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Oleg, o compositor raro que não foi ao próprio funeral

Conhecido como “compositor louco”, Oleg Karavaichuk era o único que podia tocar no piano de Nicolau II. A história do pianista é contada no filme "Oleg y las Raras Artes". Falámos com o realizador.

De cabelo desalinhado, boina e camisola de gola alta: o guarda-roupa é sempre o mesmo, seja verão ou inverno. Figura esguia, aparentemente frágil, transforma-se ao piano. Os braços e mãos ganham vida própria, numa espécie de transe artístico. Fala sobre a música clássica (que deve morrer), sobre a bondade de Estaline ou a beleza das árvores. Andrés Duque quis fazer um filme sobre a arte e a poesia ao captar Oleg Karavaichuk – nascido em São Petersburgo compôs para centenas de filmes, porque era o único suporte onde a censura não atuava. Um orgulhoso excêntrico mas autêntico ermita, deixou-se filmar em 2015 e morreu em Junho de 2016, pouco depois da estreia. Andrés acabou a embebedar-se no seu funeral. O realizador, fiel à tradição experimental, é obcecado por gente diferente – e pela loucura.

“Oleg y las Raras Artes” (que pode ser traduzido para algo como “Oleg e as estranhas artes”) estreia-se esta quinta feira no Cinema Ideal, em Lisboa, e conta com a presença do realizador para uma conversa. O filme está em cartaz por uma semana, depois de ter aberto o Doc Lisboa de 2016. Antes da estreia, entrevistámos o cineasta.

Como é que um venezuelano, a viver em Espanha, se fascina pelo trabalho de um compositor russo?
Já tinha ouvido música de Karavaichuk mas não sabia quem era a pessoa, o autor. Ele fez a banda sonora de um filme, “Los Largos Adioses” de Kira Murátova, uma cineasta ucraniana de que gosto muito. Depois um dia conheci uma amiga russa que me falou sobre ele e comecei a interessar-me pela sua excentricidade. Havia algo que tinha muito a ver com os meus filmes e as pessoas que costumo retratar.

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Tentou contactá-lo?
Fui à Rússia para tentar conhecê-lo. Sabia que ia ser difícil. Karavaichuk era um ermita, que odiava as pessoas, não era de trato nada fácil. Eu tinha uma ajuda, que era o apoio do Museu Estatal de Arte Contemporânea de Moscovo, mas aconteceu tudo um bocado por magia.

Como assim?
Ele sabia que eu estava lá para tentar conhecê-lo mas não me queria ver. Então um amigo que tínhamos em comum preparou uma cilada. Disse-me “Andrés, espera-me neste sítio e eu vou passar lá com ele.” E, casualmente, eu estava vestido de azul e o meu intérprete também e o próprio Oleg também estava de azul. E sem saber quem éramos aproximou-se para nos falar, disse para o Boris Alexseev [esse amigo em comum]: “Olha, uma coincidência cromática.” A partir daí começámos a ter uma série de conversas e eu comecei a ir a São Petersburgo. Percebi que história queria contar sobre ele: a sua maneira de associar ideias, a gestualidade. Ele tinha algo muito cinematográfico.

Oleg colaborava?
Certo dia disse-me: “Olha Andrés, tu és um cineasta da improvisação, eu sou um músico da improvisação e este filme devia ser sobre a improvisação”. Mas improvisar não é só ligar a câmara e logo percebi que tinha de haver uma estratégia. Tinha de tirá-lo da sua amargura, porque era uma pessoa que carregava muita tristeza, raiva. Normalmente estava de mau humor. Eu tinha de tirá-lo daí e levá-lo a um sítio onde ele estivesse feliz e inspirado. Foi um pouco como criar jogos para uma criança.

Foi um processo demorado?
A primeira visita à Rússia aconteceu em 2013 e gravámos no Verão de 2015. A ajuda do Boris foi fundamental – era a única pessoa que alguma vez tinha gravado a música dele [e que gravou o som do filme]. Ele ensinou-me a lidar com Karavaichuk. Foram oito dias de rodagem ao todo. Houve dias que não serviram para nada. Um dia disse-me: “Hoje não posso gravar porque bebi mercúrio”.

