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Os buracos da Segurança Social à entrada do primeiro Orçamento pós-pandemia

Já antes da pandemia, as receitas com contribuições sociais não chegavam para pagar as pensões e outras prestações sem a ajuda do Orçamento do Estado. Mas a Covid veio pesar mais nas contas.

Num cenário ideal, as contribuições para a Segurança Social seriam suficientes para pagar as despesas do sistema com pensões e outras prestações sociais. Como se poderia esperar, não é isso que acontece agora, em plena pandemia. Mas também não era o que acontecia antes. “E isso é algo estrutural”, diz ao Observador o fiscalista Luís Leon.

Embora, em termos globais, as receitas correntes fossem, no Portugal pré-Covid, superiores às despesas correntes, as contribuições (2.980 milhões de euros) não chegavam para as os encargos com pensões e outras prestações sociais (3.542 milhões de euros). Por isso, o Orçamento do Estado tem sido chamado a intervir, sobretudo para pagar as pensões não contributivas (concedidas a quem não descontou o mínimo exigível durante a carreira), as pensões mínimas ou os complementos solidários. Essa necessidade tornou-se mais evidente com a pandemia, o que reforça a ideia de que a Segurança Social é uma das grandes pressões sobre as contas do Orçamento do Estado para 2021, cuja proposta é entregue na segunda-feira.

O primeiro-ministro, António Costa, sempre se comprometeu a não mexer no Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS), uma espécie de almofada do sistema que tem sido reforçada nos últimos e que permitiria pagar pensões durante 18 meses, num cenário hipotético em que não houvesse nenhuma receita contributiva. A ideia do Governo é que o aumento da despesa — com a introdução das medidas extraordinárias para fazer face à pandemia, como o layoff — seja assegurado pelo Orçamento do Estado (OE), não sendo preciso pesar nas contas da Segurança Social.

“Todos os anos, o Estado tem usado as transferências do OE, do IVA social [uma parte da receita do IVA que é usada para financiar a receita da Segurança Social], do fundo social europeu e ‘outras receitas correntes’. Com tudo isto, somado, estamos a falar de 1,5 mil milhões de euros por ano — que não vêm das contribuições”, contabiliza Luís Leon.

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António Costa garantiu que as medidas excecionais para fazer face à pandemia serão pagas pelo Orçamento do Estado

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Este ano, só com as medidas da Covid-19, o OE deverá injetar na Segurança Social cerca de 2.500 milhões de euros, segundo as previsões que constam no Orçamento Suplementar. Deste valor, 548 milhões de euros servem para compensar a perda de receita deixada pelas isenções das contribuições sociais no layoff; e a fatia de leão — 1.943 milhões — são para as “medidas excecionais e temporárias da Covid-19” propriamente ditas (como o layoff, apoio à retoma, incentivo extraordinário à normalização da atividade, etc.). No total do ano, segundo o Orçamento Suplementar, as transferências do OE para a Segurança Social deverão atingir os 11.695 milhões de euros.

Quanto custa a pandemia? É o layoff que mais pesa

Este ano, o “desequilíbrio” (chamemos-lhe assim) entre as despesas e as receitas chegou em julho (o défice foi de 448,4 milhões de euros, menos 2.059,7 milhões de euros face ao período homólogo).

Este resultado explica-se por uma quebra da receita (fruto, por exemplo, do decréscimo das receitas com contribuições e quotizações) e um aumento da despesa (resultado do aumento dos encargos com pensões e complementos, das medidas excecionais de combate à Covid-19, e outras prestações, como a do desemprego).

"Todos os anos, o Estado tem usado as transferências do OE, do IVA social [uma parte da receita do IVA que é usada para financiar a receita da Segurança Social], do fundo social europeu e ‘outras receitas correntes’."
Fiscalista da Deloitte

Agosto trouxe uma melhoria do saldo global — nesse mês, o défice foi de 85,9 milhões. Numa nota enviada à imprensa, o gabinete da ministra do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, explicava que este valor se deve às medidas adotadas para fazer face à pandemia. E que é “temporário e deixará de se observar assim que se efetivem as transferências do OE para financiamento das medidas Covid-19” (ainda só foram transferidos 460 milhões dos 1.943 previstos).

