Foi o primeiro choque entre Lucília Gago e os membros do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) — e também foi a primeira derrota da procuradora-geral da República (PGR) no órgão de gestão desta magistratura. A escolha de Amadeu Guerra para liderar a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa contra a vontade de Lucília Gago acaba por ser o primeiro sinal de que algo não está bem na cúpula do Ministério Público. E logo numa semana em que a procuradora-geral fez as suas primeiras declarações públicas polémicas, ao admitir a demissão do cargo caso o PS e o PSD alterassem a composição legal do CSMP. Afinal, o que aconteceu?

Teimosia de Lucília Gago — essa é a explicação mais provável. A PGR manteve a sua posição apesar do claro desejo de saída de Amadeu Guerra do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), da sua vontade expressa em substituir Maria José Morgado à frente do MP do distrito judicial de Lisboa e das reuniões secretas para sensibilizar a procuradora-geral a acolher o nome de Amadeu Guerra. No final do processo, a líder do MP ainda sentiu necessidade de fazer uma declaração de voto em que justificou perante o Conselho as razões que a levaram a não escolher o candidato preferido pela maioria.

O desejo de Amadeu Guerra em sair do DCIAP

A entrevista que o ainda diretor do DCIAP concedeu ao Observador em Outubro, a última até à data, serve de ponto de partida para perceber o contexto desta decisão que caiu como uma bomba no Ministério Público (MP). Amadeu Guerra deu nessa entrevista uma no cravo e outra na ferradura no que ao seu futuro dizia respeito — um indício claro de como tudo estava em aberto.

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Ou seja, tanto afirmou que o  DCIAP “foi o maior desafio da minha carreira”, como enfatizou que tinha sido “muito extenuante, com investigações muito complexas e com elevada exposição pública, situação que exige uma dedicação constante, muitas vezes com prejuízo pessoal e familiar para todos os magistrados do DCIAP” — incluindo o diretor, por maioria de razão. Tudo para dizer o diretor do DCIAP deveria ter “dois mandatos de três anos, não renováveis” — a cumprir um segundo mandato que terminaria em março, seria essa a situação de Amadeu Guerra. A saída, portanto, era uma opção.

Amadeu Guerra. “Não é possível um retrocesso no combate à corrupção”

Contudo, Amadeu Guerra também falou com entusiasmo do futuro do DCIAP e de novos instrumentos de combate à corrupção. Referiu “o investimento na modernização”, como “a transcrição automática de depoimentos, o que facilitaria muito o nosso trabalho”, a “esperança” de que a “sala forense do DCIAP” – recentemente operacionalizada – possa ser um apoio complementar, com a cooperação da Polícia Judiciária, para a melhoria da celeridade da investigação criminal” e aposta no “Portal Cos (portal de comunicações de branqueamento)” para que este recebesse “online todas as comunicações oriundas de entidades bancárias até ao final do corrente ano ou até ao fim do 1.º trimestre de 2019.” Projetos, objetivos e timings bem definidos — a marca de um gestor satisfeito com o seu futuro.

Na realidade, Amadeu Guerra queria continuar no DCIAP até ao verão de 2019 — altura em que estaria em condições de se jubilar. Porquê? O diretor do DCIAP queria sair com o processo Universo Espírito Santo — a mega-investigação ao Grupo Espírito Santo e a Ricardo Salgado — encerrado.

Fechar o seu mandato com uma acusação histórica como será a do Universo Espírito Santo, seria fechar com chave de ouro. Foi Amadeu Guerra quem reorganizou, recrutou e reconstruiu um DCIAP afetado na sua credibilidade pelo último mandato de Cândida Almeida. Foi este DCIAP que liderou a Operação Marquês, detendo o ex-primeiro-ministro José Sócrates e acusando-o juntamente com Carlos Santos Silva, Armando Vara, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, entre outros arguidos. Como foi durante o mandato de Amadeu Guerra que Ricardo Salgado foi constituído arguido na investigação do Universo Espírito Santo e em que se verificaram investigações tão importantes como o caso EDP, a Operação Fizz, Vistos Gold, caso José Veiga, o caso Monte Branco, a conclusão da Operação Furacão ou a sentença do caso principal do BPN que levou à condenação, entre outros arguidos, de Oliveira Costa, o ex-líder do banco, a uma pena de 14 anos de prisão. Ou ainda investigações recentes, como o caso de Tancos e a criação de uma equipa especial de investigação para coordenar as investigações ao Benfica, Sporting, Porto e outros clubes de futebol.

