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Os 99 dias que permitiram a Salvador nascer, apesar de a mãe estar em morte cerebral

Perante a morte cerebral da mãe, a decisão de manter a gravidez foi quase imediata. Durante mais de 3 meses, médicos, enfermeiros e familiares fizeram tudo o que puderam para que a criança nascesse.

Grávida de 18 semanas, Catarina Sequeira teve um ataque de asma agudo a 20 de dezembro do ano passado. Estava em casa e tinha o irmão gémeo com ela, de visita. Foi ele quem pediu ajuda quando a irmã começou a ter dificuldades em respirar e perdeu os sentidos. Levada para o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, estava em estado crítico. Apesar dos esforços do médicos, cedo se percebeu que pouco ou nada havia a fazer. O episódio de asma foi tão forte que a morte cerebral da jovem canoísta, de 26 anos, foi declarada seis dias depois.

O caso saltou para as notícias na última semana porque ficou a saber-se que, já no Hospital de São João, a criança estava prestes a nascer. Tinha sido mantida, viva e cuidada, no corpo da mãe, durante o tempo suficiente para isso, ainda que de forma prematura.

O parto estava agendado para esta sexta-feira. Complicações respiratórias de Catarina Sequeira obrigaram a antecipar esse plano num dia. Salvador nasceu esta quinta-feira, 28 de março, ele próprio com “dificuldades respiratórias significativas”, explicaram os médicos, mas “a evoluir favoravelmente”. Foi o culminar de 99 dias de cuidados clínicos, sempre com a presença da família, que garantiram que se repetisse, pela segunda vez em Portugal, um caso raro na medicina em todo o mundo.

A decisão de manter a gravidez

A questão colocou-se de imediato. Quando, no hospital da Gaia, feitos todos os exames de despiste — com estímulos a vários níveis — foi declarada a morte cerebral de Catarina Sequeira, era preciso decidir o que fazer, tendo em conta que, na altura, o bebé tinha já mais de quatro meses.

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Catarina Sequeira foi transportava para a urgência do Hospital de Gaia quando, na sequência de um ataque agudo de asma, perdeu os sentidos em casa

ESTELA SILVA/LUSA

Não foi, porém, um problema. Garantida a viabilidade médica de tentar prosseguir a gravidez e afastadas quaisquer questões éticas que o impedissem, havia um consenso entre todos no sentido de se avançar para o parto de Salvador. Nomeadamente, no que dizia respeito à posição do pai. Bruno, companheiro de Catarina há cinco anos, desejava a criança, que foi planeada. Além disso, outros fatores fundamentavam a convicção de que, se pudesse decidir sobre esta situação específica, a mãe tomaria a mesma decisão. Ao Observador, o médico Filipe Almeida, presidente da Comissão de Ética para a Saúde do Hospital de São João, lembrou que Catarina Sequeira nunca tinha recusado ser dadora de órgãos, como seria obrigatório que o tivesse feito, caso não quisesse doar os seus próprios órgãos no momento da sua morte. “Ser dadora não é apenas estar disponível para doar um fígado ou um coração ou um pulmão, mas também estar disponível para se dar a si mesma para que o filho possa viver, e ninguém tem legitimidade para interromper este processo de decisão da mãe, porque ela não o contraditou”, explicou.

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Isso não significa que, pelo caminho, não tivesse havido dúvidas. A avó da criança, mãe de Catarina, já o tinha assumido publicamente. Hercília Guimarães, diretora do serviço de Neonatologia, explica que isso é normal num caso como este. “Alguém podia dizer, como disse a avó, ‘não vale a pena, é melhor acabar e morrem os dois’”, contou a médica. As duas hipóteses, foram, por isso e naturalmente, ponderadas: avançar ou não avançar para o parto.

A questão não é consensual, mesmo no meio médico — sobretudo tendo em conta que são casos tão raros. As opiniões dos especialistas dividem-se entre o direito à vida da crianças, o direito do pai perante a gravidez e a falta de consentimento expresso da mãe, por exemplo. Neste caso, porém, apesar das dúvidas, num determinado momento, da avó, não havia muito para debater. Ela própria acabou por mudar de opinião e o processo decorreu de uma “forma muito tranquila”, segundo Filipe Almeida. Aos níveis médico, institucional e familiar, “não se levantou nenhum problema”.

