Índice

    Índice

Hat-Trick ao Rangers

Eusébio ainda joga no Sporting (o de Lourenço Marques) e Pinto da Costa é só mais um trabalhador (do BPA, Banco Português Atlântico). Estamos em Dezembro 1959, mais precisamente no dia 27. Alex Ferguson só tem 17 anos e é um avançado do Queen’s Park FC, o clube escocês mais antigo da história, fundado em 1867, e o único das quatro divisões escocesas a manter o registo de amador nos tempos correntes, reflectido nas sábias palavras em latim no seu escudo, Ludere causa ludendi – jogar pelo prazer de jogar. Curiosamente, prazer é coisa que Alex Ferguson não revê no futebol nem na sua equipa.

“O meu mundo estava vazio. Tudo o que sonhei ameaçava desmoronar-se a qualquer momento”, escreve Ferguson na sua autobiografia. Como se disse, estávamos em 1959 e era dia de jornada de campeonato da Primeira Divisão escocesa. “Já estava farto de não me impor na equipa principal e de jogar pelas reservas desde que recuperara de uma lesão. Nos dois jogos em que participei, a desilusão psicológica era bem maior que a física, porque apanhámos duas tareias monumentais: 10-1 do Celtic e 11-2 do Dunfermline. Por isso, naquela manhã de 20 de Dezembro, uma sexta-feira, decidi nunca mais jogar pelas reservas, o que implicaria falhar o jogo seguinte, vs. Rangers, o meu clube de coração. Daí que, seis dias depois, tenha pedido à Joan Parker, namorada do meu irmão, que telefonasse ao Bobby Brown [treinador do Queen’s Park], fazendo-se passar pela minha mãe, a dizer-lhe que estava com gripe.”

Whaaaaat? “No final dessa sexta-feira, já estava cá com uns remorsos por ter usado a Joan. Mas isso não foi nada comparado com o que vi quando cheguei a casa dos meus pais. Os remorsos passaram para segundo plano. O meu pai estava com aquela cara de mau mas nem sequer foi ele que me deu o raspanete à frente de todos os meus irmãos e respectivas namoradas. Surpreendentemente, foi a minha mãe que usou da palavra e ainda me atirou à cara um telegrama de Bobby Brown que dizia simplesmente isto: ‘Telefona-me imediatamente.’ Perguntei então à minha mãe, ‘o que é que eu faço?’. Entra agora o meu pai na conversa. ‘Agora vais à cabina telefónica mais próxima, ligas ao teu treinador e pedes-lhe desculpas e não nunca mais voltas a pôr os pés cá em casa.’”

9th August 1967: Footballer Alex Ferguson, Glasgow Rangers' newly-signed centre forward who cost £65,000. Ferguson was born in Govan, Glasgow, and his first club was Queen's Park who he signed for in 1958. He moved to Falkirk in 1969 as a player/coach and took on this role at several clubs in Scotland before retiring as a player in 1975. He managed Aberdeen to the Scottish League title, European Cup victory and won both Scottish knock-out cup competitions (1986) before moving to Manchester United to become a successful manager in the First Division and Premier League. He was also the caretaker manager of the Scottish national side after Jock Stein's death in 1985. (Photo by Central Press/Getty Images)

9 de agosto de 1967: Alex Ferguson jogador do Glasgow Rangers’ @Central Press/Getty Images

Assim é. “Ainda hoje me lembro onde vivia o Bobby Brown (Stanley, 267), porque tive de pedir à telefonista que me fizesse a ligação. Quando ele percebeu quem estava a falar, só me disse isto: ‘Como é que podes fazer-me isto na véspera de um jogo importante?Sei perfeitamente que aquela não era a tua mãe e tenho cinco jogadores com gripe de verdade. Aparece no Hotel Buchanan ao meio-dia para a concentração. O jogo é às três.’ Okay, o telefonema correu bem, pensei eu. Não levei um raspanete por aí além, não levei multa nem fiquei suspenso. E ainda ganhei, ou parece que ganhei, um lugar na equipa principal para um jogo no campo do Rangers. A caminho de casa, fiz todo o esforço para esconder aquele sorriso maroto de contentamento, de triunfo. Em casa nem foi preciso esforçar-me, porque os meus pais ainda estavam incomodados e irritados com a situação. Seguiu-se um interrogatório interminável. Só parou quando fui para a cama.”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“No dia seguinte, acordei aliviado e bem-disposto. O meu pai, não. Quando o convidei para ir ver o jogo, ele respondeu ‘talvez’, de forma seca. Bem, saí de casa, fui ao banco, onde levantei 80 libras para comprar um casaco já encomendado num alfaiate que conhecia bem, fui para o Hotel Buchanan e lá percebi que ia ser titular. Dois bilhetes extras garantiam-me automaticamente um lugar no onze. Àentrada para Ibrox [estádio do Rangers] fiquei espantado ao ver o meu pai, acompanhado por um outro senhor, que era, nem mais nem menos, o dono do banco. Ao que parece, um dos empregados tinha entregado mal as contas e ele teve de passar o sábado atrás de todos os clientes que levantaram dinheiro naquele dia. Eu fui um deles, mas dessa vez não foi nada comigo. Resolvido esse problema, fiquei sozinho com o meu pai. Após um longo silêncio, atirei-lhe: ‘Tenho aqui dois bilhetes. Quer aproveitar?’ Ele respondeu: ‘Talvez sim, não tenho mais nada que fazer.’ Aquilo satisfez-me imenso. Ninguém imagina.”

