“Car-los Pe-rei-ra”. Christine Ourmières-Widener, CEO da TAP ainda em funções, com sotaque francês, nomeou o deputado do PS que esteve na reunião de 17 de janeiro, um dia antes da primeira audição da gestora no Parlamento. A reunião com o gabinete parlamentar do PS e alguns membros dos gabinetes dos Ministérios das Infraestruturas e dos Assuntos Parlamentares caiu como uma bomba na comissão de inquérito parlamentar à TAP. Carlos Pereira foi o deputado que esteve na reunião e foi um dos deputados na comissão da Economia que, a 18 de janeiro, fez questões a Christine Ourmières-Widener sobre a indemnização a Alexandra Reis, e que voltou a questioná-la a 4 de abril, já na comissão de inquérito.
Isto apesar do PSD ter pedido, nesta audição de 4 de abril, que Carlos Pereira não pudesse questionar a gestora. O tom das perguntas do socialista mudou na segunda audição, já depois de conhecida a auditoria à IGF e já depois de comunicada a demissão da CEO da TAP e do seu chairman. O Observador voltou a ouvir as intervenções do deputado Carlos Pereira nas duas audições.
A 18 de janeiro, Christine Ourmières-Widener foi ao Parlamento, à comissão de Economia, explicar a decisão de saída da administradora Alexandra Reis, que recebeu uma indemnização de 500 mil euros. Soube-se, agora, que no dia antes um conjunto de elementos “júnior” do Governo e deputados do PS estiveram numa reunião virtual com a presidente da CEO. Era um ato de gestão que estava em causa na audição que teria lugar no dia seguinte.
Carlos Pereira e o grupo parlamentar do PS não queriam a audição de janeiro. Isso mesmo o deputado fez questão de salientar na sua intervenção já na segunda ronda, explicando que se avizinhava uma comissão de inquérito e ainda não existiam conclusões da auditoria que os dois ministros (das Finanças, Fernando Medina, e das Infraestruturas, ainda Pedro Nuno Santos) tinham pedido à Inspeção-Geral das Finanças (IGF).
Sem que ainda se soubesse que a IGF iria considerar o acordo de saída de Alexandra Reis nulo e que iria considerar a atuação de Christine Ourmières-Widener e do presidente não executivo Manuel Beja culposa — o que aliás foi o argumento para que ambos fossem demitidos pelo Governo –, Carlos Pereira participou nas duas primeiras rondas de questões que essa primeira audição teve (na terceira o PS falou através de Hugo Costa e de José Carlos Alexandrino).
Na primeira ronda colocou perto de uma dezena de questões, incidindo-as no papel do chairman da TAP e dos advogados. Sempre atacando o facto de ser uma audição anterior às conclusões da IGF, Carlos Pereira ainda atenuou o facto de o secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, ter autorizado que o processo fosse espoletado. “Não há dados, não temos dados, não conseguimos avançar sobre o que é preciso saber, como foi processo, qual a responsabilidade das Finanças. Não se conseguiu avançar e vamos continuar sem conseguir avançar” antes da auditoria, atirou.
“O tema central da audição é a comunicação indispensável com o acionista. É uma matéria relevantíssima. Aquele que faz a comunicação com o acionista é o chairman da TAP. O chairman acompanhou o tema das indemnizações? Foi informado sobre esta questão da indemnização? Esteve preocupado? Informou os respetivos ministros, a dupla tutela, sobre a indemnização, que é para isso que serve o chairman?” Várias questões para perceber qual tinha sido o papel de Manuel Beja e se tinha informado governantes. O chairman da TAP voltou a entrar nas perguntas de Carlos Pereira quando questionou Christine Ourmières-Widener também sobre o processo negocial e o papel das duas sociedades de advogados que intervieram no acordo com Alexandra Reis — a SRS pelo lado da TAP e a Morais Leitão pelo lado da gestora.
No rol de perguntas na primeira ronda, Carlos Pereira levou tempo também a questionar o papel dos advogados. “É habitual na TAP que houvesse a contratação de sociedade advogados para processos desta natureza? E já trabalhava com a TAP essa sociedade?” E ainda houve acompanhamento do departamento jurídico da TAP sobre esta matéria?.