“Ser dadora não é apenas estar disponível para doar um fígado ou um coração ou um pulmão, mas também estar disponível para se dar a si mesma para que o filho possa viver, e ninguém tem legitimidade para interromper este processo de decisão da mãe, porque ela não o contraditou”
Filipe Almeida, presidente da Comissão de Ética para a Saúde do Hospital de São João

E isso mesmo ao nível do hospital. Levada para a urgência de Gaia, foi ali que a morte de Catarina Sequeira foi declarada. A jovem foi, depois, mantida nos cuidado intensivos, para estabilização dos sinais vitais e para garantir a sua segurança e do bebé. E isto até ser possível transferi-la para o Hospital de São João, melhor preparado para acompanhar estes casos, o que aconteceu apenas mais de um mês depois, a 1 de fevereiro. O diretor clínico do São João, Carlos Lima Alves, explica que a jovem entrou “tecnicamente falecida” na unidade hospitalar. O desafio era manter o corpo vivo quando o cérebro já estava morto e garantir o suporte necessário para o parto. Sendo esse o objetivo, também o hospital fez uma ponderação a nível financeiro e de recursos empenhados. “Não ventilamos qualquer cadáver. É preciso perceber o que pode legitimar a intervenção no cadáver”, explicou Filipe Almeida, mesmo que a meio do processo fosse preciso interrompê-lo, se acontecesse algum problema com o feto. Essa legitimação estava feita: era preciso garantir que Salvador ficava, em segurança, o maior número de semanas possível no ventre da mãe, para garantir a sua sobrevivência.

Quase dois meses no São João até ao parto

Foi uma equipa médica multidisciplinar a que acompanhou Catarina Sequeira no Hospital de São João. Prova disso foi a presença de cinco especialistas na conferência de imprensa que se seguiu ao nascimento de Salvador. Teresa Honorato, diretora do Serviço de Medicina Interna, explica que estava em causa “um bem maior”, o “bem da vida e do bebé”, assim como assegurar a vontade família.

Este caso era, naturalmente, novo e diferente. Por isso, era necessário articular profissionais de várias valências para responder às características únicas da situação da mãe e do bebé. O hospital empenhou os cuidados intensivos para acompanhar a jovem e garantir que o corpo reunia todas as condições possíveis para um parto bem sucedido, como o seu equilíbrio e a funcionalidade dos órgãos. Paralelamente, os profissionais da obstetrícia procuraram garantir todos os cuidados na gestação e desenvolvimento do bebé. Nas últimas semanas, a comissão de ética também interveio. Depois entrou em ação o serviço de neonatologia.

“Um desafio”, disse Teresa Honrado, que, não escondendo que um internamento deste tipo tem problemas, assegurou que a equipa médica esteve à altura para conseguir manter o equilíbrio do corpo de Catarina Sequeira. Isso passou, por exemplo, pela alimentação da mãe — e, consequentemente, do bebé. A obstetra Marina Moucho explica que “tem que haver sempre muito cuidado”. Por exemplo, “os iões da alimentação têm de estar direitos” e todas as calorias eram contabilizadas. “É tudo muito programado para estar sempre tudo muito equilibrado”, acrescenta.

Catarina Sequeira foi transferida para o Hospital de São João, no Porto, a 1 de fevereiro (JOSÉ COELHO/LUSA)

JOSÉ COELHO/LUSA

Durante estas semanas, Catarina manteve-se “com os parâmetros normais”, em termos analíticos,  de acordo com a diretora do serviço de Neonatologia do São João. Pelo caminho, também não surgiu qualquer infeção e o bebé cresceu com um bom fluxo de sangue para a placenta. Claro que, para garantir a manutenção dos sinais vitais estáveis, a jovem também estava a ser medicada, mas sem prejudicar Salvador. “Os fármacos que a mãe fazia para estabilizá-la não atravessam a placenta”, explica Hercília Guimarães ao Observador. “Em princípio, não esperamos qualquer tipo de repercussão”, assegura. Dito por outras palavras, não há qualquer indicação, para já, de que Salvador possa ter alguma sequela por causa das condições raras e, de certa forma, mantidas de forma artificial que permitiram que ele nascesse.