E depois? “O que aconteceu naquela tarde em Ibrox só pode aparecer na categoria dos milagres: fiz um hat-trick [três golos], o primeiro jogador a fazê-lo ao Rangers, em Ibrox. Foi até a primeira vitória do Queen’s Park FC lá. Um rapaz da terra [de Glasgow], nascido e criado a 200 metros daquele estádio, marcou três golos ao Rangers, a equipa da sua vida – não há palavras para descrever isto. Do jogo em si, lembro-me perfeitamente. Ao intervalo, perdíamos 1-0, golo de George McLean.”

“Nesses tempos, o treinador não ia para o balneário dar sermões ou motivar os jogadores. Essa parte pertencia aos jogadores mais velhos, como Ron McKinven, Jim Little e Jimmy Walker, que diziam aos mais novos, como eu, que tivéssemos esperança num resultado positivo. Eu, miúdo, acreditei naquelas palavras. E senti-me bem, extraordinariamente bem. Entrei no campo com vontade de fazer uma série de coisas. Logo no início da segunda parte, já estava a dar tanto trabalho ao matulão Ronnie McKinnon, que ele já era obrigado a agarrar-me na camisola e nos calções. Aí pensei que podíamos fazer história. Na jogada seguinte, fiz o golo do empate. Primeiro rematei com o pé direito, mas a bola bateu na ponta do pé do McKinnon e ressaltou para mim, que fiz a recarga com o esquerdo. O delirante 2-1 chegou dez minutos depois, quando aproveitei uma defesa incompleta de Bill Ritchie. Incrível. Soberbo. E atirei à trave. Mas o Rangers, como sempre, e sem se saber muito bem como, fez o empate a dois. A 12 minutos do fim desferimos o golpe fatal: após uma confusão na área, rematei para a baliza deserta. Estava feito o 3-2 e até podia ter acabado de outra maneira se outro remate meu não tivesse ido à trave. Mas os três golos já estavam bem.”

“No balneário, um dos seniores do Queen’s virou-se para mim e perguntou-me: ‘Apercebeste-te de que hoje fizeste história?’ “Tomei banho e fui para casa, a 200 metros do estádio do Rangers, por uma rua secundária, onde um jornalista, Joe Hamilton de seu nome, do “Daily Express”, obteve a minha única declaração desse dia glorioso. Em casa, a minha mãe estava empolgadíssima com o meu feito. O meu pai estava sentado no sofá, a ler o jornal. Quando lhe perguntei o que tinha achado do jogo, ele respondeu: ‘Okay, o que é que te disse sobre chutares à baliza, eh? Se não rematares, não marcas.’ Não sei quantas vezes ouvi isso em toda a minha vida…” O resto é sabido. Ou talvez não. Alex Ferguson ainda joga no St. Johnstone, Dunfermline, Rangers, Falkirk e Ayr United. Bicampeão escocês da segunda divisão, em 1963 (St. Johnstone) e 1970 (Falkirk). E contabiliza 214 golos nas divisões escocesas – sagra-se melhor marcador em 1966, com 31, pelo Dunfermline. Em Junho 1974, Alex Ferguson pendura as chuteiras e começa a carreira de treinador. E aqui sim, o resto é história. Dos 50 títulos, duas Taças dos Campeões pelo United: tantas como as do Benfica de Eusébio e as do Porto de Pinto da Costa.

O sucesso no Aberdeen

Ullevi, Gotemburgo, 11 de Maio de 1983. A Suécia é um país habituado a grandes acontecimentos. Antes (1958), coroa o rei Pelé no Mundial.Depois (1992), coroa a Dinamarca como campeã europeia. Pelo meio, o primeiro título internacional de Alex Ferguson.