O que contribui, então, para esta evolução? Vamos por partes.

As receitas

A Segurança Social recebe as “transferências correntes da administração central”, onde se incluem todas as transferências vindas do Orçamento do Estado ou as provenientes do fundo social europeu.

As contribuições e quotizações para a Segurança Social são as grandes contribuintes da receita. E de agosto do ano passado para agosto deste ano caíram 200 milhões de euros. Este tombo pode ser explicado com um dos mecanismos-bandeira do Governo: o layoff simplificado e o layoff 2.0 (o chamado “apoio à retoma progressiva”), que têm impactos tanto no lado da receita como no da despesa.

Horários reduzidos a zero e novos escalões. Como funcionam as grandes mudanças do “layoff 3.0”

Como influencia o layoff a receita? É que a medida implica isenções de contribuições para a Segurança Social. E havendo mais empresas isentas, menos dinheiro entra nos cofres da Segurança Social. O Orçamento Suplementar guardou 548 milhões de euros para compensar a Segurança Social destas perdas, mas segundo a execução orçamental de agosto (a mais recente) esse montante ainda não foi transferido.

As despesas

E como influencia o layoff a despesa? Até agosto, já tinha custado 822 milhões de euros aos cofres. Ou por outras palavras, 61,6% dos 1.298 milhões de euros que já custaram todas as medidas excecionais. Um valor que até terá surpreendido o próprio Governo pela positiva. É que quando o Executivo preparava este instrumento, em março, o primeiro-ministro, António Costa, chegou a dizer que a medida custaria mil milhões de euros… por mês.

Mil milhões de euros por mês é quanto custará o layoff”, disse em entrevista à TVI, a 23 de março.

António Costa poderia estar a incluir neste bolo as isenções do pagamento de contribuições para a Segurança Social no âmbito do layoff. E aqui entra o tal impacto no lado da receita. Mas, ainda assim, estaria longe dos valores anunciados inicialmente — num cenário, é certo, de grande incerteza. Além disso, até ao final do ano, algumas isenções chegam ao fim e só as micro, pequenas e médias empresas ficam dispensadas de pagar 50% da Taxa Social Única (TSU).

O sucedâneo do layoff simplificado

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O apoio à retoma progressiva (o sucedâneo do layoff simplificado) vai mudar, passando a abranger mais empresas e a ter um reforço maior para as mais afetadas. Mas quando anunciou a medida, a ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, não se comprometeu com valores específicos de despesa. Aliás, até disse que o universo das novas empresas abrangidas é “reduzido” e “não é a regra”.

Com o layoff, surgiu também o complemento de estabilização pago aos trabalhadores que viram o salário encolher devido ao layoff. E houve um aumento da despesa com prestações de desemprego (mais 163,8 milhões de euros até agosto, uma subida de 20,5% face a período homólogo). E se há menos pessoas empregadas, há menos a descontar para a Segurança Social. Além disso, as que preenchem os requisitos podem aceder às prestações de desemprego, sobre as quais não recaem contribuições sociais.

Esse é um efeito da recessão, mas há outros efeitos, nomeadamente o das escolhas políticas (visível, por exemplo, nas tais isenções à Segurança Social ou no prolongamento automático do período de pagamento dos subsídios de desemprego).

Segundo o gabinete de Ana Mendes Godinho, o défice da Segurança Social "deixará de se observar assim que se efetivem as transferências do OE"

RODRIGO ANTUNES/LUSA

Como expectável, a despesa com o subsídio e o complemento por doença aumentou em 70 milhões de euros (mais 17% face ao período homólogo). No total, as várias “medidas excecionais e temporárias Covid-19” já custaram 1.298 milhões de euros.

Em contraciclo esteve o rendimento social de inserção, cujos encargos estão a descer (foram menos 13 milhões). Em declarações ao Observador, Miguel Coelho, ex-presidente do Instituto da Segurança Social, atribui essa evolução ao facto de o apoio “não responder adequadamente às situações de carência” por ter “uma arquitetura que está desfasada da realidade”. Daí que os potenciais beneficiários optem por outros apoios, como o alimentar.

