Passavam 15 minutos das 14h quando Rui Moreira chegou a pé ao Tribunal Criminal São João Novo, no Porto, acompanhado pelo seu advogado, para conhecer o desfecho do caso Selminho, um processo que o levou a sentar-se dos bancos dos réus. À sua espera estavam já alguns populares prontos a demonstrarem o seu apoio, uns mais efusivos do que outros. Se houve quem trouxesse tampas de panelas e rimas ensaiadas na ponta da língua, outros limitaram-se à curiosidade mais discreta, observando o aparto dos jornalistas do outro lado do passeio e de braços cruzados. “A perder ou a ganhar, ao seu lado eu vou estar”, ouvia-se entre alguns cumprimentos sorridentes.
Aos corredores do tribunal iam chegando a conta-gotas alguns vereadores do município do Porto – Cristina Pimentel, Ricardo Valente ou Catarina Araújo –, bem como familiares do autarca. Desde o início do julgamento que a sala de audiências nunca tinha estado tão cheia, mas Rui Moreira não acusava pressão, pelo menos aparentemente.
A presidente do coletivo de juízes, Ângela Reguengo, começou por dizer que ia ler uma versão do acórdão mais reduzida, sugerindo ao arguido que apenas se levantasse no momento do anúncio da decisão. Durante uma hora, o autarca ouviu sentado a decisão do tribunal, acenando com a cabeça em alguns momentos e até piscando o olho ao filho, sentado no banco ao lado.
A falta de provas e as justificações credíveis: os argumentos usados pelo tribunal para absolver Moreira
Em causa estava a acusação do Ministério Público (MP) de um crime de prevaricação, em concurso aparente com um crime de abuso de poder, incorrendo ainda a perda de mandato, por Rui Moreira ter alegadamente favorecido a imobiliária da família, da qual era sócio, durante o seu primeiro mandato, em 2013, e prejudicando o município. Na base do processo estava o negócio de construção em terrenos na escarpa da Arrábida, cujo conflito judicial opunha há vários anos a câmara e a imobiliária Selminho.
A juíza começou por enumerar os factos não provados em julgamento, onde sublinhou ter existido uma “prova testemunhal clara” de Moreira não ter tido, “direta ou indiretamente”, qualquer “intervenção, orientação ou instrução” relativamente ao processo que envolvia a imobiliária da sua família e o município do Porto. Isto, apesar de o autarca ter assinado uma procuração forense, atribuindo poderes especiais ao advogado da câmara, Pedro Neves de Sousa, antes mesmo de se ter declarado impedido, sendo este o documento que originou todo o processo.
Ora, no entender do tribunal, este ato “poderia ter configurado um ato irregular face ao possível conflito de interesses, mas o qual não assume natureza criminal”, considerando que “os esclarecimentos e explicações que o arguido apresentou em audiência, onde justificou a razão pela qual outorgou aquele documento” foram considerados “credíveis, razoáveis e consistentes” pelo tribunal. Foram, “além disso, corroborados pelos depoimentos das testemunhas Azeredo Lopes [antigo chefe de gabinete] e Pedro Neves de Sousa [advogado da câmara]”.
“A existência deste documento, por si só, não permite concluir ou considerar que o arguido ditou ou influenciou por qualquer forma os termos da transação ou do compromisso arbitral”, pode ler-se no acórdão a que o Observador teve acesso. Segundo a decisão do tribunal, há “evidente e manifesta falta de prova da factualidade vertida na acusação” relativamente à “inversão completa e total da posição do município no que toca à pretensão [de construção nos terrenos] da Selminho e que tenha existido qualquer favorecimento da empresa em detrimento dos interesses da autarquia”.
A juíza afirma mesmo ter não ter “qualquer dúvida” de que todos os serviços municipais envolvidos na “discussão e elaboração do acordo”, celebrado em 2014 entre a Selminho e a autarquia, “salvaguardavam os interesses” da câmara do Porto, tendo sido “deixado em aberto” a alteração de qualificação do solo em sede de revisão do Plano Diretor Municipal.