Vencedor da Taça da Escócia com um espantoso 4-1 ao Rangers, o Aberdeen sela o apuramento para a Taça das Taças. Começa na pré-eliminatória, como o Sp. Braga (eliminado peloSwansea), e só acaba na Suécia. Pelo caminho, elimina Sion (7-0, 4-1),Dínamo Tirana (1-0, 0-0), Lech Poznan (2-0, 1-0), Bayern (0-0, 3-2) e Waterschei (5-1, 0-1). Na final, o favorito Real Madrid com nove espanhóis (entre eles, o lateral-esquerdo Camacho, de 27 anos), um alemão (Stielike) e um holandês (Metgod). No banco, Alfredo diStéfano. Esse mesmo, o único a sagrar-se campeão argentino pelos dois grandes (Boca-1969, River-1981) e já vencedor de uma Taça das Taças, pelo Valencia (1980).

O Aberdeen é uma equipa da classe média escocesa, sem expressão na Europa, com um onze de escoceses e um semi-desconhecido no banco. Chama-se Alex Ferguson, de apenas 41 anos, menos 11 que DiStéfano. Já campeão escocês pelo Aberdeen em 1980, Alex sabe muito bem o que quer. É ele que trata de escolher o hotel, no meio da floresta, longe do mundo – incluindo WAGs, um acrónimo ainda por inventar. “Estávamos proibidos de falar com as nossas companheiras”, diz o capitão Willie Miller. “A mulher de Dougie Bell [médio de ataque], por exemplo, estava grávida. Se ela entrasse em trabalho de parto, telefonaria primeiro a Fergie do que ao marido.”

https://www.youtube.com/watch?v=gjULHAYfsqY

Para Gotemburgo, o Aberdeen leva um convidado especial: Jock Stein, vencedor da Taça dos Campeões pelo Celtic em 1967 (no Jamor) e o então seleccionador da Escócia. É Stein quem dá a táctica ao amigo Alex. “Ele disse-me”, conta Ferguson, “vai lá ao balneário dele, cumprimenta-o efusivamente e fá-lo sentir-se especial.” Meu dito, meu feito. Alex entra no cantinho do Madrid e Di Stéfano recebe-o com surpresa. Há até uma foto famosa com o escocês risonho e o argentino com o sobrolho franzido.

Quando o jogo começa, num campo empapado pelas chuvas nos dois dias anteriores, o Aberdeen atira-se para a frente. Gordon Strachan arrisca um pontapé de bicicleta no limite da grande área mas a bola é desviada pela trave. Aos 7’, o miúdo Black (19 anos) abre o marcador, na sequência de um canto. O Madrid, que não perdera qualquer jogo rumo à final (Baia Mare 0-0/5-2, Ujpest 3-1/1-0, Inter 1-1/2-1 e Austria Viena 2-2/3-1), empata aos 15’, de penálti, a castigar falta do guarda-redes Leighton a Santillana após atraso de Willie Miller com a bola a ficar presa numa poça. Na conversão, 1-1 do capitão Juanito. O Aberdeen vai à luta. Cria uma, duas, três oportunidades. Agustín, o guarda-redes madridista, defende tudo. Menos o cabeceamento do suplente John Hewitt, aos 112’. Dois-um, o Aberdeen é o justo campeão.

Começa aqui a extraordinária carreira internacional de Ferguson, dono de oito títulos (outra Taça das Taças, duas Ligas dos Campeões, duas Supertaças europeias, uma Taça Intercontinental e um Mundial de clubes). O primeiro em 1983, no pior ano de sempre do Madrid, finalista vencido na Taça do Rei (2-1 do Barça) e Taça da Liga espanhola (outro 2-1 do Barça) mais o campeonato perdido na última jornada (0-1 em Valência) para o Atlético Madrid.

O adjunto de Jock Stein

Jock Stein é escocês. Tem fibra. E estilo. É um Alex Ferguson pré-moderno. No Celtic, onde treina a maior parte do tempo, durante 13 anos (Março 1965-Agosto 1978), ganha qualquer coisa como 25 títulos, entre 10 campeonatos, oito Taças da Escócia, seis Taças da Liga escocesa e, pièce de la resistance, uma Taça dos Campeões. Ah pois, é isto que lhe confere estatuto.

Numa bela tarde no Vale do Jamor, em 1967, o Celtic dá água pela barba ao Inter e levanta a taça sem apelo nem agravo (2-1). É o primeiro clube britânico a fazê-lo. E o único escocês. Jock Stein abrilhanta o currículo com este pormenor delicioso: é eneacampeão escocês. Como é que é? Enea. Desculpe? Enea vem do advérbio numeral grego Ennakis. Que significa nove vezes. Sim, Stein é campeão escocês pelo Celtic de 1966 a 1974. Initerruptamente. Como tal, tem uma estátua de bronze à entrada do Celtic Park.

