“Ainda hoje o consumidor não sabe que há vinhos de Lisboa. Às vezes perguntam-me se temos vinhas no Marquês de Pombal ou na Praça do Comércio”, diz Francisco Bento dos Santos, da Quinta do Monte D’Oiro, em jeito de brincadeira.
A Região Vitivinícola de Lisboa esteve, até 2009, associada ao nome Estremadura — de difícil pronúncia para estrangeiros e muitas vezes confundido com a Estremadura espanhola. A região era (e é) conhecida por ser uma terra de volumes, ou seja, muito fértil no que ao vinho diz respeito, mas nunca chegou a gozar de tão boa fama como um Alentejo ou um Douro.
Atualmente, a área em causa — que compreende Alenquer, Arruda, Bucelas, Carcavelos, Colares, Encostas d’Aire, Lourinhã, Óbidos e Torres Vedras, enquanto denominações de origem — vive melhores dias. Os ventos de mudança fazem-se sentir também graças ao contributo do grupo Lisbon Family Vineyards, uma espécie de Douro Boys à la capital mas cuja produção vinícola tem menor expressão.
A marca, ainda a dar passos de bebé, nasceu da união de três quintas: Chocapalha e Monte D’Oiro, em Alenquer, e Sant’Ana, no Gradil. Apesar de ter pouco mais de um ano, as raízes do projeto vão mais fundo e recuam 10 anos, altura em que a ideia surgiu entre amigos.
Em causa está um trio que partilha os mesmos ideais vitivinícolas, além de serem pequenos produtores e de âmbito familiar. Nada contra quem está a cargo de produções volumosas, até porque há espaço para todos e cada ator tem o seu peso na economia. “Eu não sei fazer vinho a um ou dois euros e há quem o faça muito bem”, esclarece Francisco Bento dos Santos.
Posto isto, os Lisbon Family Vineyards estão à procura de maior reconhecimento nacional e internacional, sendo que o primeiro evento em que participaram enquanto marca foi o Peixe em Lisboa, em 2013. Como tudo ainda é recente, contam-se pelos dedos das mãos as vezes em que apareceram em público e em grupo. Mas o certo, garantem os intervenientes, é que levam à letra a expressão “um por todos e todos por um”, não estivessem eles em família.
Ao vinho as três quintas acrescentam ainda a vertente de enoturismo, seja através de provas, refeições ou turismo rural. E se no processo contribuírem para a promoção de Lisboa, enquanto região produtora de vinho, tanto melhor.
O Sr. comandante que trocou o mar pelo campo
“A quinta gritou por nós”, explicam Alice e Paulo Tavares da Silva. Ela é suíça e ele português. Em conjunto têm três filhas — Sofia, Andrea e Sandra, que é enóloga de profissão –, além do Touriga, um grand noir de oito anos que é companhia constante do Sr. Comandante, como Paulo é tratado. O casal vive na Quinta da Chocapalha, numa casa datada do século XVIII, e as filhas… vão vivendo.
O desejo sempre foi aquele: estar e ser do campo. A única condição era imposta por Alice Tavares da Silva, que insistia que ficassem nos arredores de Lisboa. “Não queria quebrar a família”, conta ao Observador num português quase perfeito. Na rifa calhou-lhes uma propriedade deserta, à espera de novos donos. “Foi muita sorte”, diz Paulo, que adquiriu a quinta secular no final da década de 1980.
O ex-comandante da armada, papel desempenhado por cerca de 30 anos, garante que foi preciso replantar todas as vinhas e fazer obras nas estruturas já edificadas. Só no fim, feita a compra, é que percebeu que estava na posse de uma casa e um terreno velhos. Mas isso não o demoveu e Paulo trocou os mares por uma propriedade à qual pudesse chamar casa (apesar de ter uma segunda habitação na linha de Cascais é por aqui que o casal opta por passar os dias).
Ao início, a intenção de fazer negócio não era clara. Paulo, o viticultor, começou por vender as uvas às adegas cooperativas da zona e só mais tarde arregaçou as mangas e iniciou o processo de vinificação com a ajuda da família. O primeiro vinho nasce, assim, no ano 2000 e chega a ocupar 20 mil garrafas. Hoje, a Chocapalha tem capacidade para 120 mil unidades e três engarrafamentos anuais. Os Tavares da Silva produzem pouco vinho na terra onde há muito.