O deputado do PS ainda colocou questões sobre outras indemnizações pagas pela TAP e pediu que fossem referidas as divergências entre Christine e Alexandra. “A senhora presidente referiu e pareceu-me claro que a razão pela qual Alexandra Reis saiu da TAP não são razões pessoais, são divergências profissionais e opções estratégicas”, afirmou o deputado na introdução à pergunta: “Pode precisar em que divergiam?”
Foi nesta primeira audição que Christine Ourmières-Widener indicou que tinha tido divergências com Alexandra Reis sobre o plano estratégico.
Ainda foi nessa primeira ronda que Carlos Pereira questionou a CEO sobre a passagem de Alexandra Reis para a NAV, mas Christine Widener disse desconhecer por antecipação o destino da gestora depois de sair da TAP.
Christine não se demite. “Gestão tem a missão de seguir em frente e temos atuado de boa fé”
Na primeira ronda, Carlos Pereira terminou as suas perguntas com o plano de reestruturação, pedindo que a CEO fizesse o ponto de situação: “A entrada da CEO para este lugar tem um objetivo claro, usar bem os dinheiros públicos e garantir a reestruturação bem sucedida da TAP. A devolução [do dinheiro aos portugueses] depende disso, de um bom plano de reestruturação e a sua concretização” e, daí, a questão de saber em que ponto estava a TAP na concretização do plano, atacando o PSD, de quem disse que queria destruir antes de conhecer os factos. Um “ativo tóxico” foi como Carlos Pereira ainda apelidou o que disse ser a posição do PSD de não dizer o que teria feito se fosse Governo quando a TAP precisou de ajuda na pandemia.
Às perguntas, a CEO respondeu com um agradecimento. “Obrigada por reforçar que o objetivo é entregar bons resultados”, salientando que a TAP estava à frente das metas do plano de reestruturação. “É o que é preciso para a empresa”, declarou, respondendo esperar pelos resultados da auditoria [da IGF, que foi divulgada só a 6 de março], mas garantindo que o chairman tinha sido informado sobre o processo Alexandra Reis.
Nessa audição de 18 de janeiro, Carlos Pereira ainda voltou ao facto de a auditoria da IGF não ser, à data, conhecida. Na segunda ronda limitou-se a fazer uma intervenção a esse propósito: “O que se passou na primeira ronda e que se irá passar na segunda ronda também é voltarmos a fazer as mesmas perguntas, algumas feitas de forma completamente diferente e termos exatamente as mesmas respostas. Só sublinha e amplifica, e solicito sentido de responsabilidade aos senhores deputados, para fazermos as coisas com factos e dados. Justifica o que temos dito desde início, precisamos de mais factos e de mais dados”.
E ainda acrescentou: “Eu não sou jurista e tenho mais dificuldade em perceber isso, o senhor deputado Paulo Moniz [PSD] faz uma tese, se é legal não é legal, a senhora CEO sabe que é legal, não sabe, a questão continua a ser a mesma, o que é muito importante hoje saber é que nós precisamos de ter aquela informação que foi responsavelmente solicitada pelos senhores ministros das Finanças e das Infraestruturas para podermos fechar este ciclo do ponto de vista da responsabilidade e do que está em causa, e perceber a legalidade. E portanto o senhor deputado conclui tudo antes de sabermos dos factos, é habitual.. mas não deve acontecer assim”.
Numa declaração que ainda conclui que “esta audição foi muito importante para demonstrar que as perguntas foram todas feitas outra vez, muitas delas feitas de forma diferente, as respostas foram todas dadas, todas elas as mesmas respostas, e volta a continuar a faltar o relatório que nos permita com base nele tirar as conclusões de responsabilidade e comunicação no governo. Não temos problema com isso, já anunciámos que a comissão de inquérito irá funcionar, e, portanto, o que esperamos é que ela possa ocorrer, fazendo as mesmas perguntas, mas podendo nós ter respostas diferentes para concluirmos o ciclo”.
Depois desta introdução, não fez mais questões. Na terceira ronda, as perguntas ficaram a cargo de outros dois deputados do PS: Hugo Costa e José Carlos Alexandrino.
A segunda audição em tom diferente
Passaram-se dois meses e meio e Christine Ourmières-Widener voltou ao Parlamento. Já a comissão de inquérito estava operacional e já a auditoria da IGF era conhecida. Aliás, foi com base nessa inspeção que Fernando Medina e João Galamba anunciaram, em conferência de imprensa, a 6 de março que a CEO e o chairman da TAP iriam ser despedidos.
