resulta. É impressionante, enche o ecrã. Um assombro.” O antigo editor aponta o dedo para a carreira de outro grande nome do cinema popular português, Beatriz Costa. “Foi para o Brasil em 1939 e acabou-se a sua relação com o nosso cinema. Claro que foram os anos da guerra, ficou mais difícil, mas foi muito estranho. Somos pouco se não fazemos nada para tornar a vida menos complicada para quem tem talento”, diz.

Sobre Amália Rodrigues, Matos Silva destaca a simplicidade da fadista, que contrastava com a "fabulosa atriz que era"

Já a propósito deste projeto, em 2023 o Observador visitou o ANIM, para olhar para o laboratório FILMar, entre o arquivo e os cofres da Cinemateca. Lá dentro estiveram a ser trabalhadas, restauradas e digitalizadas outras participações de Amália Rodrigues no mundo do cinema. São quase-segredos bem guardados que se querem ver mais uma vez revelados ao mundo. Dentro do catálogo estão filmes como o Fado, de Maurice Mariaud (1924), com uma nova partitura encomendada ao guitarrista José Manuel Neto, estreado a 16 de novembro. Carlos Vilardebó — que está, neste mês de fevereiro, a ser objeto de um ciclo especial na Cinemateca — fez ainda outros três filmes com a fadista, para a televisão francesa em 1960, inéditos em Portugal e recentemente descobertos nos arquivos da Pathé. Os Caminhos do Sol, feito entre o luso-francês e Augusto Cabrita em 1966, também entrou neste amplo projeto de restauro português. Por fim, Ouça Lá Oh Senhor Vinho, de Augusto Cabrita, realizado em 1971, foi igualmente repescado pelo FILMar.

Tiago Bartolomeu Costa, coordenador do projeto, é um acérrimo defensor de As Ilhas Encantadas: “O Vilardebó ajudou a escrever uma nova história no cinema, a Amália vai ao arrepio do que era expectável num cinema feito em ditadura. Está a experimentar filmar o real quando aqui se usam metáforas para esse realismo. Em As Ilhas Encantadas emula-se a ideia de corpo de um país, o corpo é habituado por uma pulsão de sobrevivência”, conta ao Observador. Portanto, Amália Rodrigues não é vítima nem femme fatale, é desejo, tem a sua dimensão erótica, é surpresa, mas é também choque dentro de uma paisagem que não está em harmonia com as suas personagens. Tal como fez Pier Paulo Pasolini com Maria Callas ou Claude Sautet fez com Romy Schneider. Experimentar, trabalhar e sugar todo o talento de alguém através de uma câmara de filmar. “Estes restauros têm uma dimensão histórica e política que serve para que possamos rever aquilo que é o nosso conhecimento do cinema português da década de 60, é um encontro de acasos que tem lugar no mesmo território. Estamos, no fundo, a dialogar com a memória.”

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