"Uma vez fomos ao Hermitage e começou a tocar as paredes, que eram de mármore. Dizia que tinham música e que, como ele tinha as unhas compridas, funcionavam como antenas e podia captar os sons. E começava a cantar. Imagina-o na sala de esculturas gregas a tirar música desses corpos perfeitos. Era maravilhoso de ver."

Qual foi a reação quando explicou que o queria filmar?
Ele nunca esteve contra, mas dizia-me que tinha de acontecer alguma coisa importante para o fazermos. E basicamente consistiu em trabalhar uma amizade. Funcionávamos muito bem quando eu me convertia numa criança também: às vezes dizia-lhe que íamos comprar pavões para a sua casa. Parecia-me maravilhoso que um senhor de 89 anos gostasse destas brincadeiras. Era criar jogos até surgir o momento para poder gravar. E houve tantos momentos que não pude filmar… entristece-me.

Como por exemplo?
Uma vez fomos ao Hermitage e começou a tocar as paredes, que eram de mármore. Dizia que tinham música e que, como ele tinha as unhas compridas, funcionavam como antenas e podia captar os sons. E começava a cantar. Imagina-o na sala de esculturas gregas a tirar música desses corpos perfeitos. Era maravilhoso de ver. Há momentos de transe, semelhantes que estão no filme. Ele dizia que não era nada de magia, nem xamanismo, mas pura física.

O realizador Andrés Duque

Oleg gostou do filme?
Estreámos em Roterdão em finais de Fevereiro de 2016. Eu convidei-o a Espanha ao festival Punto de Vista e foi a primeira vez que ele viu o filme, emocionou-se muito. Esteve a rir-se o tempo todo porque viu a cumplicidade entre nós. E no final disse: “Andrés, parabéns. Fizeste um filme muito frágil, muito travesso, tens de estar orgulhoso”. Depois fizemos uma estreia em Moscovo e foi a ultima vez que tocou ao piano e tocou a marcha fúnebre [risos]. Era a sua maneira de ser. Posso contar tantas coisas engraçadas. Quando morreu, no dia do funeral, não apareceu – e isto foi notícia, “Oleg, o compositor que cancelava os concertos, cancelou o seu próprio funeral”. É que como não tinha família, não o puderam tirar da morgue e o Ministério da Cultura já interveio tarde, enfim, tudo se atrasou e celebrou-se o funeral sem ele. Foi assim um gesto artístico magistral.

Foi difícil para si enfrentar a sua morte?
Foram-me avisando que ele estava doente, com pneumonia, e até já tinha um braço paralisado. Houve um dia que melhorou e no dia seguinte morreu. Uns dias depois fui ao funeral que foi no meu dia de anos. A cultura russa tem uma maneira muito diferente de celebrar os funerais, claro que há tristeza e acompanha-se o corpo mas depois os amigos celebram e recordam da melhor maneira. E foi muito bonito, acabámos bêbedos e a recordar todos os seus disparates.

“Isto é um poema” diz Oleg depois de tocar. Os seus filmes também são um pouco poemas: sem estrutura rígida, ao sabor das emoções.
Sim. É verdade. E sempre que faço retratos é sobre estas pessoas marginalizadas. Apaixono-me. Fiz um retrato de um cineasta basco, o Ivan Zulueta, que foi muito difícil. Ele esteve fechado 20 anos em casa sem sair e eu pude entrar. E também fiz uma curta, que se chama “Paralelo 10”, sobre uma filipina que fazia um ritual estranho numa esquina em Barcelona e também era uma pessoa complicada. Já vou conhecendo as estratégias para conseguir chegar a estes personagens.

Ivan foi difícil de convencer a ser gravado?
Muito difícil. Ele esteve muitos anos agarrado à heroína – e, aliás, nunca a deixou, esteve sempre a receber tratamento de metadona. Era uma pessoa instável, no geral.

Disse-lhe que não queria entrevistas?
Fui a San Sebastian de propósito para o entrevistar e todos os dias me dizia “hoje não posso.” Às tantas lá me disse para ir ter a casa dele mas depois não me abria a porta. Num momento de raiva, saltei o muro. E ele abre uma janela e grita “espera que já desço”. Sou a única pessoa, além da sua melhor amiga, que entrou na sua casa. Ivan era também como uma criança, uma pessoa de 60 anos que colecionava cromos da Disney, adorava ilustrações e desenhos, eram a sua fonte de inspiração. Fiz o filme sem guião nem nenhuma preparação. Gosto de fazer os projetos de forma um pouco selvagem, sem saber onde me vão levar.

