O Banco Central Europeu (BCE) publica neste domingo, 26 de outubro, os resultados da Avaliação Completa que há mais de um ano está no centro das atenções no setor financeiro. É o culminar de um trabalho de mais de seis mil supervisores e auditores, com o BCE a trabalhar em conjunto com as autoridades nacionais, como o Banco de Portugal. E marca o momento em que o BCE assume a responsabilidade pela supervisão dos maiores bancos da zona euro. Para a maioria dos bancos cujos ativos foram vistos “à lupa” e cuja resistência será avaliada no teste de stress, será o fim de um tormento. Para quem chumbar no exame, será, em certa medida, o início. O que é comum a todos é que está prestes “a mudar tudo” na supervisão bancária europeia. Com o BCE como supervisor, um caso como o BES teria sido possível?
A agência Bloomberg noticiou na tarde de sexta-feira que um total de 25 bancos iria chumbar no exercício, de um total de 130 instituições. Isto significa que, quando se procura simular o impacto que teria para a robustez dos bancos europeus um conjunto de cenários de crise económica e financeira, estes bancos não conservam níveis de capitais próprios suficientes. Destes 25, porém, apenas 10 terão de apresentar planos de recapitalização nas próximas duas semanas, já que dezena e meia de instituições já terá tomado iniciativas de reforço de capital desde o início do ano.
O objetivo mínimo do exercício é um rácio “core Tier 1″ de 8% no cenário base e de 5,5% no cenário mais adverso. O que significa este rácio? O “core Tier 1″ mede a quantidade de capital da mais alta qualidade de que o banco dispõe face ao valor dos seus ativos ponderados pelo risco. Em termos mais simples, é a “almofada” de ativos plenamente líquidos – ou seja, que o banco pode vender rapidamente em caso de necessidade –, sobretudo ações e dívida, para suprir perdas com as atividades mais arriscadas do banco, como a concessão de alguns tipos de crédito e outros investimentos.
No cenário mais adverso, simula-se, por exemplo, que o produto interno bruto (PIB) na União Europeia desce 0,7% em 2014 e 1,5% em 2015, subindo apenas 0,1% em 2016, uma evolução muito mais negativa do que o “cenário base” previsto nesta fase pelas autoridades e pelos próprios bancos. É também simulado o impacto de uma taxa de desemprego mais elevada do que aquela que é atualmente prevista e também outros riscos como uma crise no mercado imobiliário.
No caso da banca portuguesa, o cenário adverso testado pelas autoridades prevê que o PIB desça 0,8% em 2014, 2,3% em 2015 e 1,1% em 2016. Ao mesmo tempo, é testado o impacto que teria um aumento (em simultâneo) dos juros da dívida soberana a 10 anos para mais de 7% ao longo dos próximos dois anos e uma subida da taxa de desemprego para 18,2% em 2015 e 17,3% em 2016.
Leia o Explicador que o Observador preparou na semana passada para compreender melhor o que está em causa nestes testes de stress.
Chumbar, sem chumbar?
O BCP convive há várias semanas com rumores e notas de “research” que o colocam no grupo dos bancos que chumba no exercício, o que se refletiu em volatilidade adicional das ações na bolsa de Lisboa. Na sexta-feira, o Jornal de Negócios adiantou que o BCP irá mesmo chumbar mas é uma das instituições financeiras que integra esse grupo de 15 que não necessitará de reforçar os rácios. Isto porque apesar de ficar sem o capital mínimo no cenário mais adverso, o banco já tomou medidas desde o início do ano.
É que a “fotografia” que o BCE tirou aos balanços dos bancos, que está a servir de base aos testes de stress, foi tirada a 31 de dezembro de 2013. Desde então, muitos bancos têm tomado várias iniciativas para reforçar os capitais próprios, como aumentos de capital e vendas de ativos. Já foi assim nas vésperas dos testes de stress de 2011, os últimos que foram feitos. Mas este ano isso está a acontecer de forma muito mais intensa, diz a consultora Linklaters, que calcula que os bancos emitiram 35% mais capital este ano do que nos meses anteriores aos testes de stress de 2011.
O BCP fez um aumento de capital de 2.242 milhões de euros, que serviu para devolver a “fatia de leão” da ajuda estatal. Alienou, também, a operação na Roménia e vendeu a unidade de gestão de ativos ao espanhol Grupo CMID, que detém a corretora Intermoney. O banco antecipou para este domingo a apresentação dos resultados relativos aos primeiros nove meses do ano, aproveitando também para fazer a sua “defesa” caso se confirme o chumbo. Estas operações poderão ser utilizadas pelo banco para tentar dar uma visão mais atualizada da situação de capital.
Também serão avaliados neste exame a Caixa Geral de Depósitos e o BPI, bancos em que os especialistas não antecipam dificuldades em passar no exame. A apresentação dos dados sobre o Novo Banco foi adiada, pelo que a instituição deixou de contar nas listas. A 10 de outubro, o BCE justificou a decisão de adiar a informação sobre esta instituição em particular: “como a instituição [Novo Banco] foi amplamente reestruturada, os constrangimentos de ‘timing‘ [calendário] não permitem que a ‘comprehensiveassessment‘ seja concluída para publicação a 26 de outubro”. Nem a EBA nem o BCE indicaram novas datas para a publicação da análise do Novo Banco.