Contribuições estavam a subir 250 milhões

A receita da Segurança Social é muito mais volátil do que a despesa em qualquer ciclo económico por estar muito dependente do emprego: se o emprego sobe, ela sobe; se o emprego desce, ela desce. Por outras palavras, quando a economia está a crescer, a receita engorda com o aumento das contribuições por via da subida do emprego e dos salários. Mas quando há uma contração, essa receita cai (e aumenta a despesa, nomeadamente com prestações de desemprego).

A despesa é mais estática do que a receita. E isso está refletido, por exemplo, na despesa com pensões: sempre que há um aumento extraordinário, como tem acontecido nos últimos anos, esse valor acresce à despesa fixa futura.

“O impacto da Covid-19 é não só a queda dos 200 milhões de euros [em contribuições] face ao ano passado, como também o consumo total do crescimento das receitas que não se concretizaram”, sintetiza Luís Leon. O fiscalista da Deloitte nota ainda que, até março, as contribuições para a Segurança Social estavam a crescer cerca de 250 milhões de euros, fruto das menores taxas de desemprego e dos salários mais altos — pelo menos, por via do aumento do salário mínimo, que tem um “impacto direto nas contribuições para a Segurança Social”. “Todo o valor do aumento é receita do Estado: 35% do valor do salário mínimo vai direto ao Orçamento da Segurança Social”, explica. Mas, por outro lado, as despesas com pensões também cresciam.

A pandemia veio trazer um aumento da despesa em mais de dois mil milhões de euros no espaço de um ano. E, desta vez, ao contrário da crise anterior, a emigração não deverá ajudar a conter a despesa numa crise que é global. Aliás, “pode até haver um fenómeno contrário, que é haver mais gente a regressar”, arrisca, por sua vez, Miguel Coelho.

Sem as medidas excecionais, despesa teria subido 5% (e não 12,6%)

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Um relatório do Conselho das Finanças Públicas (CFP) sobre a execução orçamental da Segurança Social, referente a junho mas publicado em setembro, concluía que, no primeiro semestre do ano, as medidas excecionais de resposta à pandemia tinham sido responsáveis por 60% do aumento da despesa da Segurança Social. Sem elas, a despesa efetiva teria aumentado apenas 5% em vez dos 12,6% que cresceu. Nessa altura, o CFP escrevia que o layoff absorveu 71,8% da despesa especificamente de resposta à pandemia. Esse valor baixou, nas contas feitas pelo Observador, para 61,6% em agosto, o que poderá ser explicado pelo fim do layoff simplificado (em julho) e uma baixa adesão ao apoio à retoma progressiva (em agosto).

O problema é estrutural

O problema já vem de trás. Segundo a execução orçamental de agosto de 2019, nos primeiros oito meses do ano passado, as receitas da Segurança Social com contribuições e quotizações atingiram 11.972 milhões de euros, enquanto que as pensões e outras prestações sociais custaram 15.566 milhões de euros. Foram as transferências correntes da administração central (onde se incluem as transferências do Orçamento do Estado) e as transferências do fundo social europeu que ajudaram ao excedente de 2.041 milhões.

Agora, olhemos para agosto. A despesa corrente já vai nos 19.506 milhões de euros (com todas as prestações sociais incluídas). Por outro lado, as contribuições para a Segurança Social caíram para os 11.722 milhões de euros e as transferências da administração central totalizaram 6.258 milhões, o que, somado, não daria, por si só, para fazer face à despesa.

“A sustentabilidade tem que se medir pela capacidade de o sistema gerar receitas anuais para pagar a sua despesa da parte do sistema que é contributiva”, argumenta Miguel Coelho. Já Luís Leon, embora reconheça que este ano é “atípico”, constata que “precisamos de outras receitas correntes e outras transferências e dotações do Orçamento do Estado para equilibrar o Orçamento da Segurança social. E isso é algo estrutural”.

Todos os anos, o Estado tem usado as transferências do Orçamento do Estado, do IVA social, do fundo social europeu e ‘outras receitas correntes’. Tudo isto somado estamos a falar de 1,5 mil milhões de euros por ano — que não vem das contribuições”.

A crescente despesa com pensões também pesa nas contas com a Segurança Social, mas Luís Leon acredita que não é por via do aumento extraordinário das pensões (que deverá voltar a acontecer este ano), mas sobretudo pela “reconfiguração da sociedade portuguesa”.