Ao sucesso no Celtic, segue-se a selecção escocesa. Falha a qualificação para o Euro-80 mas vai ao Mundial-82, na Espanha, onde a Escócia trava a fundo na fase de grupos com um empate (2-2) vs. URSS. Falha o apuramento para o Euro-84 e vai ao Mundial-86. É aí que se dá o momento fatídico. No jogo decisivo da fase de grupos, com Gales, em Cardiff, a 10 Setembro 1985. O homem está pálido, sua por todos os poros e treme muito num dia quente. Tal facto é noticiado pela BBC, à porta do hotel da concentração da selecção.

No aquecimento, os adeptos da Escócia não devolvem nenhuma bola ao guarda-redes galês Neville Southall. Este queixa-se a Stein, que, acto contínuo, reentra no relvado e pede as bolas. Os adeptos nem pestanejam. Respect above all. A primeira parte é de Gales e o golo de Mark Hughes aos 13 minutos é disso prova. Ao intervalo, o guarda-redes escocês Jim Leighton abre o livro e admite que falhou o cruzamento no último lance da primeira parte porque perdera uma das lentes de contacto algures naqueles 45 minutos. “Aquilo foi um choque para Stein, ele quase bateu no tecto de irritado. Vociferava por todos os cantos, estava descontrolado porque nunca ninguém lhe dissera que o Leighton tinha miopia e usava lentes.”

Já refeito, Stein diz ao talentoso Gordon Strachan que o irá substituir pelo extremo Davie Cooper durante a segunda parte. Com um currículo apreciável, no Celtic e Manchester United, o número 10 prepara-se para reagir quando Alex Ferguson lhe pde calma, muita calma. Alex Ferguson? Isso mesmo. Por esta não estava à espera, pois não?. O homem é o adjunto de Stein e aconselha Strachan a acatar a ordem sem mas nem meio mas, com a desculpa de que Stein não está bem e não pode ser contrariado.

Quando a segunda parte se inicia, Alan Rough está na baliza da Escócia por troca com Jim Leighton. Aos 61 minutos, Strachan sai mesmo. Entra Cooper, considerado um talento sem igual mas apático e desligado do jogo na maior parte das vezes. Em Gales, o esquerdino entra e abana com a defesa de Gales. A Escócia está por cima pela primeira vez e ganha um penálti aos 81 minutos. “Não foi tanto eu a querer marcar, mas sim os outros 10 a deixarem-me a bola para mim.” O desabafo é de Cooper, autor do 1-1. O seu remate é rasteiro, junto ao poste. Southall ainda lhe toca com os dedos mas não evita o empate.

Nas imagens televisivas, é possível ver todo o banco escocês aos pulos menos Stein, impávido e sereno. Por fora, claro. Por dentro, Stein está mais debilitado que nunca. Ainda por cima, esquecera-se de tomar os diuréticos para acalmar o coração debilitado. Sem esse reforço, a figura de Stein enfraquece a cada minuto. A morte chega. Ali mesmo, no relvado. A trabalhar. Quase quase a festejar o apuramento para o play-off com a Austrália.
O minuto é o 88.º e o árbitro holandês Keizer apita uma falta. Stein julga que é o final do jogo e levanta-se para apertar a mão a Mike England, seleccionador de Gales. Mal se afasta do seu banco, Stein cai de joelhos e aterra no relvado. É levado imediatamente para o balneário a fim de lhe prestarem assistência médica. Na maca, Stein está consciente e alerta. O médico Hillis dá-lhe uma injecção, à qual Stein reage positivamente. “Isso soube-me bem, Doc”. Passados uns segundos, Stein adormece e morre ali mesmo. Quase ninguém se apercebe do sucedido. Os adeptos, por exemplo, festejam o empate como se nada fosse. Os jogadores também, até serem informados por Ferguson ainda no relvado. Willie Miller, o capitão na ausência de Graeme Souness, só sabe de tudo através do flash-interview com Martin Tyler, do canal ITV Sport.

Aos 62 anos, Jock Stein morre em Cardiff no cumprimento do dever. A Escócia elimina a Austrália no play-off e vai ao Mundial do México, onde não passa novamente da primeira fase num grupo com RFA, Uruguai e Dinamarca. Ao leme da selecção, Ferguson só faz um ponto em seis possíveis.

À beira do despedimento

Esqueçam Solskjaer ou Sheringham naquela noite abafada em Barcelona, na final da Liga dos Campeões de 1999. Dos 2363 golos marcados pelo United na era Ferguson, ou seja desde Novembro de 1986, só um lhe salvou a pele. Falamos do dia 7 Janeiro 1990. O seu autor é Mark Robins, um miúdo de 20 anos, acabado de sair da formação. O Kevin Costner que nos perdoe: este é que é o amigo de Alex.

