A história é conhecida. Ainda nos anos 50, António Alçada Baptista, advogado feito escritor, comprou a editora Moraes. Pouco depois, acoplada à editora, surgiu a revista. O Tempo e o Modo era dirigido por Alçada e tinha como colaboradores principais aqueles que ficaram conhecidos como os “católicos progressistas” da década de 60: Bénard da Costa, Nuno Bragança, Pedro Tamen, entre outros. O grupo vinha, fundamentalmente, da JUC, a Juventude Universitária Católica, e entusiasmou-se quando João XXIII anunciou que viria aí o Concílio Vaticano II. A ideia de um concílio que “modernizasse” a Igreja, que sobrepusesse as preocupações sociais às práticas litúrgicas, que assumisse o diálogo com os não-crentes como uma das prioridades animava estes jovens, formados na leitura da revista Esprit, de Mounier, e dos livros tardios de Maritain ou Bernanos, escritores católicos vindos da Action Française e convertidos à democracia.
A revista, encavalitada neste espírito, ia convidando os rostos do socialismo para colaborarem (Mário Soares e Jorge Sampaio estão nos primeiros números), criava uma coleção de livros, chamada também “O Tempo e o Modo”, que publicava Simone Weil, Chesterton ou Mounier, e foi sobrevivendo como uma espécie de terceira via intelectual, longe dos ultras do Tempo Presente (revista surgida no final dos anos 50, com Fernando Guedes e José Maria Alves) e dos comunistas da Vértice (fundada em Coimbra em 1942), até ser completamente dominada pelo marxismo.
Para a História fica a ideia de que a revista representaria, com os acontecimentos da capela do Rato (em 1973), a carta do bispo do Porto ou a ida de Paulo VI apenas a Fátima, um dos grandes sinais do enfraquecimento da base de apoio do regime. Ficam também os autores: Bénard da Costa tornou-se o grande crítico português de cinema e o mentor da Cinemateca; Vasco Pulido Valente, que assinava sobretudo o “noticiário crítico”, mas também chegou a publicar textos cândidos sobre a relação entre “crentes e não-crentes”, nunca mais saiu dos jornais; Nuno Bragança ganhou crédito como romancista; António-Pedro Vasconcelos, que também colaborou bastante com a revista, ganhou fama como cineasta; e a revista ficou, assim, como uma espécie de incubadora das personalidades intelectuais que dominariam a segunda metade do século XX.
É verdade que a galeria de retratos impressiona. Houve Eduardo Lourenço, Almeida Faria, M. S. Lourenço, Agustina, escrevia-se sobre música, cinema, literatura e vários daqueles que escreveram tornaram-se autoridades no assunto. Se a isso juntarmos que a maior parte dos autores teve na revista o primeiro ou um dos primeiros palcos, percebe-se que a valorizassem e olhassem para ela como um marco.
Não significa isto, no entanto, que a revista tenha sido tão importante como parece. Que os autores a valorizassem, percebe-se. Será certamente um marco na história individual de cada um deles e parece ter-se vivido junto à Moraes um daqueles ambientes de camaradagem e de uma certa inocência idealista que são bons de recordar; que a revista tenha importância histórica no sentido coletivo da palavra, no entanto, não é tão líquido assim. Ou melhor, boa parte da sua importância coletiva nasce depois dela. Não é que, anos depois do desmoronamento de O Tempo e o Modo, se tenha descoberto subitamente o interesse dos textos ou a influência parda na destruição do regime; aquilo que acontece é que, no pós 25 de Abril, quando os políticos do centro-esquerda democrático procuravam apoio intelectual e artístico para contrariar a máquina cultural comunista, o grupo de O Tempo e o Modo era aquilo que de mais apresentável havia.