"A sustentabilidade tem que se medir pela capacidade de o sistema gerar receitas anuais para pagar a sua despesa da parte do sistema que é contributiva.”
Miguel Coelho, economista e ex-presidente do Instituto da Segurança Social

“Quem se reformar em 2020 já terá trabalhado durante 40 anos, o que significa que fez toda a sua carreira contributiva no pós 25 de abril. Logo, não terá gaps de períodos contributivos”, o que aumenta o valor da pensão. E com o envelhecimento da população, os encargos vão aumentar.

Além disso, a entrada das mulheres no mundo do trabalho também permitiu a constituição de carreiras contributivas mais robustas.

A tendência de subida da despesa com pensões é normal por este mero efeito demográfico, de reconfiguração da sociedade portuguesa. Estruturalmente, 1974 marca uma alteração profunda no tecido trabalhador em Portugal”, afirma.

Fundo de estabilização vai “crescer de forma mais lenta”

Segundo António Costa, antes da crise sanitária, o país tinha “conseguido reforçar a sustentabilidade do sistema de pensões em mais 29 anos face ao projetado em 2015, permitindo dotar o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social [FEFSS] com um valor superior a 20 mil milhões de euros pela primeira vez na sua história”.

E agora? Este FEFSS “depende da criação de excedentes que houver no sistema”, diz ao Observador Amílcar Moreira, economista e investigador na área da Segurança Social. Por isso, “um ano em que não há excedentes do sistema significa que o FEFFS vai crescer de forma mais lenta, vai ser momentaneamente afetado”.

Falta transferir verbas para o fundo da Segurança Social

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Nos últimos anos, têm sido consignadas à Segurança Social outras fontes de receita, como o adicional ao IMI (o AIMI) ou o IVA social. Mas, no relatório apresentado em setembro, o Conselho das Finanças Públicas (CFP) escrevia que, até junho, ainda faltava transferir a receita do AIMI de 2018 (85,3 milhões de euros) e 2019 (81 milhões). Este ano, apenas foram transferidos três milhões de euros. O Observador pediu um ponto de situação do pagamento destes valores aos ministérios da Segurança Social e das Finanças, mas não obteve resposta.

O investigador apresentou, no ano passado, um estudo sobre a sustentabilidade do sistema da Segurança Social. E concluiu que o maior número de pensionistas irá fazer aumentar a despesa global do sistema, que não será compensada com a subida dos salários. Daí que, previa, o regime previdencial começasse a gerar “défices crónicos a partir de 2027”, que seriam cobertos por transferências do Orçamento do Estado.

Pensões. Idade da reforma tem de subir para 69 anos para evitar quebra do sistema

Com a pandemia estas projeções sofrem alterações? Amílcar Moreira diz que ainda não as atualizou com base nos dados atuais, mas acredita que “não voltamos rapidamente” a uma realidade em que as receitas superam as despesas. “Acho que depende da natureza do emprego que for criado e dos setores onde for criado. Se forem setores que recuperam rapidamente tudo bem, mas se for outro tipo de destruição de emprego, por exemplo, ligado a setores exportadores que perderam quota de mercado e não ganham quota de mercado” será mais difícil, considera.

O economista Miguel Coelho acrescenta que, no próximo ano, “tudo vai depender da dimensão das medidas”. É que “quanto menores forem as medidas do tipo layoff, maior será o impacto do desemprego” e o que se poupar de um lado, gasta-se noutro. E advoga uma “reforma estrutural” porque, se não acontecer, “o dinheiro do fundo de estabilização desaparece mais ano, menos ano. É uma inevitabilidade. O que o Governo dizia é que isso aconteceria em 2050, mas, com os dados deste contexto, o sistema não aguenta dez anos”, aponta.

"Um ano em que não há excedentes do sistema significa que o FEFFS vai crescer de forma mais lenta, vai ser momentaneamente afetado."
Amílcar Moreira, economista e investigador

Mas é este o melhor momento para reformar o sistema? “Na maior crise da História americana, de 1929, o New Deal e as alterações da proteção social ocorreram em plena crise. As férias pagas em França foram atribuídas em 1936, em plena crise económica. A reforma do sistema de Segurança Social não pode esperar por melhores dias. Temos de fazê-la mesmo num cenário como este.”

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