Regressando a “Oleg y las Raras Artes”. Teve de ter a ajuda de um tradutor. Isto não dificultou, de alguma forma, a relação com Oleg?
Só a princípio é que foi complicado, tive uns oito tradutores diferentes. Ele não gostava de nenhum tradutor ou os tradutores não gostavam dele. Às vezes parecia que funcionava, mas eles chegavam ao final do dia e diziam “olha isto não dá para mim, é muito forte”. E um dia conheci um miúdo jovem, o Alexey, que entendeu tudo perfeitamente, “isto é como traduzir Ulisses de Joyce”, disse ele. E quando Oleg o conheceu deram-se super bem. Entendia a cabeça de Oleg e ficava fascinado com as palavras que ele usava. E às tantas aconteceu uma coisa estranha: comecei a entender russo e a entender perfeitamente as histórias, o que dizia. E agora estou a estudar russo.

Qual foi a sensação de estar no palácio e filmá-lo a tocar no piano do czar Nicolau II?
Tira-te da realidade, do presente. Era como ter a historia da Rússia diante de mim. Eu tentei tirar o máximo desses momentos. Mas Oleg não é a melhor pessoa para contar a história do país, ele diz coisas muito subjetivas – muitas vezes não tem razão ou diz coisas que são simplesmente mentira. Houve espectadores que me perguntaram como é que ele podia elogiar Estaline – isto vindo de alguém que foi perseguido pelo ditador. Isso leva-nos a pensar quem é ele, gera esse mistério. Isso é importante, que o espectador faça perguntas, que entre no jogo.

"Um músico perguntou-me um dia porque queria fazer um filme com Oleg, “esse senhor é um palhaço”, disse. Perguntei-lhe porque é que lhe parecia uma má escolha. E ele disse “pois porque não sei se é homem ou mulher”. “Na Rússia é um problema se não sabes se és homem ou mulher”, acrescentou.

A história torna-se ainda mais estranha quando se recorda que este compositor não só foi perseguido e censurado por Estaline mas também protegido por ele, quando era criança. É contraditório.
A Rússia é a terra das contradições. Ele fala tanto de Estaline como de Catarina, a Grande, que também era uma pessoa malvada. Acho que para ele falar destes personagens, era colocar-se entre as pessoas que mudaram o país. E eu nunca o questionei. É como quando ouves as histórias do teu avozinho: estás hipnotizado e não questionas. Enfim, o filme não é feito de precisões históricas mas sim de entrar no mundo poético do artista.

Nas conversas que tiveram, ele falou-lhe do seu passado, da infância, da relação com o regime político?
Não. Era um discurso de muita divagação e também nunca sabia o que era verdade. Mas entrevistei muitas pessoas – coisa que não coloquei no filme mas que ofereci à Fundação Karavaichuk. Contaram-me coisas engraçadas. Por exemplo, de quando num verão Estaline convida jovens músicos à sua casa de campo, entre eles estava Karavaichuk. De manhã, quando Estaline se sentava a tomar o pequeno-almoço, fazia-se o jogo de pegar num lápis e tocar num copo com água para adivinhar a nota. E ele toca e diz “isto é um dó” mas depois arrepende-se e corrige. E Karavaichuk levanta-se, com os seus 7 anos, e diz “camarada Estaline tinha razão, era um dó, só se equivocou noutra coisa”. Silêncio absoluto. “Enganou-se ao enviar o meu pai para trabalhos forçados”. E então, o pai que estava desaparecido, algures na Sibéria, reaparece. Se estas histórias são verdadeiras ou não é algo que ele levou para o caixão. Nunca quis falar sobre a sua vida pessoal… nada. Quando Oleg morreu e estreei o filme em Espanha contactou-me uma russa em Madrid que me confessou que foi namorada de Karavaichuk.

