Assim que os jornalistas entraram na sala de audiências, Ricardo Salgado, sentado no banco dos arguidos, olhou para trás. À porta, um fotojornalista perguntava à funcionária judicial se podia obter uma autorização para fotografar. Mas as ordens do coletivo de juízes eram claras: nem imagens nem gravações. Era essa também a intenção do arguido que chegou ao edifício acompanhado dos advogados a partir do estacionamento, longe do olhar dos jornalistas e dos lesados do BES, que fizeram questão de estar à entrada do tribunal. Mesmo que em causa estivesse um processo da Operação Marquês.
As centenas de imagens captadas de um Ricardo Salgado, muitas vezes de óculos de sol, à porta de tribunais onde foi interrogado como arguido não se repetiram esta terça-feira no Campus da Justiça, em Lisboa. Dentro da sala de audiências do quinto piso estava um Ricardo Salgado visivelmente mais frágil, com dificuldades para se movimentar, mas aparentemente calmo.
Foi a primeira vez que Ricardo Salgado apareceu naquele que foi o seu primeiro julgamento e que teve agora a sua nona sessão, destinada às alegações finais. Um caso que foi separado do processo principal da Operação Marquês (ainda sem data de julgamento) e em que é acusado de três crimes de abuso de confiança.
Desde junho que a defesa de Salgado lembrava ao coletivo que a saúde de Salgado estava muito fragilizada, até apresentar mesmo um relatório médico que concluía que Ricardo Salgado sofria de Alzheimer. A ideia era suspender o julgamento, que os advogados do antigo presidente do BES garantem sair fora da sua atual perceção do mundo. Mas o tribunal decidiu prosseguir o caso.
Apesar de estar já a chegar ao fim do julgamento, perante a presença do arguido, o coletivo de juízes teve que identificá-lo. Na sala, fez-se silêncio, mas Ricardo Salgado respondeu pausadamente às perguntas sobre o seu nome, filiação e naturalidade. O juiz Francisco Henriques perguntou-lhe se iria prestar alguma declaração. Mas a resposta foi clara.
— “Eu não estou em condições de prestar declarações”, diz Ricardo Salgado
— “Porquê?”, pergunta o juiz Francisco Henriques
— “Foi-me atribuída uma doença de Alzheimer.”
Quando o procurador do Ministério Público, Vítor Pinto, se levantou para começar a falar, Salgado ainda o interrompeu para pedir que falasse mais alto. “A minha audição está muito má”, justificou. O juiz autorizou que se aproximasse mais e Ricardo Salgado manteve-se sentado numa cadeira, de olhos postos no magistrado.
MP defende que três transferências milionárias são ilegais
Vítor Pinto começou por lembrar os contornos dos três crimes de abuso de confiança de que o antigo homem-forte do BES foi acusado. Um pela transferência de 2.750.000 milhões de euros que saíram da ES Enterprises na Suíça — considerado o saco azul do BES —, numa conta titulada pela Green Emerald (controlada por Hélder Bataglia), para a conta do Credit Suisse, da Savoices (controlada por Salgado). Um segundo pela transferência de quatro milhões, em outubro de 2011, através da Enterprises para a Savoices e um terceiro crime pelas transferências de oito milhões da Enterprises para Henrique Granadeiro (que transferiu depois 4 milhões de euros para uma conta no banco Lombard Odier aberta em nome da offshore Begolino, que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher).
Para Vítor Pinto não restam dúvidas de que estas transferências aconteceram e que foram ilegais. E que até há documentos a tentar justificar estas transferências que parecem ter sido plantados, como chegou a sugerir o testemunho do inspetor tributário Paulo Silva, o homem que ajudou o Ministério Público a acusar os arguidos da Operação Marquês — e no qual Ricardo Salgado foi acusado de 21 crimes, para depois ser pronunciado por estes três.
“Os montantes em causa — entre os 2,75 milhões e os 4 milhões de euros — são quantias que a maior parte do portugueses não conseguirá auferir durante uma vida de trabalho”, lembrou o magistrado, sublinhando que Salgado tinha obrigações enquanto administrador do BES. Que não mostrou qualquer arrependimento e que até teve uma “persistência criminosa”.