No Verão 1989, o United reforça-se em grande estilo (Webb, Ince e Pallister), aumentadas com a vitória concludente de 4-1 sobre o campeão Arsenal, na jornada de abertura do campeonato. Nos quatro jogos seguintes, só um ponto e depois a humilhante goleada sofrida no dérbi de Manchester (5-1 para o City). A 25 Novembro, o início de outra série negra de resultados, com quatro empates e outras tantas derrotas, que atiram o United para a 15.ª posição, a um ponto da descida. Os cânticos dos adeptos do United eram pró-demissão de Ferguson. Da direcção, zero de reacção – curiosamente, fala-se de uma mudança signiicativa com a saída do carismático Martin Edwards para o saloio Michael Knighton, que faz questão de dar uma volta de honra em todos os jogos em casa, vestido de fato e gravata por cima do equipamento do United, e a dar toques na bola, a promover a sua candidatura. Ferguson está sozinho. Por pouco tempo. Nesse 7 Janeiro 1990, é dia de Taça de Inglaterra, no campo do Nottingham Forest, na altura em 4.º lugar na1.ª divisão inglesa. Isto é, 11 lugares acima do United, já eliminado da Taça da Liga.

Das três provas, Ferguson só se pode agarrar à Taça de Inglaterra. E Mark Robins interpreta essa necessidade como ninguém, ao marcar o golo da vitória (1-0). “O jogo em si até foi mal jogado”, lembra Robins. “Lembro-me que dava na televisão e todas as facas estavam apontadas a nós. Se perdêssemos esse jogo, o United de hoje seria certamente trágico. E não faço nenhum favor a alguém a dizer isto pela simples razão de que o Ferguson nem sequer me agradeceu. Estou a brincar. Quer dizer, ele nunca me agradeceu realmente e nem é preciso. Ele apostou em mim, deu-me trabalho e eu simplesmente correspondi. Apenas fui dos primeiros a quem ele depositou confiança e foi justamente retribuído. Depois de mim, há Giggs, Nevilles, Scholes, Butt, Beckham, entre muitos, muitos outros.”
Quatro meses depois, o United levanta a taça, numa final com direito a repetição (3-3 e 1-0 ao Crystal Palace). É o primeiro título de Ferguson no United (sem ganhar nada desde 1985), que serve de apuramento para a Taça das Taças, conquistada em Maio do ano seguinte.

Close and personal

Alex Ferguson. O nome acompanha-nos há anos e anos. Mesmo um perfeito iletrado em futebol, sabe quem ele é. É o homem de cara rosada, o senhor que masca furiosamente a pastilha elástica, o veterano que festeja todos os golos como se fossem o primeiro da sua vida. É o treinador do Manchester United. E também uma das figuras mais controversas e carismáticas do futebol. Posto isto, cá vai.

Wembley, 2011. Fim do monólogo Barcelona 3 United 1. O domínio do Barça é evidente. E há dois indícios dessa superioridade avassaladora. A primeira tem a ver com a estratégia de Ferguson, que ainda se levanta do banco e gesticula na linha lateral durante a primeira parte. Já na segunda, o escocês atira a toalha ao chão, derrotado. E assiste ao jogo do Barça de perna cruzada, refastelado na sua cadeira. Às tantas, decide-se pela entrada de Paul Scholes (atenção, este é o segundo indício). O cenoura prepara-se para substituir quem? Ninguém sabe. A bola simplesmente não sai de campo. Xavi, Iniesta, Xavi, Busquets, Xavi, Piqué, Messi, Pedro, Daniel Alves, Pedro, Xavi, Messi, ainda Messi, Pedro, Iniesta, Busquets, Abidal, Xavi, Iniesta, Xavi, Iniesta, Messi. Teimosa, a bola. Ela não sai daquele meiinho. E Scholes abana as pernas, estica os braços, relaxa o pescoço, exercita a cabeça. Faz tudo, menos entrar em campo. Só ao fim do quarto minuto é que enfim um jogador do United atira ao lado e lá entra Scholes. Dizíamos, fim do monólogo. Estamos no elevador reservado para a imprensa. Há jornalistas espanhóis aos pulos e outros a abraçarem-se. Todos juntos insultam Mourinho – é o mau ganhar catalão, a filosofia da treta do Barcelona.

