“Vai Correr Tudo Bem!” revela a história de dor, luta e superação de Eder e cruza-a com a de Susana Torres, a coach de alta performance a quem Eder agradeceu no final do Europeu. Fala de uma relação profissional e de amizade que transformou ambos e de como o coaching e as suas técnicas devolveram a um jogador tímido, e com um enorme coração, a crença em si mesmo.
O Observador faz aqui a pré-publicação do capítulo em que Eder conta como se prepara para o jogo escrevendo num papel (um script) os objetivos para cada partida. O jogador conta como os seus companheiros de seleção descobriram o papel — e gozaram com isso — e revela outros momentos marcantes, como o que aconteceu num café em Leiria, quando um homem se levantou da mesa, veio ter com ele, e muita coisa mudou…
Escreve o teu destino (num script)
Na semana que antecedeu a viagem para Marcoussis, a seleção portuguesa instalou-se no Hotel Cascais Miragem. Eu passava grande parte do meu tempo a trabalhar na minha preparação mental para o jogo amigável contra Inglaterra, que se iria disputar no mítico estádio de Wembley.
Uma das coisas que aprendi a fazer antes dos jogos foi a criar o meu script – um alinhamento de frases, em que defino aquilo que preciso de ter em mente durante o jogo.
É bastante eficaz. Ao descrever num papel tudo aquilo em que me quero focar, ponto por ponto, crio uma imagem mental, e nos momentos do jogo em que começo a dispersar-me, rapidamente visualizo o meu script e volto a concentrar-me naquilo que é importante – a minha performance para aquele jogo.
Quanto mais presentes estiverem esses pontos, menos espaço existe para que outros possam aparecer e perturbar a minha concentração. É portanto uma forma simples de dizermos ao nosso consciente para se preocupar apenas com aquilo que está definido no script, e deixar o inconsciente fazer o seu trabalho.
Nessa semana, antes de viajarmos para Inglaterra, preparei cuidadosamente o script para o jogo. Claro que não sabia se iria jogar ou não, nem me interessava – treino e preparo-me sempre para os jogos como se fosse um titular indiscutível e um jogador que faz a diferença.
Estava no quarto do hotel, tinha o script feito e colado num armário – uma folha enorme, daquelas que se usam nas palestras, com as frases escritas com um marcador. De repente, bateram à porta. Fui abrir e era o João Carlos, o adjunto da seleção. Eu nem me lembrei de que tinha o script ali pendurado, de modo que o convidei para entrar. Ele vinha mostrar-me um vídeo com os meus melhores momentos. Quando ele entrou no quarto, reparei que tinha ali aquela folha enorme toda escrita, dirigi-me ao armário e fechei-o rapidamente.
Obviamente que o João Carlos reparou e eu fui demasiado evidente a tentar esconder. Como fui “apanhado”, acabei por voltar a abrir o armário e mostrar o que ali estava. Não queria que ninguém visse o script – não sabia o que iriam pensar e preferia guardar a informação só para mim. Mas naquele dia distraí-me, nem pensei nisso e depois achei preferível contar-lhe.
Expliquei-lhe então o que era o script e para que servia. Ele ficou a olhar para mim em silêncio. Foi um momento um pouco constrangedor.
Curiosamente, alguns dias mais tarde, viria a acontecer uma situação semelhante. Já em Inglaterra, o William Carvalho entrou no meu quarto e reparou no script; distraí-me e deixei a folha pendurada à mostra. Mais uma vez tive de explicar o que era aquilo. O William achou graça e pôs-se a brincar com a situação. De repente, já tinha o Quaresma, o Renato e o Eliseu à porta do meu quarto, todos a gozarem com aquilo.
O Quaresma disse que eram rezas que eu fazia e desatámos todos a rir. Mas, mesmo no meio da galhofa, pensei para comigo: esperem para ver, porque isto vai resultar e depois quem se ri sou eu. E no fim resultou mesmo. Acabei por marcar o golo no jogo com a Inglaterra, que acabou empatado 1 a 1.
Pôr o inconsciente na ordem
Durante o jogo, é o inconsciente que lidera o nosso comportamento. Em situações de pressão e competição, existe muito pouco tempo para pensar. Tudo acontece muito depressa, a avaliação é constante, e uma falha individual pode comprometer todo o resultado de um jogo.
Em campo o que conta são os pormenores, é isso que faz a diferença. O nível de atenção tem que ser máximo e tudo acontece em segundos. Reagir com um segundo de atraso é o suficiente para não chegar à bola, para não ganhar o lance ou para não marcar.