Na vez da defesa, assegurada pelos advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squillace, a posição era de que não só não houve persistência, como não houve qualquer ilegalidade nestas transferências. Francisco Proença de Carvalho, praticamente ao lado de Salgado, lembrou que em relação às transferências dos 2.750 milhões de euros há aliás um documento apreendido a Bataglia que revela um acordo de empréstimo entre ele e Salgado para investimentos em Angola e na República do Congo. O documento foi assinado a 31 de outubto de 2015, ainda ambos não tinham sido constituídos arguidos.
Assim como um outro documento assinado a 20 de outubro de 2011 sobre as transferência de 4 milhões da Enterprises para a Savoices. Metade deste valor, lembrou a defesa, foi reembolsado em outubro de 2021, quando também Salgado não sabia que seria arguido.
Como vai ser o primeiro julgamento (a sério) de Ricardo Salgado?
Também em relação às transferências de Henrique Begolino, a defesa de Salgado não encontra qualquer ilegalidade lembrando que tinham mesmo uma “causa legítima”: “Dizem respeito ao pagamento do preço pela Enterprises pela aquisição a Henrique Granadeiro de ações representativas de 30% da sociedade portuguesa Margar—Sociedade Agro-Pecuária, S.A., que é proprietária da Herdade do Vale do Rico Homem e tem como atividade a exploração agrícola, silvícola e pecuária”.
“A prova da acusação são os três núcleos de transferências que aqui estão em causa e uma presunção criminal que teve apenas um ligeiro apoio em dois testemunhos”, disse. O advogado referia-se ao inspetor tributário Paulo Silva que disse não ter “qualquer conhecimento direto dos factos, não participou neles e é o grande responsável pela teoria fracassada da Operação Marques”. E ao primo “desavindo” de Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi, “a quem o Ministério Público recorre sempre que tem que acusar Salgado”.
Para Vítor Pinto, porém, a ilegalidade destas operações ficou mais que demonstrada no julgamento que começou já em julho, pelo que Salgado deve ser condenado a uma pena efetiva de seis anos por cada crime o que numa pena única daria os dez anos de prisão.
“Estou muito diminuído nas capacidades”, alega Ricardo Salgado em tribunal
Para a defesa, é “inaceitável” que um Ministério Público peça uma pena de prisão efetiva para um arguido de quase 77 anos com problemas de saúde. “Como advogado tenho um repto a fazer sobre uma pessoa que tem sido arrasada nos últimos oito anos tem direito a ser julgado pelos mesmo princípios humanistas que os outros arguidos”, apelou Francisco Proença de Carvalho que lembrou um caso semelhante em que um agruido com pouco mais de 50 anos viu a sua pena ser suspensa por sofrer de Alzheimer. O advogado lembrou o artigo da lei que prevê a suspensão da pena, mesmo que a decisão do tribubal seja a de condenar.
Quando o advogado de Ricardo Salgado terminou as alegações finais, o coletivo de juízes preparava-se para pôr fim à sessão quando Vítor Pinto pediu para voltar a falar. Num tom mais agressivo, o procurador pediu que o tribunal se mantivesse afastado “de algum dramatismo”. O fiasco é da acusação ou da não pronúncia? Só é brilhante a não pronúncia. Como é obvio, isto evidencia que há aqui uma certa dose de teatralização”.
Segundo o procurador, o Ministério Público não ignorou a doença de Salgado, “mas não aceita que esteja incapaz de perceber o julgamento”, disse. “Constatámos aqui hoje que conseguiu reproduzir todos os dados da sua filiação”, disse o procurador, admitindo que possa ainda estar numa fase inicial da doença. Uma intervenção que motivou novamente uma reação da defesa ao lembrar que a avaliação da doença “é científica” e que não é feita pelo “tato”.
O juiz voltou a perguntar a Salgado se não queria falar, lembrando que não seria prejudicado pelo silêncio: “Sinceramente, eu gostaria de poder dizer algo, mas estou muito diminuído nas minhas faculdades. A minha memória foi-se embora e peço desculpa por isso”. O magistrado ainda explicou que este é um direito que assiste a todos os arguidos e que ele não estava a ser tratado de forma diferente.
Ricardo Salgado já tentou suspender o processo por motivos de saúde e tentou também pagar à massa falida do GES o prejuízo causado, através do levantamento de património arrestado no mega-processo BES. Nenhum tribunal o deixou. Dia 7 de março, este coletivo de juízes vai anunciar a sua decisão.