Tinham sido opositores ao Estado Novo, sim, embora a maior parte deles opositores inconsequentes: a democracia advogada e os bons sentimentos católicos podiam entrar sem escândalo nas casas burguesas, capazes de assinar a revista. Tinham preocupações artísticas e sociais, os seus heróis não eram demasiado chocantes (nem sequer, na maior parte dos casos, demasiado importantes) para a mentalidade de esquerda que se impunha, pelo que a dimensão do empreendimento foi ganhando com a distância. Tal como a capela do Rato, permitia ao regime recém-instalado construir uma ponte para a Igreja, explicar que esta não estivera sempre com Salazar e, com isso, evitar indispor uma parte importante da sociedade. A democracia nascente não estava contra a Igreja – que se vissem os correligionários de O Tempo e o Modo – e tinha os seus intelectuais.
A democracia de O Tempo e o Modo podia ser suficientemente vaga e teórica para poder ser enquadrada no edifício da face mais branda do Estado Novo e os escritores louvados poderiam não ser muito diferentes daquilo que representaria uma última vaga de escritores mais ou menos integrados na vida cultural do regime. Agustina não estaria tão longe de David Mourão-Ferreira ou de Vitorino Nemésio, os escritores que melhor transitaram de um regime para o outro; o personalismo de Alçada poderia ser enquadrado na vida municipal que José Hermano Saraiva procurou fazer sobressair da história de Portugal, numa tentativa de conciliar Estado Novo e vida democrática.
Filosoficamente, O Tempo e o Modo trazia uma série de platitudes e boas intenções que não a tornavam muito consequente mas que, também por isso, permitiam resgatar colaboradores de vários quadrantes. Que os colaboradores tenham amadurecido e construído carreiras sólidas e consistentes não impede que o alcance político da revista se tenha construído a posteriori – aliás, ajuda a que isso aconteça. O espírito político de O Tempo e o Modo é fácil de perceber. Não advém de uma grande revolução teológica, de uma doutrina política muito sólida ou sequer de preceitos estéticos muito fundamentados; é sobretudo o reflexo de um grupo, daquela mundividência que se fascinou com Camus e com Paulo VI, com a Europa de Monnet e com um socialismo não muito esquemático, que não queria perder a fé mas tinha pavor de mantê-la e perder com isso a vanguarda social. Quase todos, “vencidos do catolicismo”, acabaram por perder ambos, a fé e o posto na vanguarda; tudo isto, porém, como parece acontecer com tudo o que diz respeito a O Tempo e o Modo, anda à volta da revista.
Esta poderia ter pouca ou muita influência política e isso nada dizer sobre a revista. O que é que nela se escrevia? Os artigos? São bons, vale a pena lê-los ainda hoje? Como era a revista, uma coleção de ensaios desfasados, uma completa revista do mundo contemporâneo, um bom instrumento de análise?
Aquilo que salta à vista de uma leitura completa das duas séries é, sobretudo, uma enorme boa-vontade a que se junta um gritante desfasamento entre as intenções e a prática. O Tempo e o Modo é uma revista bem pensada: tem um inquérito interessante sobre o romance, tentativas de classificar os melhores filmes de um ou outro ano, o desejo de cobrir os grandes acontecimentos internacionais, de dar cartas na filosofia, no cinema, no teatro, na literatura… Há colaborações bem capazes: quando Vieira de Almeida morre, M. S. Lourenço escreve um ensaio excelente sobre o seu trabalho, Nuno Bragança escreve um bom ensaio sobre Camus mas, além de vários textos completamente datados, impressiona a candura e o amadorismo de outros.
Bénard da Costa a escrever sobre “O Leopardo” antes de ver o filme, críticos improvisados sem o menor domínio sobre as linguagens do cinema ou da literatura e colaborações em que é visível o fosso entre aquilo que é pedido e aquilo que é publicado. Respostas monossilábicas a questionários, textos com longas divagações ou de um âmbito exclusivamente académico, enfim. Não há que duvidar da importância de O Tempo e o Modo para a história e para a literatura do país, mesmo que a sua história seja mais a história dos seus protagonistas do que a sua. Não deixa de ser triste, no entanto, e revelador de uma certa pobreza cultural, que O Tempo e o Modo seja uma revista importante para a história do país.