No tempo em que havia mais relógios nos pulsos do que telemóveis nos bolsos, bastava um pequeno atraso no compasso dos ponteiros para perder um comboio ou uma reunião importante. Problemas menores, quando comparados com os que lhe pode dar um relógio biológico fora de tempo. Na melhor das hipóteses sente-se o efeito do jet lag mesmo sem ter viajado, mas no limite pode levar ao aparecimento de doenças como diabetes ou cancro.
Quando, nos anos 1980 e 1990, os três investigadores norte-americanos vencedores do prémio Nobel da Medicina 2017 descobriram os primeiros genes envolvidos na regulação do relógio biológico, estavam longe de imaginar as implicações que a descoberta poderia ter em diversas áreas da saúde e bem-estar. Agora, com o destaque dado pela atribuição do prémio, espera-se que as atenções sobre o tema e a investigação na área aumentem.
A equipa de Angela Relógio, investigadora na Charité — Universidade de Medicina de Berlim, vai continuar na mesma linha, uma área ainda pouco estudada, segundo a investigadora: o estudo de como o relógio interno controla os mecanismos tumorais. A investigadora reforça a importância do trabalho lembrando que já em 2007 a perturbação dos ritmos circadianos (os ciclos diários que controlam as funções biológicas), nomeadamente pelo trabalho por turnos, foi considerada “provavelmente cancerígeno para humanos”, pela Agência Internacional para a Investigação em Cancro (IARC), da Organização Mundial de Saúde.
Um dos alvos de estudo da equipa de Angela Relógio é o gene RAS, conhecido por estar relacionado com o aparecimento de certos tumores. Surpreendente foi perceber que alterar este único gene pode ser o suficiente para perturbar o ritmo circadiano das células. Ou seja, o ciclo de 24 horas é alterado e os processos celulares passam a acontecer em momentos distintos do que seria normal. O resultado é uma célula diferente da original (e que se transforma em célula tumoral) e uma replicação mais rápida destas células modificadas.
Num trabalho que a investigadora portuguesa espera publicar em breve, a equipa manipulou células normais, alterando-lhes o relógio biológico, e o resultado foi o aparecimento de um tumor. Num próximo passo, Angela Relógio espera deixar de usar apenas as linhas celulares (células preparadas para funcionar como modelos em experiências laboratoriais) e passar a usar as células dos doentes. A ideia é comparar os relógios biológicos das células tumorais com os das células normais numa mesma pessoa.
Did you know that all living organisms have an internal, biological clock?#NobelPrize
— The Nobel Prize (@NobelPrize) October 2, 2017
Conhecendo bem o mecanismo, e a forma como as alterações no relógio biológico podem levar ao aparecimento de um tumor, pode tentar-se reverter o processo, tentando acertar o relógio novamente. Ou tentando silenciar o gene que provoca as modificações. Ou mesmo encontrando os momentos adequados para realizar a quimio ou radioterapia. Desta forma, deixava de ser o relógio mecânico e as vagas nos serviços de saúde a determinar quando o doente fazia a terapia e passava a ser o relógio biológico a comandar o processo. Estudos preliminares mostraram que respeitar o ritmo circadiano nos tratamentos diminui os efeitos secundários que estes possam ter.
Como funciona o relógio biológio?
Dizia-se que os relógios se acertavam andando com os ponteiros sempre para a frente e nunca para trás. E se um comum mortal abrisse um relógio de pulso para tocar nos seus frágeis mecanismos era quase um sacrilégio. Mas será que somos assim tão ciosos do bom funcionamento do nosso relógio biológico? Se já fez diretas, ou se fica agarrado a um ecrã até à hora de ir para a cama a resposta é: não.
Todos os organismos têm um relógio biológico que evoluiu de forma a sincronizar-se com o ciclo da Terra, daí que o chamado ritmo circadiano tenha cerca de 24 horas, tal como o nosso dia. E é o ciclo de dia e noite, a presença de luz e a falta dela, o principal estimulador e controlador do nosso relógio interno. Mas não é o único. E mesmo que não houvesse luz de manhã não se preocupe que não dormiria eternamente, o seu relógio biológico, qual despertador interno, acabaria por acordá-lo.
Talvez seja uma daquelas pessoas que acorda para ir trabalhar mesmo sem despertador (ou pelo menos já terá ouvido falar disso). Se este não é o seu caso, o mais provável é que esteja a contrariar o seu relógio biológico, talvez precisasse de dormir mais um par de horas. Não, não é preguiça, o relógio biológico é diferente de pessoa para pessoa. Mais, o ritmo do relógio muda ao longo da vida: os bebés, por exemplo, levam vários meses até conseguirem sincronizar-se com o ciclo da Terra.
Angela Relógio defende mesmo que cada um deveria “ouvir” o seu relógio interno e adaptar as atividades ao longo do dia para que conseguisse ter uma maior produtividade. E lembra que o relógio biológico dos adolescentes é diferente do relógio dos adultos. Os adolescentes estão programados para acordar mais tarde e ir dormir mais tarde. Obrigar os alunos a acordarem todos os dias muito cedo faz com que eles se sintam toda a semana em jet lag.
Our biological clock helps to regulate sleep patterns, feeding behavior, hormone release and blood pressure #NobelPrize pic.twitter.com/NgL7761AFE
— The Nobel Prize (@NobelPrize) October 2, 2017
Acordar mais cedo do que o que o relógio biológico determina pode interferir com o bem-estar dos estudantes, mas as noitadas para estudar ou para se divertirem também não ajudam. O mal-estar geral do dia seguinte – até para quem não cometeu abusos – é o resultado de uma dessincronia dos relógios do organismo. É que não chega falar de um relógio biológico, os relógios internos existentes nos vários órgãos do corpo têm de estar todos no mesmo fuso horário para que se sinta pleno de vitalidade.
As mudanças de fuso horário, que provocam a sensação de jet lag, são outro dos momentos em que os nossos relógios internos ficam desalinhados. “Quando viajamos da Alemanha para Nova Iorque, a cabeça pode já estar em Nova Iorque, mas o estômago ainda estar nos Açores”, exemplifica Angela Relógio. Como a luz é o principal regulador do ritmo circadiano, o relógio central, localizado no hipotálamo (no cérebro), acerta os ponteiros rapidamente, mas demora ainda algum tempo a sincronizar todos os outros relógios do corpo.
A alimentação é outro dos estímulos que controla o relógio biológico. Se estiver a jantar às duas da manhã, o estômago e o fígado vão afinar o relógio para “hora de refeição” e não para “hora de dormir”. Pelo mesmo motivo, não deve fazer exercício físico antes de ir para cama: a atividade física é outro dos estímulos externos que controlam o ritmo circadiano.
E se ainda não percebe porque é que tem dificuldade em adormecer depois de ter passado a noite a trabalhar no computador, recapitulemos: a luz intensa dos ecrãs faz com que o relógio circadiano do cérebro acredite que ainda é de dia. Se quer descansar melhor, precisa de ir desligando os ecrãs e diminuindo a luz para que, à medida que o escuro aumenta, aumente também a produção de melatonina e o cansaço abra finalmente a porta ao João Pestana.