O papel da família — e o apoio que também recebeu

Desengane-se, porém, quem acha que os cuidados médicos se fazem apenas com estetoscópios, diagnósticos, dosagens ou decisões clínicas. No caminho até ao nascimento de Salvador, também houve amor, carinho e emoção — mesmo através da barriga da mãe e num trabalho que, em parte, foi dividido com a família e os amigos de Catarina Sequeira.

Filipe Almeida, da Comissão de Ética do Hospital de São João, explica que “o pai é a referência central afetiva deste filho”, mesmo não menosprezando o papel determinante dos outros membros da família, como os avós ou os tios. “Esta criança não tem uma mãe, mas tem um pai, que assume agora a paternidade por inteiro”, conclui.

Bruno assumiu, desde logo, esse papel. Não só “acompanhou e participou em todo o processo ao longo dos 56 dias em que mãe esteve internada [no São João]”, revelou o diretor clínico do hospital, como tomava a dianteira em cuidados que também fazem diferença. Ia todos os dias ver Catarina e “fazia festinhas na barriga” ou falava com o bebé, porque é importante que o vínculo seja criado mesmo quando o bebé ainda está no útero da mãe.

A obstetra Marina Moucho, um dos elementos da equipa médica, conta ao Observador que, entre as condições que são criadas para dar a melhor resposta possível à gestação, o contacto com a família é fundamental. Naqueles dias, além de outras ferramentas, foram eles que puseram música a tocar para o bebé ouvir, ligaram a televisão, para que ouvisse vozes, e fizeram com que ouvisse os seus próprios sons, no momento da auscultação dos médicos. “Eles gostam de ouvir o próprio som”, explica.

O pai, Bruno, não só “acompanhou e participou em todo o processo ao longo dos 56 dias em que mãe esteve internada [no São João]", revelou o diretor clínico do hospital, como tomava a dianteira em cuidados que também fazem diferença. Ia todos os dias ver Catarina e “fazia festinhas na barriga” ou falava com o bebé.

Claro que o momento que estão a viver é muito difícil de gerir — até para os médicos e enfermeiros que os acompanham. Como apoiar uma família que se debate entre a tristeza profunda da perda de um dos seus e a alegria dos sucessos de um bebé, que se vai desenvolvendo na barriga de uma mãe em morte cerebral?

A família de Catarina e Salvador foi acompanhada de perto ao longo dos 56 dias que passaram no hospital de São João. Foram garantidas condições de acompanhamento psicológico e emocional, em particular, ao pai da criança, considerado, pelos médicos, a figura mais relevante a ter em conta.

Numa situação que não é fácil nem recorrente, como reconhecem os médicos, o hospital promovia reuniões semanais com a família para prestar auxílio e ajudar não só na parte clínica, bem como em reflexões e tomadas de decisões. Além do namorado Bruno, Catarina Sequeira teve sempre por perto o irmão gémeo, António, os outros irmãos e a mãe.

No futuro, o Hospital de São João garante que continuará atento e dispensará todo o apoio necessário, mas a equipa médica está confiante de que Bruno irá saber como agir e a quem recorrer dentro da sua rede familiar e social para dar ao filho as melhores condições possíveis.

O parto, um dia mais cedo que o previsto

Salvador nasceu às 4h30 da manhã desta quinta-feira, 28 de março, com 1 quilo e 700 gramas, 40 centímetros e muito cabelo. A cesariana correu bem e sem dificuldades. A assistir ao nascimento estavam Bruno, o pai, e António, o irmão gémeo da mãe. Não foi tudo simples: quando nasceu, Salvador tinha grandes dificuldades respiratórias e precisou de suporte ventilatório. Apesar disso, os médicos dizem que está a evoluir bem e que o peso com que nasceu é muito bom, tendo em conta o tempo reduzido de gestação.

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O parto estava agendado para sexta-feira, mas surgiram complicações no estado de saúde de Catarina Sequeira que nunca se tinham verificado até aqui, já que se tinha mantido sempre estável. Segundo a médica responsável pelos cuidados intensivos onde a jovem estava, tornou-se difícil face a “deteriorações respiratórias” manter os padrões de oxigenação e os clínicos começaram a ter dificuldades em ventilar a mulher grávida. A obstetra Marina Moucho explica ao Observador que, se mãe fica mal oxigenada, o bebé também fica, e foi isso que motivou a antecipação em um dia do parto. Os problemas começaram quando, na quarta-feira, Catarina Sequeira teve um “agravamento na parte pulmonar”. Por um dia, não se justificava que o bebé ficasse em sofrimento.