Tendo em conta a localização, a quinta beneficia de um microclima, explica Andrea, que está a cargo do marketing e das vendas. O terreno desenha-se em formato de colina e está perto do mar. Por esse motivo, a brisa Atlântica presta um válido contributo no que à vinificação diz respeito, originando vinhos mais frescos e elegantes. Da propriedade alcança-se ainda a presença da serra de Montejunto, que projete a Chocapalha de ventos menos amigáveis.
Ao todo são 75 hectares, sendo que 45 deles estão ocupados por vinhas — as mais antigas têm cerca de 30 anos e originam dois vinhos em particular (o CH, em honra de Alice Tavares da Silva e da sua terra natal, e o Vinha Mãe) embora sejam utilizadas diferentes parcelas para o efeito.
As castas tintas plantadas na propriedade remetem para Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz e Cabernet Sauvignon, entre outras, enquanto nas brancas o destaque vai para o Arinto, Viosinho e Chardonnay. Os vinhos por aqui produzidos dividem-se entre os Quinta de Chocapalha, considerados vinhos gastronómicos e de guarda, os Mar da Palha e ainda Mar de Lisboa.
A moderna adega encontra-se à saída do portão principal da quinta. A cor do betão, e suas linhas direitas, quase se confunde com o cenário envolvente. O projeto foi financiado com o contributo de fundos comunitários e foi inaugurado na vindima de 2013. Lá dentro é possível pôr o olho em cubas de inox e em barricas de carvalho francês, onde estagiam as vinhas velhas. A adega costuma ser a última etapa numa visita acompanhada à quinta, na qual ainda se fazem provas e refeições que prometem casar com os vinhos servidos.
O vinho como um bem precioso
Dos 42 hectares, 20 estão em produção. A casta dominante é a Syrah, nos tintos, e Viognier, nos brancos. No que a porta-estandartes diz respeito, em causa estão os vinhos Quinta do Monte D’Oiro Reserva e o Madrigal. Estamos na Quinta do Monte D’Oiro, situada no Freixal de Cima, perto de Alenquer. A propriedade foi adquirida em 1986 pelo famoso gastrónomo José Bento dos Santos — é o presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia e vice-presidente da Academia Internacional de Gastronomia.
“O meu pai trabalhou toda a vida no trading de metais, mas sempre teve em mente que a commodity mais preciosa é a terra”, conta Francisco Bento dos Santos, que desde sempre esteve ligado ao universo do vinho por influência paternal. Assim que surgiu possibilidade, o pai de Francisco decidiu investir numa quinta. Mas não numa qualquer. O pedaço de terra que hoje lhe pertence desde muito cedo fez parte do seu imaginário infantil: “Os meus avós são da aldeia do lado e o meu pai sempre ouviu falar da quinta do Monte D’Oiro”, conta Francisco.
Nos primeiros tempos a propriedade serviu apenas o propósito de um (bom) investimento. Mas o tempo e as oportunidades que, entretanto, surgiram iam ditar as características ideais para a produção de vinho. As primeiras vinhas foram plantadas em 1993, com videiras de casta Syrah trazidas de França.
“O meu pai acabou por concluir que o terreno tinha as características para plantar as castas que mais admirava”. Nem de propósito, o primeiro vinho a ser produzido foi monocasta, 100% Syrah, que chegou a ser classificado como o melhor vinho de casta estrangeira do ano (1997) por João Paulo Martins.
O investimento transformou-se, assim, numa paixão rentável. Se o primeiro vinho fez 7 mil garrafas, atualmente a média ronda as 70 mil unidades anuais e há mais castas a merecerem atenção — Touriga Nacional, Tinta Roriz e Petit Verdot, e as brancas Viognier, Marsanne e Arinto. Mas o que talvez distinga mais a quinta das restantes associadas ao projeto Lisbon Family Vineyards é o facto de apostar em agricultura biológica, cuja mudança progressiva arrancou em 2006.
À parte do vinho, há ainda a vertente de enoturismo: as visitas à quinta incluem as duas adegas, uma das quais alberga cerca de 400 pipas de carvalho francês com capacidade para 250 litros, onde os vinhos fazem o estágio. A outra, por seu turno, aposta em cubas de inox que entram no processo de fermentação.