No meio desta euforia, há dois jornalistas ingleses. Como Ferguson, têm a cara rosada. Escoceses como ele? Nãããã, ingleses. Como é que sei? Um deles está encostado a mim, despe o casaco e tira o cachecol do Liverpool (maior rival do United). E ri-se. O outro aponta-me para a mochila dele e tira de lá um anuário do City. E ri-se. Está tudo perdido e nem chegámos ainda ao ground zero. Lá em baixo, é a conferência de imprensa. Bem tento desmarcar-me dos dois ingleses. Impossible mission. Eles não só não dão o braço a torcer, como ainda me dão o braço (literalmente) e levam-me para os lugares da frente: “Primeira fila. Agora vais tentar perceber o Ferguson, ok?” E riem-se que nem uns desalmados. “Ouve lá, já foste ali pedir o descodificador? Vai lá, e pede um de escocês para inglês. Mete uns phones.” Mais gargalhadas. Estou no meio de loucos (literalmente).

Já devidamente instalados, começam-me a contar histórias de Ferguson. Há duas deliciosas. A contada pelo jornalista do Manchester City é a primeira a sair do saco: “Sempre que começa uma época, todo o staff do Manchester United recebe carros oferecidos por uma marca. Ora bem, uma vez, o carro não servia ao Ferguson.” Mas não serve como, pergunto-lhe. E ele ri-se mais ainda. “Porque o Ferguson fala escocês e a menina do gps não o entende. Cada ordem dele era como se fosse uma desordem. Ele irritou-se tanto que trocou de carro. Para um sem gps.” O do Liverpool limpa as lágrimas invisíveis e tem o dom da palavra: “Um jornalista do ‘Guardian’ escreveu um livro chamado ‘This Is The One: Sir Alex Ferguson, the Uncut Story of a Footballing Genius’, no qual ele conta as duas épocas como enviado-especial aos treinos e jogos do United. “Sabes o que acontece a esse jornalista?” Nope. “Nunca mais foi autorizado a ir a conferências de imprensa do Ferguson. Deve ter sido a única pessoa banida do seu trabalho por outra a quem ele apelidou de génio. Confuso, não é? Ferguson é assim.”

A conversa é interrompida pela entrada de Ferguson. Vai começar a conferência de imprensa, aleluia. Ou talvez não. Ferguson não é inglês, é escocês. Fala uma língua diferente. Eles têm razão. Fala enrolado. As palavras agrupam-se umas nas outras e só entendo algumas delas. O início e o fim. Pelo meio, já me perdi. Ele não diz time, diz taaaime. Se acha isto delirante, o que dizer disto?Há um jornalista inglês que levanta o braço e pergunta: “Se SirAlex quisesse reforçar a equipa para a próxima época e se pudesse escolher um jogador do Barcelona e se ele aceitasse a proposta do Manchester United, qual escolheria?” Se, se, se… Sir Alex olha para ele. Um segundo, dois, três. E dispara: “Nunca ouvi uma pergunta tão estúpida na minha vida. Mas vou responder à altura: que tal o Mascherano?” Ah-ha, esta até eu atendo. E a menina do gps?

https://www.youtube.com/watch?v=qpJn5P6ECxQ

Best of (autobiografia)

Página 51: “Ouça os médicos. Faça análises. Preste atenção ao seu peso e àquilo que come. Sinto-me feliz por dizer que o simples acto de ler é uma maravilhoso alívio para as pressões do trabalho e da vida, mas nunca conseguirei considerar-me um especialista em vinhos. Conheço as boas colheitas e os bons vinhos. Sou capaz de provar um e distinguir as suas propriedades. Só. (…) Nunca fui um grande dorminhoco, mas garantia as minhas cinco ou seis horas de sono. Há pessoas que acordam e ficam deitadas na cama. Nunca consegui fazer isso. Desperto e salto para o chão de imediato. Estou pronto para ir a qualquer lado. Não fico estendido a desperdiçar o meu tempo.”

Página 110: “Fico aflito só de ver agulhas. No meu tempo de gerente de pubs, em Glasgow, estava a mudar um barril, certo domingo de manhã, quando uma ratazana saltou para o meu ombro. Dei
um pulo para a frente e um espigão do barril entrou-me pela bochecha. Ainda é possível ver o implante de pele. Guiei os três quilómetros até ao hospital com medo de lhe mexer. A enfermeira tirou-mo e desmaiei mal me espetaram a agulha. Ela: ‘Este é que é o grande avançado do Rangers?”

Página 118: “Nos treinos, os jogadores eram bons com ele [Ronaldo]. A princípio, de cada vez que era carregado, soltava um grito terrível ‘aaahhhhh!’. Os colegas troçavam dele. Depressa deixou de fazer esse tipo de algazarra. A sua inteligência ajudava. A partir do momento em que percebeu que, nos treinos, não tinha uma boa audiência para os seus gritos e para o seu teatro amador, parou com isso.”