A ideia inicial era esperar pelas 32 semanas de gestação, data em que uma criança deixa de ser prematura para passar a ser moderadamente prematura. “Estava tudo programado com quem faz o quê para amanhã [sexta-feira], mas hoje [quinta-feira], às 4 da manhã, a colega que estava de urgência teve que atuar”, explica a responsável da neonatologia.

Neste caso, tinha sido atingido “o limite de viabilidade para o parto, do ponto de vista de garantia de menores sequelas, menores riscos”, explica o presidente da Comissão de Ética. No que ao parto diz respeito, acabou por ser “tudo normal”, quando se está a falar de uma intervenção de urgência, perante problemas de uma grávida — mesmo que não estivesse em morte cerebral.

"Estava tudo programado com quem faz o quê para amanhã [sexta-feira], mas hoje [quinta-feira], às 4 da manhã, a colega que estava de urgência teve de atuar. Teve de agir e o bebé comportou-se como um bebé de 32 semanas."
Hercília Guimarães, diretora de Neonatologia do Hospital de São João

O que não quer dizer, porém, que tenha sido um parto como qualquer outro. Não só porque os médicos também são pessoas, e não é difícil imaginar a dificuldade de deixar as emoções de lado, mas também por questões mais práticas ou menos óbvias. “As nossas mães costumam estar acordadas, a falar connosco”, explica Marina Moucho. Estar perante uma mãe que, clinicamente, já morreu, é, por isso, “uma situação nova, diferente”, revela a médica ao Observador.

Frágil, mas “a evoluir favoravelmente”

A taxa de mortalidade anda perto dos zero no grupo etário dos prematuros que nascem na barreira das 32 semanas, desde que a intervenção médica seja precoce. Salvador é, por isso, como todos os outros prematuros que nascem com 31 semanas e 6 dias de vida. Segundo os médicos, tem as mesmas características de um bebé na mesma idade gestacional. A diretora do serviço de Neonatologia do São João explica que, naturalmente, enfrenta alguns riscos, mas não está em perigo e, horas depois do nascimento, mantinha-se estável. Se não se soubesse do seu passado e da mãe, não haveria tanta especulação. A única dúvida está relacionada com o problema que provocou a morte cerebral da mãe: para já, os médicos não conseguem ter a certeza se o ataque de asma agudo que levou a mãe ao hospital de Gaia, a 20 de dezembro do ano passado, terá repercussões ou sequelas para o bebé, no futuro. Hercília Guimarães diz que qualquer previsão não será mais do que especular.

Por agora, também não há nenhum cuidado específico a ter. A atenção será igual a outros casos de bebés prematuros, com ecografias e uma ressonância magnética prevista para as 40 semanas. Salvador passará ainda, como todos os outros bebés prematuros, por terapia ocupacional, fisioterapia, acompanhamento de oftalmologia, otorrino e outras especialidades que se articulam em cuidados individualizados para cada criança. A esses cuidados somar-se-á o trabalho dos enfermeiros, essencial, por exemplo, na alimentação e na aspiração. Segundo a diretora da neonatologia, tem sido comprovado que o acompanhamento individualizado e próximo tem efeitos na saúde dos prematuros, não só para que tenham alta mais precocemente, como também a longo prazo.

Catarina Sequeira foi canoísta e ganhou vários prémios, primeiro ao serviço do Náutico de Crestuma. O óbito da jovem de 26 anos foi declarado depois do nascimento de Salvador (Foto: D.R.)

Nesse tratamento individual, a família também é um pilar fundamental. Nos casos dos prematuros que nascem no hospital de São João, os pais são chamados com frequência a estarem perto dos filhos e a participarem no seu dia-a-dia. Salvador, já se sabe, tem uma diferença: não tem mãe. Os médicos lembram, porém, que isso, infelizmente, não faz dele um caso único. Caberá agora ao pai escolher quem se junta a ele no acompanhamento do filho. Até ao parto, essa função de proximidade coube a António, o irmão gémeo de Catarina. No futuro, as avós materna e paterna também podem fazer parte dessa assistência.

Se tudo correr bem, Salvador poderá sair do hospital dentro de três semanas a um mês.

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