Mas existe ainda a possibilidade de fazer provas de vinho e de degustar refeições que harmonizam com os néctares em questão. Estas podem ser ora caseiras, ora ter um dedo (ou porque não uma mão?) do chef José Avillez.
A terra, o oitavo filho de James Frost
Ao todo são sete rapazes: Tiago, 4, José, 8, Patrick, 11, Jeremy, 15, Charlie, 17, Francisco, 19, e Lucas, 24. “Cada nome tem uma versão em português, inglês e alemão. Foi sempre um desafio batizá-los”, conta James Frost, que nunca pensou que, ao apaixonar-se por Ann Frost, tivesse uma vida e negócio estabelecidos em Portugal. Para não falar que é pai de sete.
A história começa ainda antes do 25 de abril de 1974. Os pais de Ann, que é irmã de outros seis, adquiriram a Quinta de Sant’Ana, que produz vinho desde o século XVII, na década de 1960. O barão Gustav von Furstenberg por ali viveu até 1974, mas com a revolução optou por deixar Portugal e voltar para o país natal, a Alemanha.
Os anos foram passando e o então futuro sogro de James Frost decidiu-se a vender a quinta e incubiu-o da tarefa. Chegado a Portugal e à propriedade, o inglês rendeu-se. As casas pintadas num tom laranja vivo e circundadas por um manto verde foram o suficiente para o convencer de que tinha encontrado um lar. Com muito esforço, e já casado com Ann, conseguiu comprar a quinta em 1995.
De lá para cá, o negócio tem corrido bem e o proprietário já não se imagina a viver noutro sítio que não em Portugal. “Eu venho de uma família de agricultores. O meu pai tinha gado e cereais. Sou uma pessoa do campo”, diz James, cujo apelo maior sempre foi a terra.
Mas além da agricultura, o proprietário puxou também pela vertente de turismo na Quinta de Sant’Ana. “Inicialmente tínhamos turismo de habitação na casa principal, onde também vivemos, mas a família aumentou e tornou-se impossível”, diz. A certa altura, o casal tinha rapaziada a correr de um lado para o outro, ao mesmo tempo que recebia turistas.
Hoje em dia, na quinta existem quatro casas onde pernoitar. Três delas apresentam uma arquitura tradicional e tiveram ocupações distintas em tempos idos — falamos da antiga casa do caseiro, da casa da adega e dos estábulos. A estrutura mais recente foi construída de raiz e é também a maior, com direito a piscina.
Mas a vertente de enoturismo não se esgota aqui, até porque a propriedade é particularmente conhecida pelos eventos que organiza, sobretudo pelos casamentos que não são poucos. James Frost admite que, por ano, chega a ter 50 casamentos e são sobretudo os estrangeiros que os procuram.
E o que dizer do vinho? Os terrenos da propriedade estendem-se até ao muro da Tapada de Mafra, mas apenas 10 hectares são dedicados às vinhas. “Começámos por plantar dois hectares e meio em 1999”, explica James. À data foram plantadas as castas Castelão, Aragonês e Fernão Pires.
Se em tempos venderam a uva a granel, desde 2005 o casal produz o próprio vinho, sempre com a ajuda do enólogo António Maçanita. “ É alguém que estudou juntamente comigo os solos, as castas, a seleção da uva… Todos os detalhes”. Os resultados da dupla foram frutíferos e, em 2011, a quinta foi considerada o produtor revelação do ano pela revista Wine – A Essência do Vinho.
“Temos 10 vinhos diferentes, mas todos são Quinta de Sant’Ana, cinco brancos e cinco tintos”, explica o vitivicultor. São vinhos frescos, diz, com acidez mais alta. “Os tintos são elegantes e complexos, não são como os do Alentejo, intensos e encorpados. Estes destacam-se por ser mais gastronómicos e conseguem envelhecer bem na garrafa”.
Em suma, as três quintas construíram um pequeno império onde o vinho é rei. Os projetos familiares poderão não ter começado com os olhos postos nos prémios e na exportação mas, até agora, este parece ser o rumo tomado e a tomar. E se a região vitivinícola de Lisboa for positivamente influenciada por isso, tanto melhor. O certo é que fica tudo em família.