Página 137: “Roy [Keane] é um indivíduo inteligente. Apanhei-o a ler alguns livros verdadeiramente interessantes. É um bom conversador e uma boa companhia, quando está para aí virado. Os fisioterapeutas costumavam entrar no meu gabinete e perguntavam: ‘Como está hoje a disposição do Roy?’, porque isso determina o ambiente de todo o balneário. A parte mais dura do corpo de Roy é a língua. Pode debilitar a pessoa mais confiante do mundo em segundos com a língua. Um dia, começámos a discutir, e notei que os olhos dele começaram a ficar finos, dois riscos negros. Foi assustador. E eu sou de Glasgow.”

Página 145: “O assassínio de John Kennedy, em Dallas, em 1963, deixou-me uma marca desde o momento em que ouvi as notícias. Ao longo do tempo, desenvolvi um interesse forense em relação à forma como ele morreu, às mãos de quem e porquê. Recordo-me desse dia que chocou o mundo. Era uma sexta-feira à noite, eu estava frente ao espelho, barbeando-me, no quarto de banho, preparando-me para ir ao baile com os meus amigos. Meia hora antes, as notícias rebentaram. Ele tinha sido levado para o Hospital de Parklands. Vou lembrar-me, para sempre, no baile, no Flamingo, perto de Govan, de ouvir a canção que chegou aos tops ‘Do You Like to Swing on a Star?’. O ambiente estava soturno. Em vez de dançarmos, fomos para o andar de cima falar sobre o assassínio.”

Página 157: “Estava em casa numa noite de neve em Janeiro de 2010 quando o meu telemóvel apitou com uma mensagem. ‘Não sei se se lembra de mim’, começava, ‘mas precisava de falar consigo.’ Ruud van Nistelrooy. Respondi-lhe okay e ele ligou. Primeiro, conversa de chacha, blá blá blá. Depois saiu-se com esta: ‘Quero pedir desculpa pelo meu comportamento no meu último ano no United.’ Gosto de pessoas que conseguem pedir desculpa. Sempre admirei isso. Nesta cultura moderna de auto-absorção, esquecemo-nos que existe a palavra ‘desculpa’. É bom encontrar um que seja capaz de pegar no telefone mais tarde e dizer: ‘Estava errado, peço desculpa.’”

Página 175: “Vidic gostava. Adorava o desafio de estar lá no meio [de um jogo de futebol]. Vidic é um tipo obstinado, intratável. Um sérvio orgulhoso. Em 2009, veio dizer-me que talvez pudesse vir a ser chamado. ‘Que queres dizer com isso, chamado?’, alarmei-me. ‘Kosovo. Vou para lá’, respondeu. ‘É o meu dever.’ Li a decisão nos seus olhos.”

Página 225: “Para um homem com 35 anos, a sua disponibilidade para escutar os treinadores era espantosa. Queria ouvir as leituras tácticas feitas pelo Carlos [Queiroz] e embrenhava-se em tudo o que fazíamos. Henrik Larsson era soberbo nos treinos: os seus movimentos, o seu jogo posicional. No seu último jogo, estávamos a perder em Middlesbrough quando o meti em campo. Deu o litro e um quartilho. No seu regresso às cabinas, todos os jogadores se reuniram para o aplaudir e o resto do staff juntou-se- -lhes. É preciso ser um grande jogador para criar tal impressão em tão-só dois meses.”

Página 228: “Fui ver pessoalmente Nani. O que me atraiu foi o seu ritmo, força e jogo aéreo. Tinha dois belos pés. Todas as qualidades individuais estavam lá, o que levava à velha questão: que tipo de rapaz é ele? Resposta: boa índole, sossegado, sabia falar inglês razoavelmente, nunca causou qualquer problema no Sporting, gostava de treinar. Mantinha-se em forma. Era bem ginasticado. Puro material em bruto. Era imaturo, inconsistente, mas com um fantástico instinto para o futebol. Conseguia controlar a bola com qualquer dos pés, cabecear e era um poço de força física.”

Página 251: “Um dia, nos anos 90, Johan Cruijff disse-me ‘Vocês nunca hão-de ganhar a Taça dos Campeões!’. Espantei-me: ‘Porquê?’ A resposta pronta: ‘Não jogam sujo e não compram árbitros.’”

Página 277: “Uma vez fui ver um jogo a Itália entre o Milan e o Inter. Um dirigente do Inter disse-me isto: ‘Sabe qual a diferença entre ingleses e italianos? Em Inglaterra, não vos passa pela cabeça que um jogo possa ser comprado. Em Itália, não nos passa pela cabeça que um jogo não possa ser comprado.”

Página 288: “Conseguem imaginar-me no cargo de seleccionador inglês? Eu, um escocês? Sempre disse, na brincadeira, que, se fosse treinador da Inglaterra, faria com que baixasse para o 150.º lugar do ranking da FIFA, com a Escócia em 149.º. Não, nunca me senti tentado a deitar-me nessa cama de pregos.”