A falta de empatia com Lucília Gago e com o seu gabinete

O que se passou para que estes planos fossem mudados?

A questão resume-se a uma falta de empatia clara entre Lucília Gago e a Amadeu Guerra. Apesar da nova procuradora-geral ter feito questão de elogiar no seu discurso de tomada de posse o trabalho do DCIAP na Operação Marquês e demonstrar “plena” “confiança” em Amadeu Guerra, na realidade a relação não fluiu de acordo com esse discurso.

Amadeu tinha com Joana Marques, tal como afirmou na entrevista ao Observador, “excelentes relações e de franca cooperação”, “um grande consenso e sintonia em relação aos temas da investigação criminal” e uma “troca de pontos de vista constante”. Nem mesmo quando Marques Vidal sugeriu formalmente que Rosário Teixeira fosse afastado da liderança da Operação Marquês devido aos atrasos na conclusão da investigação, o que não foi seguido por Amadeu, a relação ficou afetada. Com Lucília Gago situação foi outra.

Em primeiro lugar, não havia, de todo em todo, uma “troca de pontos de vista constante” entre Gago e o diretor do DCIAP. E aqui é importante frisar que o DCIAP é um órgão da Procuradoria-Geral da República, sendo que os DIAP’s, por exemplo, são serviços do Ministério Público. Qual é a diferença? Várias mas neste contexto a mais importante é a seguinte: o diretor do DCIAP reporta diretamente à procuradora-geral, enquanto os diretores dos DIAP’s têm uma relação funcional com os procuradores distritais.

O facto de Lucília Gago ter determinado que o seu chefe de gabinete, Sérgio Pena, fosse o interlocutor natural de Amadeu deixou o diretor do DCIAP insatisfeito. Ou seja, deixou de ter uma relação próxima com a procuradora-geral, passando a ter de dialogar com um intermediário. Por outro lado, há uma questão simbólica que pode ser vista como uma desconsideração: independentemente do valor profissional de Pena, um dos homens mais influentes do Ministério Público neste momento por via do poder que Gago lhe transmite, certo é que se trata de um procurador da República, enquanto que Amadeu Guerra é procurador-geral adjunto — uma categoria acima e o topo da carreira no MP. Sendo uma magistratura hierarquizada, as categorias são matérias relevantes quando se trata de dar ou receber ordens.

O cargo no Supremo Tribunal de Justiça que não se concretizou

Amadeu Guerra, portanto, queria sair do DCIAP. Daí ter afirmado ao Observador em outubro que “meu futuro será, oportunamente, analisado com a senhora procuradora-geral [Lucília Gago]”. E, de facto, foi tratado mas não da melhor forma.

No final de seis anos de trabalho intenso e com provas dadas, o diretor do DCIAP queria sair para um cargo condigno com o seu curriculum e estatuto: coordenador do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Durante os seus dois mandatos no DCIAP, Amadeu também deixou passar oportunidades como candidatar-se a juiz conselheiro do Supremo, por exemplo. Como fez Francisca Van Dunem — que foi empossada quando já era ministra da Justiça.

Na verdade, Lucília Gago queria que Amadeu continuasse como diretor do DCIAP ou, em alternativa, fosse para o STJ. O grande problema é que Gago já teria prometido o cargo de coordenador a outra procuradora-geral adjunta.

Foi todo este contexto que fez com o nome de Amadeu Guerra começasse a surgir entre a cúpula do MP como um possível sucessor de Maria José Morgado à frente da Procuradora-Geral Distrital de Lisboa.