Desde que o BCE começou a fazer este exercício, há cerca de um ano, os bancos da zona euro têm estado “em stress” para se certificarem que ficam o melhor possível na “fotografia”, sobretudo na componente da avaliação à qualidade dos ativos. Os técnicos do BCE passaram meses a analisar os balanços dos bancos, os ativos e respetivo risco e, claro, até que ponto esses riscos estão acautelados na forma de provisões. O BCE sempre sublinhou que queria um exercício rigoroso para que fosse credível aos olhos dos investidores. O que não aconteceu nos testes de stress (feitos pela Autoridade Bancária Europeia) em 2010 e 2011. Vários bancos faliram poucos meses depois de receberem “nota positiva” nos testes de stress. Desta vez, a parada é bem mais elevada.
O que vai mudar na banca da zona euro?
A Avaliação Completa do BCE, que inclui a avaliação à qualidade dos ativos e o teste de stress, marca a passagem da supervisão dos maiores bancos da zona euro para as mãos do Mecanismo Único de Supervisão, um organismo da responsabilidade da instituição liderada por Mario Draghi. A supervisão única é uma das principais “armas institucionais” com as quais o BCE pretende combater a crise na zona euro e atenuar a divergência que persiste entre os vários países, no que diz respeito ao crescimento e aos custos de financiamento empresarial. No final, isso poderá resultar num desejável aumento da taxa de inflação, o que significaria que o BCE estaria mais próximo de cumprir o seu mandato.
A supervisão nas mãos do BCE “vai mudar tudo” na banca da zona euro, diz ao Observador Nicolas Véron, economista francês e co-fundador do instituto de pesquisa Bruegel, em Bruxelas. “Vai haver uma supervisão mais rigorosa, comparativamente com alguns dos atuais bancos centrais”, nota o especialista, acrescentando que “será uma supervisão mais europeia e menos nacional, o que levará a uma maior disciplina no mercado”.
A expectativa em torno dos testes de stress de 2014 é maior devido ao facto de serem um passo crucial para que o BCE assuma o papel de principal supervisor da banca europeia, o que acontece no início de novembro. A credibilidade é um fator crucial não só pelas implicações para a reputação do BCE no momento em que assume as novas responsabilidades, mas, também, porque a instituição tem a expectativa de que um exercício credível e transparente aumentará a confiança entre os bancos e estimulará a concessão de crédito na zona euro. Por essa via, os testes de stress podem ser uma ferramenta para dinamizar o crescimento económico e amenizar os receios relacionados com a inflação baixa ou, mesmo, o risco de deflação.
Christian Schulz, economista do Berenberg Bank em Londres, explica que “os bancos vão passar a ser supervisionados de forma uniforme em toda a união bancária”. “Isso poderá significar mudanças na frequência das avaliações, na dimensão das equipas de supervisão e até o enfoque da supervisão”, diz o economista. Além disso, “o BCE vai poder usar o que aprendeu com os bancos num país e usar esse conhecimento em outro” e haverá uma “maior sensibilidade dos efeitos de cadeia, ou seja, das repercussões que os problemas num banco podem ter nos outros”, diz Christian Schulz, ao Observador.
Os supervisores têm sublinhado que “mais do que ser um exercício de passar ou chumbar, o objetivo do teste de stress é apoiar a monitorização e reparação contínua dos balanços dos bancos da União Europeia”. E, neste âmbito, “o trabalho de antecipação que alguns bancos já realizaram antes do teste de stress já é, em si, um resultado positivo”, disse a Autoridade Bancária Europeia, numa referência aos aumentos de capital que muitos bancos europeus realizaram nos últimos meses.
Com o BCE como supervisor, um colapso como o do BES teria sido possível?
Nicolas Véron, do Bruegel, acrescenta que “a supervisão será mais focada na estabilidade geral do sistema financeiro e menos nas questões políticas, que em alguns casos foram influentes quando se fala em resgates a bancos que existiram em alguns países”. Além disso, assinala o especialista, “a supervisão única poderá também contribuir para aumentar as fusões e aquisições entre bancos da zona euro”.
E se o supervisor único já existisse há vários anos, os problemas no Banco Espírito Santo poderiam ter-se avolumado da mesma forma? “Nunca saberemos”, diz Nicolas Véron. “Apesar de ser membro da troika, o BCE não era responsável pela supervisão”, assinala o francês. Mas, sem querer referir-se ao caso específico do BES, o especialista diz que “se a supervisão já fosse comum há vários anos, é possível que num caso como esse pudesse ter havido uma atuação diferente, quer por parte do supervisor como pelo próprio grupo“.
Os resultados saem às 11h00, hora de Lisboa, de domingo. Está prevista para as 11h30 uma conferência de imprensa em Frankfurt, com Vítor Constâncio e Danièle Nouy, presidente do Mecanismo Único de Supervisão. Os bancos que, quando sujeitos aos cenários testados pela EBA e pelo BCE, não corresponderem aos rácios mínimos terão, num máximo de “duas semanas após a divulgação dos resultados, de entregar planos de capitalização a indicar detalhadamente como as insuficiências serão cobertas nos seis a nove meses subsequentes”, diz o BCE. Nove meses se a insuficiência for detetada com a sujeição do banco ao cenário adverso e seis meses caso o banco tenha sentido dificuldades perante o cenário base testado no exercício.
Havendo chumbos, “as autoridades competentes nacionais e, no caso dos bancos da zona euro, o BCE, são responsáveis por assegurar a qualidade e, portanto, de validar os resultados dos bancos”. Isto para, “no final, determinar e promover qualquer decisão de supervisão necessária”. Na prática, os bancos terão de apresentar um plano de recapitalização que pode incluir a venda de ativos ou aumentos de capital junto de investidores privados. A menos, é claro, que consigam provar que o resultado dos testes já não corresponde a um quadro atualizado dos ativos que têm neste momento.