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A origem dos 75.800 euros em numerário descobertos a 7 de novembro de 2023 na residência oficial do primeiro-ministro está a ser investigada no âmbito dos autos da Operação Influencer. Ao contrário do que chegou a ser afirmado por vários defensores dos arguidos detidos em novembro, os factos relacionados com o dinheiro vivo encontrado no gabinete de Vítor Escária, então chefe de gabinete de António Costa, nunca foram separados do processo que corre no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), confirmou ao Observador o advogado Tiago Rodrigues Bastos .
Está em cima da mesa do Ministério Público e da Polícia Judiciária a hipótese teórica de os 75.800 euros apreendidos a Vítor Escária estarem relacionados com suspeitas de crimes de corrupção, tráfico de influência, fraude fiscal e também do crime de ocultação de património.
Este último ilícito criminal foi criado em 2022 por proposta da Associação Sindical de Juízes, pode ser imputado de forma cumulativa com outros ilícitos criminais (como corrupção, tráfico de influência ou fraude fiscal) e tem uma pena máxima até cinco anos de prisão. Está relacionado com as declarações de rendimentos e de património que todos os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos têm de submeter ao Tribunal Constitucional.
Vítor Escária vai declarar ao IRS os 75.800 euros apreendidos em dinheiro vivo em São Bento
Enquanto chefe de gabinete do então primeiro-ministro António Costa desde agosto de 2020, Vítor Escária estava obrigado a apresentar tal declaração com respeito pela verdade, sendo que a criminalização da ocultação do património entrou em vigor precisamente no dia em que se iniciou a legislatura que enquadrou o exercício de funções do último Governo de Costa.
O Observador consultou as declarações de rendimento de Escária no Tribunal Constitucional (TC) e não detetou qualquer atualização declarativa dos 75.800 euros apreendidos, tal como fez ao Fisco. O advogado Tiago Rodrigues Bastos diz que o seu cliente já questionou o TC sobre como deve fazer tal atualização mas ainda não obteve qualquer resposta. Essa missiva não faz parte do dossiê que o tribunal disponibiliza para consulta.
Ao que o Observador apurou, os investigadores estão a passar a pente fino a vida financeira e fiscal de Vítor Escária, assim como a de todos os arguidos e suspeitos nos autos da Operação Influencer, para tentar descobrir a origem do numerário escondido em envelopes encontrados no gabinete ocupado por Escária na residência oficial do então primeiro-ministro António Costa.
Explicações de advogado de Vítor Escária não convencem investigação
Ao que o Observador apurou, os investigadores não se contentam com as explicações públicas dadas pela defesa de Vítor Escária e têm sérias dúvidas sobre a coerência das mesmas. Em entrevista exclusiva ao Observador, o advogado Tiago Rodrigues Bastos revelou que o seu cliente iria declarar um montante total de cerca de 80 mil euros ao Fisco em sede de IRS, devido ao montante em causa.
Apesar de ter reafirmado que tais fundos em numerário provinham “da atividade profissional do dr. Vítor Escária anterior ao exercício do cargo de chefe de gabinete” — ou seja, antes de agosto de 2020 —, Tiago Rodrigues Bastos afirmou que Escária já tinha faturado tais serviços e retificado o IRS de 2022 no montante de 40 mil euros e que iria retificar o IRS de 2023, cuja campanha declarativa se iniciou neste mês de abril, em mais 40 mil euros. A declaração total de 80 mil euros significava assim que Escária já tinha gasto 4.200 euros face à quantia que lhe foi apreendida em numerário no seu gabinete em São Bento.
Do que se podia inferir que o montante dos rendimentos auferidos por Escária terão sido obtidos antes de agosto de 2020, mas só foram declarados em 2023 e em 2024, no âmbito do IRS de 2022 e do IRS de 2023.
Tiago Rodrigues Bastos: “Se não tivermos cuidado, acabaremos todos presos”
A origem de tais rendimentos foram justificados por Vítor Escária logo em novembro de 2023 junto do juiz de instrução criminal Nuno Dias Costa como serviços de consultadoria. A TVI/CNN Portugal avançou então que seriam serviços prestados em Angola. Confrontado pelo Observador com a eventual incongruência de os pagamentos em Angola serem feitos em dólares e a moeda apreendida no seu gabinete em S. Bento ter sido em euros, Rodrigues Bastos não quis esclarecer os pormenores dos serviços prestados por Escária.
Fiscalistas alertam para incongruências e dizem que problema de Escária não está resolvido
Tiago Rodrigues Bastos defendeu igualmente que a declaração desses rendimentos teria como consequência o desaparecimento do eventual crime de fraude fiscal. “É verdade que não há o cumprimento de todas as formalidades legais relativamente à parte auferida em 2022 — foi feita através de uma retificação do IRS referente a 2022”, mas “acho que não” se mantém o crime de fraude fiscal, afirmou o advogado.
Em entrevista ao programa “Justiça Cega” da Rádio Observador, o fiscalista Pedro Marinho Falcão explicou que a “circunstância de [Vítor Escária] dividir os 75.800 euros em dois exercícios fiscais é uma solução para evitar o crime de fraude fiscal e fazer com que o valor da alegada vantagem patrimonial fique abaixo dos 15.000 euros, fora da alçada do crime de fraude fiscal”.