Para garantir este nível máximo de atenção, é preciso compreender como funciona o cérebro, de que forma interagem o lado direito e o lado esquerdo do cérebro e como se processa a comunicação interna – só assim o podemos influenciar.
Passei desde então a treinar não só a parte física, como a mental, pois é aqui que muitas vezes reside o desafio. Não se trata de saber ou não saber fazer as coisas, trata-se da forma como nos predispomos a fazer as coisas.
Ou seja, quando digo que o inconsciente comanda o nosso comportamento durante o jogo, quero dizer que é essa parte da mente que coordena o comportamento. É precisamente por isso que, por vezes, a técnica e a experiência ficam um pouco comprometidas – fazendo-nos acreditar que não estivemos no nosso melhor dia.
Quando treinamos durante a semana aspetos mais técnicos, ou a tática, fazemo-lo de forma consciente, repetimos os exercícios e aperfeiçoamos os movimentos. No entanto, quando não há muito tempo para tomar decisões e a pressão é enorme, simplesmente agimos.
Muitas vezes tudo sai como esperamos e sentimo-nos completamente focados; outras, porém, acontece precisamente o contrário.
A forma como a comunicação se processa internamente é mesmo muito interessante. A Susana, a certa altura, explicou-me e para mim fez todo o sentido. Passei desde então a treinar não só a parte física, como a mental, pois é aqui que muitas vezes reside o desafio. Não se trata de saber ou não saber fazer as coisas, trata-se da forma como nos predispomos a fazer as coisas.
Eis o que aprendi:
O modo como interpretamos a realidade, ou como a experienciamos, é-nos filtrado através dos nossos sentidos: visão, tato, olfato, paladar e audição. Através dos sentidos percebemos o mundo à nossa volta, criando as nossas próprias representações internas.
Depois de absorvidas as informações, elas entram no nosso cérebro e são filtradas também pelos nossos valores, crenças, opiniões, experiência de vida e cultura, entre outras coisas. Concluído esse processo, geramos pensamentos como respostas à realidade, pensamentos que alojamos na mente, normalmente em forma de imagens. Ou seja, os pensamentos levam-nos a criar imagens daquilo que pensamos.
Estes filtros – que fazem parte daquilo que aprendemos e da forma como aprendemos – são os grandes responsáveis pelos nossos pensamentos, pela forma como olhamos para o mundo, para as pessoas e situações. Ou seja, a forma como representamos as situações internamente é um processo mesmo muito pessoal. Uma determinada situação pode ser distorcida, exagerada ou minimizada, conforme o significado que lhe queremos dar.
Por outro lado, a própria fisiologia interfere com os nossos pensamentos. A fisiologia tem a ver com a forma como nos movimentamos, a nossa linguagem gestual, a forma como respiramos, e a nossa expressão facial – o nosso corpo revela a forma como nos apresentamos ao mundo, aquilo que comunicamos sem dizer uma única palavra.
É fácil perceber que uma pessoa está deprimida ou extremamente confiante, olhando apenas para a sua postura, para a forma como se movimenta, ou até para a sua expressão facial. Estamos sempre a comunicar, é impossível não o fazer.
Quer as representações internas, quer a fisiologia são aspetos que influenciam diretamente os nossos pensamentos, as imagens que criamos quando imaginamos ou recordamos determinada situação, e a forma como interpretamos tudo aquilo que acontece à nossa volta.
Aprendi que os meus pensamentos, e a forma como eu interagia com a minha vida, tinham muito a ver com tudo isso – e nessa medida precisava de mudar algumas coisas.
Pôr as emoções em ordem
A qualidade dos meus pensamentos gerava em mim determinadas emoções, com as quais tinha dificuldade em lidar. Vou dar-vos um exemplo.
Depois do jogo da seleção em Leiria, que me tinha corrido pessimamente, fui almoçar com a Susana num restaurante em Ponte de Lima. Um senhor, que estava sentado numa mesa ao lado da nossa, não tirava os olhos de mim.
Pensei de imediato que aquele homem devia estar mentalmente a chamar-me nomes, a dizer que ali estava o “pino”, o “cone”, o tal que não tinha qualidade para estar na seleção. Automaticamente recordei o jogo e (re) criei imagens das assobiadelas monumentais. Enfim, naquele instante, fui buscar uma série de imagens relacionadas com a ideia de que ninguém gostava de mim.
Porquê? Simplesmente porque um senhor estava a olhar para mim. Porque, algures na minha memória, tinha bem gravadas aquelas representações internas e aqueles significados e associações.