Onze ideal

SCHMEICHEL
Guarda-redes(1991-99)
398 jogos/1 golo marcado
Está a ver o número de jogos? Em 398, não sofre golos em 176, o que significa 45% das vezes, um número prodigioso. Schmeichel é muito mais que isso. A sua camisola é tão larga que mais parece um linebacker da NFL, até porque é autor de defesas ortodoxas jamais vistas – e até marca golos, como aquele ao Rotopr Volgograd para a Taça UEFA. E o que faz quando se sagra campeão europeu em 1999? Assina pelo Sporting. Just for fun.

GARY NEVILLE
Defesa-direito (1992-2011)
702/7
Arrasta uma lista infindável de detractores, até dentro do próprio United. que o criticam por tudo e por nada, até pela eleição do bigode menos felpudo da história. Mas até esses o consideram o melhor lateral-direito do futebol inglês nos últimos 20 anos.

STEVE BRUCE
Defesa-central (1987-1996)
414/51
Mesmo sob pressão, esconde a bola como poucos e não erra. É considerado o central mais técnico do futebol inglês pós-Bobby Moore (e nunca joga pela selecção inglesa). Além disso, é um goleador de sucesso assinalável, com 19 golos em todas as competições na época1990-91.

JAAP STAM
Defesa-central(1998-2001)
127/1
Alex Ferguson não é homem para pedir desculpas por erros no mercado de transferências. Nunca se ouve uma palavra sobre as saídas de Keane, Van Nistelrooy ou Beckham. A verdade é que o treinador faz o mea culpa sobre o holandês, transferido para a Lazio dias depois de ter lançado uma autobiografia a dizer mal dos irmãos Neville e de Beckham.

DENIS IRWIN
Lateral-esquerdo(1990-02)
529/33
Mister Dependable. Como é que um lateral irlandês marca 33 golos em 12 épocas? É o marcador oficial não só de penáltis (primeira opção) mas também de livres (segunda). Nos treinos, os jornalistas fazem fila para ver e crer. E confirmam: Irwin é melhor que Giggs, Ince e Kanchelskis. Só não é melhor que Beckham.

CRISTIANO RONALDO
Extremo-direito(2003-09)
292/118
Certo, Beckham marca golos de livre espectaculares e é campeão europeu em 1999. Big deal: Ronaldo chega e faz esquecer David com golos de todo o tipo: ele é livres, ele é penáltis, ele é de cabeça (aquele memorável à Roma), ele é a 35/40 metros (Porto, no Dragão), ele é campeão europeu. Estamos conversados, right?

ROY KEANE
Médio-centro (1993-2005)
480/51
Outro irlandês no onze, este mais combativo e agressivo que Irwin. O seu recorde disciplinar é lamentável, com 11 expulsões pelo United. Compensa esse defeito de personalidade com um estilo de jogo acutilante e heróico. As desavenças com Ferguson e uma entrevista à MUTV nunca editada em que diz mal de Ferdinand, Fletcher, O’Shea,
Richardson e Smith abrem-lhe a porta de saída.

BRYAN ROBSON
Médio-centro (1981-94)
461/99
Capitão do United 12 épocas a fio, faz a ponte entre a geração perdida no início dos eighties e aquela dos ninti(inter)nacionais. Ainda hoje é o 21.º goleador do United.

RYAN GIGGS
Ala-esquerdo (1991-2013)
885/161
O galês marca em todos os campeonatos ingleses desde 1990-91, um registo notável. À velocidade, entretanto perdida ao longo dos anos, Giggsy junta uma série de dribles inesquecíveis e a habilidade para livres e cantos directos.

VAN NISTELROOY
Avançado (2001-06)
219/150
Um desentendimento com Ronaldo durante o treino, um controverso depoimento sobre as saudades de Beckham e alguns encontrões de língua afiada com Alex Ferguson provocam a saída do homem-recorde, inclusive o dos golos de Bobby Charlton.

ERIC CANTONA
Avançado (1992-97)
185/82

Na estreia, em Dezembro 1992, com o arqui-rival City, entra na segunda parte. É o único jogo que faz como suplente. O resto, o resto é história. Entre um golpe de kung-fu num adepto do Crystal Palace e umas quantas expulsões, Eric é um ícone. Nas bancadas, os ingleses cantam a “Marselhesa” (oh lala). No relvado, o francês parte a loiça toda. Com golos de fantasia e outros banais mas elevados ao máximo por se tratar de “Le Roi”. Eleito melhor jogador do século pelos adeptos do United. Está tudo dito. Au revoir.