A sua colega fiscalista Serena Neto corroborou a teoria, mas com um alerta importante. “Essa divisão em dois exercícios tem de ter aderência à realidade económica. Ou seja, que o serviço tenha sido contratado exatamente nesses anos, em duas tranches, e que haja um contrato subjacente”, explicou em termos abstratos a sócia do escritório Cuatrecasas.
Ao que o Observador apurou, os investigadores não se contentam com as explicações públicas da defesa de Vítor Escária e, por isso mesmo, a origem dos fundos apreendidos ao ex-chefe de gabinete de António Costa é uma das principais matérias sob escrutínio criminal do Ministério Público e da Polícia Judiciária.
Em termos de processo penal, não há qualquer espécie de inversão do ónus da prova. Isto é, não compete a Vítor Escária provar o que o seu advogado afirmou. Compete, sim, ao Ministério Público provar que as incoerências acima referidas têm relevância criminal e que eventualmente o numerário apreendido não provém dos tais serviços de consultadoria referidos por Escária, mas sim de uma eventual e alegada actividade criminosa.
Para tal, os três procuradores titulares da investigação necessitam de ter provas indiciárias que liguem os 75.800 euros ao pagamento de uma determinada contrapartida por uma determinada ação de Vítor Escária — o que poderia configurar um alegado crime de corrupção ou até mesmo reforçar o crime de tráfico de influência que é imputado a Escária nos autos da Operação Influencer.
Já o crime de fraude fiscal parece um caminho mais óbvio que pode ser seguido pelo MP e pela PJ. Isto porque o pagamento do imposto em falta, como já foi feito em relação ao IRS de 2022 e será feito em relação ao IRS de 2023, não apaga o crime de fraude fiscal. Este crime consuma-se com a não declaração dos alegados rendimentos quando os mesmos terão sido auferidos — antes de agosto de 2020, segundo a defesa de Vítor Escária.
Crime de ocultação de património é fasquia mínima. Escária já questionou o Constitucional sobre como deve proceder
O mesmo em relação ao crime de ocultação do património – que é um crime muito recente. Promovido pela Associação Sindical de Juízes, criado pela Lei n.º 4/2022 de 6 janeiro e integrado no regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, a denominação oficial do crime é a seguinte: Regime do Exercício de Funções Por Titulares de Cargos Políticos.
Enquanto chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vítor Escária estava obrigado a declarar os seus rendimentos e património (além de incompatibilidades e impedimentos) em três momentos:
- 60 dias após o início do exercício de funções — o que aconteceu no final de agosto de 2020;
- 60 dias após ter iniciado funções como chefe de gabinete de António Costa no seu último Governo, que tomou posse a 30 de março de 2022;
- E 60 dias após cessar funções, em que tinha de apresentar a declaração que refletisse a evolução patrimonial que tenha ocorrido durante o mesmo.
Ora, mesmo seguindo a tese da defesa — de que a origem dos 80 mil euros em numerário que diz ter ganho em serviços de consultadoria remontam a um período antes de ter tomado posse —, certo é que é o próprio Vítor Escária quem reconhece que nunca declarou ao Fisco os referidos rendimentos. Só assim se explica o facto de ter decidido retificar o IRS de 2022 e de ir declarar os remanescentes 40 mil euros no IRS de 2023.
Se assim é, Escária também nunca declarou a posse dos referidos 75.800 euros em numerário na declaração única que estava obrigado a apresentar no Tribunal Constitucional — e diversos juristas contactados pelo Observador garantem que estava obrigado a fazê-lo.
Ao não fazê-lo, poderá ter consumado a alegada prática do crime de ocultação de património, segundo vários penalistas ouvidos pelo Observador.
Este crime de ocultação de património tem características específicas. Em primeiro lugar, a simples desobediência por apresentar uma declaração incorreta pode ser punida com uma pena de prisão até 3 anos. Contudo, quem “omitir das declarações apresentadas, com a intenção de ocultar” determinados “elementos patrimoniais” como os seus “rendimentos brutos com a indicação da sua fonte” ou o “aumento dos rendimentos, do ativo patrimonial (…), bem como os factos que os originaram”, é “punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
Se existir uma imputação de um crime mais grave, como corrupção passiva (pena entre 1 a 8 anos), o crime de ocultação de património cede face a esse crime com “consequências punitivas mais graves”. Isto é, o arguido só pode ser acusado de corrupção passiva.
Por outro lado, trata-se de um crime cumulativo com outros ilícitos criminais, como a fraude fiscal simples — que criminaliza omissões com um prejuízo patrimonial entre os 15 mil euros e os 50 mil euros. Além de estarem em causa obrigações declarativas a entidades diferentes. Enquanto que as declarações fiscais são feitas à Autoridade Tributária, já as declarações únicas dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos são feitas ao Tribunal Constitucional.
O Observador questionou o advogado Tiago Rodrigues Bastos sobre se, tal como fez com o Fisco, Vítor Escária já retificou as suas declarações únicas de rendimento junto do Tribunal Constitucional. Rodrigues Bastos informou o Observador de que o seu cliente já questionou o TC sobre como deve fazer tal atualização mas ainda não obteve qualquer resposta.