Procuradora Maria José Morgado vai jubilar-se

Os proponentes do nome de Amadeu

A jubilação de Maria José Morgado, uma das figuras de referência do MP, já era conhecida nos bastidores do MP há vários meses — tal como a do seu colega Euclides Dâmaso. Sendo o processo de jubilação particularmente burocrático, só a 7 de dezembro é que tal processo ficou concluído com a publicação em Diário da República do despacho da Caixa-Geral de Aposentações. Mas as movimentações para encontrar um substituto de Morgado, contudo, iniciaram-se ainda antes do Observador ter noticiado que Maria José Morgado iria jubilar-se.

Entre 10 e 15 dezembro, a procuradora-geral Lucília Gago começou a auscultar alguns dos membros do Conselho Superior do Ministério Público, dando conta que tinha chegado a uma pré-seleção de três procuradoras-gerais adjunta, sendo que Paula Peres (inspetora do MP) lhe parecia a pessoas mais indicadas para o cargo.

A reação da maioria dos membros do CSMP — quer os indicados pelo poder político, quer os magistrados do MP — não foi positiva. Mas mesmo assim Lucília Gago não recuou. Apesar de ser informada pelo seu gabinete que a reação não estava a ser positiva, a procuradora-geral fez vir ao de cima uma das suas características mais vincadas: a teimosia.

Os elementos mais experientes do CSMP ficaram incomodados por a procuradora-geral não ter em conta um facto legal: o Conselho é um órgão colegial, logo qualquer procurador-geral submete-se à votação e à deliberação da maioria dos conselheiros. A fase de contactos informais entre o gabinete da procuradora-geral e os membros do CSMP antes da escolha de alguém para um cargo relevante é uma prática corrente que visa consensualizar um nome e encontrar um equilíbrio entre o nome preferido do líder do Ministério Público e a sensibilidade da maioria do órgão de gestão daquela magistratura. Tal equílibrio, contudo, foi recusado por Lucília Gago.

E é aqui que surge o nome de Amadeu Guerra — que ganha automaticamente força.

A reunião entre a procuradora-geral e Magalhães e Silva

Os proponentes formais de Amadeu Guerra foram nove: quatro membros indicados pela Assembleia da República e pela ministra da Justiça (Manuel de Magalhães e Silva, Alfredo Castanheira Neves, João Madeira Lopes e Augusto Arala Chaves) e cinco magistrados (Carlos Teixeira, Alexandra Neves, entre outros).

Ou seja, do lado dos ‘políticos’ estamos perante um grupo plural (PS, PSD e PCP são os partidos representados) e um membro indicado pela ministra Francisca Van Dunem (Arala Chaves). Enquanto os magistrados estão em maioria e são eleitos pelos seus pares para estarem no Conselho.

Este grupo de proponentes toma a iniciativa de tomar uma última diligência antes do substituto de Morgado ir a votos na reunião desta terça-feira, dia 18 de dezembro: solicitar uma audiência a Lucília Gago para fazer uma última proposta de consenso.

O escolhido para representar os proponentes de Amadeu Guerra é o advogado Manuel Magalhães e Silva. Ex-assessor jurídico de Jorge Sampaio, ex-secretário adjunto de para a Administração e Justiça de Macau, ex-colega de escritório do primeiro-ministro António Costa e membro do CSMP eleito pela Assembleia da República por indicação do PS, Magalhães e Silva entra na sede da Procuradoria-Geral da República, em Lisboa, ao final da tarde de sexta-feira, dia 14 de dezembro, com uma proposta que representa uma espécie de um ‘ramo de oliveira’ estendido a Lucília Gago.

No gabinete da procuradora-geral, virado para a rua Escola Politécnica e com vista para a sede do PS no Largo do Rato, Magalhães e Silva propõe à procuradora-geral da República que alargue a sua lista de três nomes e inclua o nome de Amadeu Guerra.