Face aos factos considerados não provados, o tribunal concluiu não se verificar o crime de prevaricação, tendo absolvido Rui Moreira. “Os factos considerados não provados que levaram à conclusão da inexistência de um crime de prevaricação são os mesmos que afastam a imputação ao arguido de um crime de abuso de poderes. (…) Na verdade, tais factos (não provados) inviabilizam a conclusão de que a conduta do arguido, no exercício das suas funções, violou qualquer dever funcional.”
No fim da leitura do acórdão, e já com o autarca de pé, o procurador Luís Carvalho pediu a palavra à juíza presidente, dizendo “não se conformar” com a decisão, razão pela qual anunciou que vai interpor recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Os ataques políticos, o telefonema de Marcelo e a honra reparada
O presidente da Câmara do Porto esteve presente nas quatro sessões do julgamento e prometeu sempre prestar declarações apenas no final. “Sinto-me tranquilo, não tinha dúvidas de que um dia este desfecho chegaria, gostava que tivesse acontecido mais cedo, mas pelos vistos o Ministério Público não se conforma”, começou por dizer aos jornalistas, ainda no tribunal. Sobre o recurso apresentado pelo MP, garantiu não estar surpreendido e recordou a sua confiança no sistema judicial. “Confio na justiça, não me vão ver a rasgar as vestes da Justiça.”
Mais duro nas críticas ao MP foi o seu advogado, Tiago Rodrigues Bastos. “Acho que é uma vergonha o que assistimos aqui, o Ministério Público poderia ter a hombridade de ponderar, de ler, de verificar, mas quis fazer o show off de comunicar que iria interpor recurso. Com todo o respeito, é uma vergonha que um procurador atue desta forma.”
Duas horas depois de ser conhecida a sua absolvição de todas as acusações do MP, e já de serem públicas algumas reações de líderes partidários em plena campanha eleitoral, o autarca independente convocou uma conferência de imprensa nos Paços do Concelho, onde partilhou ter recebido vários telefonemas de “adversário e aliados políticos”, incluindo de Marcelo Rebelo de Sousa. Na sala D. Maria, contou com a presença dos vereadores do seu movimento, bem como alguns familiares e amigos, que entre abraços e sorrisos não se inibiram de festejar o desfecho do caso Selminho.
“Hoje, fez-se justiça”, começou por dizer, segurando as folhas do discurso nas mãos. “Sinto que, para além da absolvição, foi reparada a minha honra e desfeita qualquer dúvida que pudesse eventualmente existir (…) Não consigo esconder que sofri muito. Não escondo que a mais mera hipótese e suspeita de eu ter abusado deste cargo sempre representaram um insulto e uma infâmia”, afirmou, reiterando que a dimensão e espessura do acórdão são representativas de que “a acusação era destituída de qualquer fundamento”.
Depois de assumir não ter receio do recurso apresentado pelo MP, o autarca não deixou de lamentar que o MP e a instrução do processo “não tenham querido ouvir a testemunha chave”, o advogado da câmara, Pedro Neves de Sousa. “Este simples ato teria evitado que o meu nome fosse vilipendiado, em particular nesta última campanha eleitoral.”
Para Rui Moreira, não há dúvidas de que o caso Selminho se tornou também num caso de “aproveitamento político”. “Este processo foi sempre um processo político. Não estou a dizer que na sua origem fosse um processo político, aquilo que afirmo é que o processo se transformou sempre num processo político (…) Já não tenho idade nem para acreditar no Pai Natal, nem para acreditar em acasos”, afirmou o autarca.
As críticas aos seus adversários políticos não se faziam tardar. “Mesmo sem sentença, fui condenando insistentemente em praça publica. Houve quem se abespinhasse por a campanha eleitoral não se ter concentrado, apenas nesta suspeita. Houve partidos políticos, e um líder político em particular, que não respeitaram a presunção de inocência”, atirou Moreira, numa clara referência a Rui Rio. Em maio de 2021, o presidente do PSD afirmou que, se estivesse na situação de Rui Moreira, não se recandidataria à Câmara Municipal do Porto, alertando para o “risco” que este corria de ter de “sair pela porta de trás” da autarquia.