Claro que comecei imediatamente a quebrar, dobrei-me mais sobre a mesa, olhei para baixo, a respiração acelerou, o sorriso desapareceu, fiquei com um ar mais reservado e pensativo. Numa palavra, fiquei triste. A Susana, que percebeu logo a mudança, começou a trabalhar para me retirar daquele estado de espírito.
Momentos mais tarde, o senhor da mesa ao lado levantou-se, dirigiu-se a nós e perguntou:
– É o Eder não é? Ganhei coragem para vir aqui apenas para lhe desejar boa sorte. Boa sorte para o Europeu. Espero que o Eder marque e que ganhemos a taça!
É impressionante como a forma como interpretamos o mundo à nossa volta se torna a nossa realidade. Eu tinha escolhido especular sobre os pensamentos daquele senhor, tinha escolhido deixar que isso interferisse com o meu estado emocional, tinha escolhido viver uma realidade que se baseava apenas e só nos meus pensamentos!
O nosso estado emocional, por sua vez, condiciona o nosso comportamento. Quando estamos tristes ou deprimidos, quebramos a postura, carregamos o semblante e provavelmente evitamos o contacto com os outros – o nosso comportamento é assim condicionado pelo nosso estado emocional. O mesmo acontece quando nos sentimos felizes, alegres e com energia – a nossa postura altera-se, ficamos enérgicos, provavelmente sorrimos e mostramos aos outros essa emoção.
O nosso comportamento é afetado pelos pensamentos que criámos. É a sequência anterior de pensamentos e emoções que vai promover o comportamento que temos e a forma como fazemos o que fazemos.
Se estamos altamente apaixonados pelo que fazemos, é nisso que pomos toda a nossa energia, o nosso esforço e empenho – e acreditamos que vamos ter bons resultados. Ao contrário, quando nos sentimos desmotivados, embora saibamos o que temos de fazer, falta-nos a força de vontade, tudo parece difícil e complicado, não conseguimos ver soluções – e os resultados que obtemos não são de certeza aqueles que gostaríamos de alcançar.
Durante este último ano e meio, trabalhei muito estes aspetos. Tentei perceber de que forma estava a interpretar o mundo, que significado estava a dar às pessoas e situações, como era a minha postura, com que cara cumprimentava as pessoas pela manhã, quantas vezes sorria.
Percebi que, fazendo pequenas alterações, podia gerar pensamentos diferentes. Passei a ser mais positivo relativamente ao presente, a suavizar o significado dos acontecimentos do passado e a começar a acreditar no futuro.
Sabia que esta nova mentalidade me iria ajudar a sentir-me bem comigo e com os outros, e com a vida que tinha tido até então. E que me ajudaria a acreditar nas minhas capacidades e naquilo que queria conquistar.
Senti a energia a passar nas minhas veias, senti a emoção de um dia fantástico e de um sorriso sincero, senti os “obrigado”, os “se faz favor”, os “com licença”, e com tudo isto percebi que estava diferente e que as pessoas notavam essa diferença no meu comportamento. Estava em excelentes condições de fazer aquilo que tinha de ser feito para atingir os meus objetivos.
As coisas são o que são, a forma como lidamos com elas é que vai fazer toda a diferença. Por isso haverá sempre quem ache que o copo está meio cheio, e quem ache que o copo está meio vazio. Nós somos os únicos responsáveis por criar a nossa realidade, e é nela que vamos viver. Eu tenho atenção à realidade que crio hoje em dia, e vivo a vida que quero viver – e não a vida que alguém me destinou.
P. S. Ainda a propósito do jogo com o Leiria, recordo-me que, ao descer ao balneário, não me poderia estar a sentir pior. Entrei e sentei-me, em silêncio, no meu lugar. Estava cabisbaixo, a olhar para o chão, quando o João Carlos, adjunto do Fernando Santos, se aproximou de mim. Percebi logo que me vinha dar uma força, um apoio.
E quando me perguntou o que se passava comigo, olhei para ele e disse-lhe: “Só fiz merda, isto correu mesmo muito mal”. Ao que ele respondeu: “Mal entraste percebi que não estavas bem. Esquece lá isso, levanta a cabeça, e segue em frente”.
Três dias depois, já de volta ao Lille, jogámos fora com o Nantes para o campeonato francês. Marquei dois golos e fiz uma assistência, ficou 0-3. Perto da meia-noite, recebo uma mensagem do João Carlos: ‘Não há como ir zangado da selecção para chegar ao clube e fazer dois golos…’
Como veem, é o poder do coaching.