Ficou admirado?
Não podia acreditar. Contou-me que era uma relação platónica – ele gostava das mulheres com cara de miúdas e de dar-lhes flores e poemas, levá-las a concertos. Dizia-se que era homossexual e há pessoas que têm histórias a esse respeito. Isto faz-me lembrar de como cheguei ao título do filme: um músico perguntou-me um dia porque queria fazer um filme com Oleg, “esse senhor é um palhaço”, disse. Perguntei-lhe porque é que lhe parecia uma má escolha. E ele disse “pois porque não sei se é homem ou mulher”. Disse que isso era estranho [“raro” em espanhol]. “Na Rússia é um problema se não sabes se és homem ou mulher”, acrescentou. Por isso dei esse nome ao filme. Queria provar que “raro” também é bonito.

Na Rússia era conhecido como “compositor louco.”
É verdade. Mas era o que ele mais gostava, de não encaixar em rótulos. E alegra-me que exista gente assim no mundo. Gente desta não está louca. Está a fazer o mais são, a sublimar a vida através da arte.

O Andrés nasceu na Venezuela mas estudou cinema em Barcelona. Soube desde cedo o que queria fazer?
Sempre gostei do cinema experimental. Comecei muito jovem, tinha uma câmara de vídeo e andava sempre com ela, fazia coisas abstratas. Mais tarde comecei a trabalhar como jornalista para a HBO e enviaram-me como correspondente a festivais de cinema. Conheci pessoas, a indústria e a desencantei-me – serviu para me reafirmar como realizador independente. Deixei este trabalho e fui para Barcelona em 2000, onde fiz o mestrado em documentário e foi a partir daí que comecei a fazer filmes e a mostrá-los.

Sempre soube que queria sair do país natal.
A Venezuela não me dava nada, lá não me sentia criativo, estava enjoado com toda a situação política. Fui muito jovem com vontade de não voltar. A minha família está em Barcelona e a minha criatividade também – e agora estou a encontrar uma criatividade nova na Rússia.

O próximo filme será rodado lá?
Vamos ver. Há uma região que gosto muito que se chama Carélia, estou interessado na comunidade de Kalevala. Os habitantes são uma mistura entre finlandeses e russos e conectados com uma loucura que me fascina. Estou a fazer investigação e vou falar com as pessoas.

Porque lhe interessam estas personagens excêntricas?
Porque a loucura sempre esteve presente na minha vida. Tive de lidar com casos de loucura de pessoas próximas e é preciso perder o medo – se o perdes podes encontrar a beleza.

O gosto pelo cinema começou cedo – no cineclube, a ver filmes que não eram para a sua idade.
Sim. Via filmes de Krzysztof Zanussi, Wajda, Zulawski, do cinema polaco ao francês, asiático, russo. E isto aos 8 anos. O vício só foi crescendo. Em 1990 comprei a minha câmara e comecei a gravar sem parar. Dava cabo das câmaras de tanto as usar. Com “Ivan Z” o meu cinema chegou às pessoas, começaram a pedir-me para participar em festivais. Mas nunca me interessei em comercializar os filmes, sobrevivo a dar aulas.

Sobre essa infância no cineclube: como é que conseguia ver os filmes para maiores de idade?
Saía sempre cinco minutos antes do filme terminar para evitar conflitos. E logo pedi ao meu pai que me apresentasse ao projecionista e ele ficou fascinado com um miúdo que gostava dos filmes que ele programava com tanto carinho. Até me ofereceu o anuário dos filmes que ele projetava com todas as fichas técnicas, que se tornou a minha bíblia. Era ele que me deixava entrar na sala.

A paixão pelo cinema nasceu em família?
Os meus pais não eram propriamente cinéfilos. Tudo surgiu da casualidade de haver um cineclube no sítio onde trabalhava o meu pai. Ele era jornalista e diretor de uma revista cultural e a minha mãe pintora. Eles queriam que eu fosse músico, violinista. Mas o mundo do conservatório parecia-me muito estranho, era competitivo e eu nunca gostei da competitividade. O Oleg também odiava os conservatórios. Disse-me um dia uma coisa muito bonita: “Andrés, quero fazer um concurso de música mas sem prémios”.

É um pouco como o seu cinema: filma sem esperar retorno.
Sim. Mas o estranho é que isto seja estranho. Muitas vezes já me disseram “porque é que não fazes coisas mais profissionais, comporta-te como um adulto”, e eu digo que não quero. Não me interessa.

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