No seu estilo aristocrático de inspiração inglesa, o experiente advogado dá à procuradora-geral da República duas informações essenciais:

  • Um número significativo de membros do Conselho estava disponível para para apoiar o nome de Amadeu Guerra para procurador-geral distrital de Lisboa. Na realidade, tratava-se de um eufemismo para designar uma maioria clara que os proponentes já tinham como certa;
  • O próprio Amadeu Guerra tinha manifestado intenção de aceitar o cargo, se fosse essa a vontade do Conselho.

Os conselheiros representados por Magalhães e Silva queriam preservar a “dignidade institucional” da Procuradoria-Geral da República, diz um deles, possibilitando a Lucília Gago a hipótese de propor o nome que não era do seu agrado mas que garantia sempre que o nome aprovado pelo Conselho teria sido formalmente proposto pelo líder do MP. Precisamente para evitar a leitura que foi feita após conhecer-se o que estava a acontecer na reunião do Conselho: Amadeu Guerra tinha sido aprovado contra a vontade da procuradora-geral.

Lucília Gago, contudo, optou pela fuga em frente e ignorou o ‘ramo de oliveira’ que Magalhães e Silva lhe ofereceu. A procuradora-geral não só alegava que não tinha substituto para Amadeu Guerra, como essa sucessão deveria ser feita com cuidado.

Uma reunião “tensa” e com um “ambiente de cortar à faca”

Chegados ao dia fatídico, 18 de dezembro, naturalmente a situação extremou-se. De um lado a procuradora-geral, entendendo que tem direito a escolher os procuradores-gerais distritais que são seus interolucutores diretos em cada um dos quatro distritos judiciais. Do outro lado, a maioria do CSMP que não se revia no nome da procuradora-geral da República.

Do ponto de vista prático, não houve duas listas. Houve, sim,  os nomes que foram propostas por Lucília Gago (as três procuradoras-gerais adjuntas lideradas por Paula Peres) e o nome de Amadeu Guerra proposto pelos nove conselheiros acima referidos.

No debate que antecedeu a votação, os proponentes de Amadeu naturalmente tomaram a palavra para defender a sua opção, enquanto que do ‘outro lado da barreira’ surgiram nomes como José António Pinto Ribeiro (ex-ministro da Cultura de José Sócrates e um crítico feroz do MP), que levantou questões de metodologia sobre a inclusão do nome de Amadeu Guerra, e Raquel de Almeida Ferreira (procuradora-distrital do Porto).

Numa reunião que foi descrita ao Observador por diversos interlocutores como “tensa” e com “um ambiente de cortar à faca” no que diz respeito a este diferendo entre a procuradora-geral , certo é que o nome de Amadeu Guerra acabou por ser escolhido por 12 pessoas, enquanto que apenas 7 votantes escolheram Paula Peres. As duas magistradas que tinham sido igualmente propostas por Lucília obtiveram 0 (zero) votos.

Durante a reunião, Maria José Morgado chegou comentar que “não sabia que o cargo era tão concorrido” — o que fez atenuar por breves minutos a tensão claramente existente.

A procuradora-geral Lucília Gago é que não achou muita graça e fez questão de apresentar uma declaração de voto para explicar as razões que a tinham levado a não propor o nome de Amadeu Guerra para a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.

Agora, tudo terá de ser feito com timings apertados:

  • Amadeu Guerra terá de tomar posse como procurador-geral distrital de Lisboa até ao dia 4 de janeiro, de forma a concluir o processo de movimentação dos magistrados do quadro complementar;
  • E Lucília Gago terá de apresentar um nome ao CSMP para a direção do DCIAP.

E não está fora de hipótese que se venha a verificar um novo confronto entre Lucília Gago e o Conselho. É que, uma vez mais, os conselheiros terão de aprovar a proposta da procuradora-geral, sendo que só após duas rejeições (que equivalem a vetos) é que o CSMP é obrigado a aprovar o nome escolhido por Gago.