O tom com que Christine Ourmières-Widener foi recebida por Carlos Pereira desta segunda vez foi já diferente. Antes de começar a inquirição à CEO da TAP, já se tinha anunciado ter existido a reunião com elementos do grupo parlamentar do PS, mas ainda não se sabia nomes.
E foi por isso que o PSD ainda tentou, antes da inquirição do PS, que o presidente da comissão, o socialista Seguro Sanches, perguntasse ao Partido Socialista quem tinha estado na reunião de 17 de janeiro. “Só depois disso poderemos ter garantia de que a intervenção responde à transparência que é exigida”, confrontou Paulo Moniz. Seguro Sanches não fez a pergunta e autorizou que o PS tomasse a palavra. “O regime das comissões parlamentares de inquérito é bastante rigoroso nas incompatibilidades. Assinámos todos no início uma declaração de não existência de incompatibilidades. E estamos todos de forma individual, deputados eleitos pelo povo e estamos aqui para o apuramento da verdade”.
Ainda houve oportunidade para Filipe Melo, do Chega, declarar o seu desconforto pela inquirição do PS, não se sabendo, nessa altura, se algum deputado tinha estado na reunião. “Aspetos éticos ficam à ordem de cada um”, conclui Seguro Sanches, dando a palavra a Carlos Pereira que não revelou, nessa primeira ocasião, que tinha estado na reunião, optando por afirmar que não era o PS que estava a ser alvo de inquérito, deixando apenas no ar a interrogação se todos os grupos parlamentares poderiam dizer que não tiveram informação em nenhum momento da TAP ou da sua presidente.
Seguiu-se um conjunto de 32 perguntas à CEO da TAP por parte de Carlos Pereira, que desta vez se virou diretamente para a atuação de Christine: “Assume integralmente todos os atos da sua gestão? Mesmo os atos que conduziram a uma situação de nulidade e ilegalidade relacionada com a saída de Alexandra Reis? Mesmo aqueles atos que ignoraram o enquadramento do setor empresarial do Estado e do Estatuto de Gestor Público, assume-os totalmente?” Carlos Pereira pretendia um ato de contrição de Christine Ourmières-Widener, que se refugiava dizendo que tinha sido uma decisão coletiva, incluindo comissão executiva, conselho de administração, advogados e Governo. “Não foi uma decisão sua, mas concordou com ela?”, continuava o deputado no mesmo tom, dizendo mesmo que a gestora tinha caído numa contradição. “O cerne da comissão parlamentar de inquérito é a saída de Alexandra Reis e guardou para si todo o processo”.
Inquirida sobre o que deu origem à saída de Alexandra Reis, foi em respostas a Carlos Pereira que Christine falou das alegadas tensões entre a gestora que acabou por sair com indemnização e o administrador financeiro. Tensões que, mais tarde, Alexandra Reis diria que tinham acontecido apenas uma vez.
Carlos Pereira insiste, desta vez, nas divergências entre a CEO e Alexandra Reis. “O desalinhamento nunca é bom para nenhuma equipa. Não foi a única razão. Mas houve um factual desalinhamento”, assegura a CEO, que acaba por deixar a ideia de que Alexandra Reis não tinha o perfil para ficar na função que Christine queria ter na comissão executiva e que a levou a propor ao Governo uma reorganização. Pretendia-se uma gestora com experiência em consultoria estratégica. Sofia Lufinha foi a escolhida. Carlos Pereira insiste que esta organização e a saída de Alexandra Reis eram um projeto de Christine, que fez com que o assunto não fosse discutido no conselho de administração.
Para o deputado socialista, nesta segunda audição não havia qualquer evidência na documentação apresentada pela CEO de divergências com Alexandra Reis, ao que Christine respondeu que não eram questões pessoais, mas profissionais. Carlos Pereira prossegue a inquirição criticando o powerpoint apresentado pela CEO em que não há indicação de qualquer conversa com Hugo Mendes em que se dá a instrução para avançar com a negociação com Alexandra Reis. Christine puxou da agenda e revelou uma conversa por teams com o secretário de Estado.
“Não estou a dizer que está a mentir, só que não há demonstração que ocorreu a não ser agenda. É a sua palavra”, atira o deputado que acaba por dizer: “é porventura o tema mais relevante do powerpoint e diz que o Governo deu indicações que a instruiu a falar com Alexandra Reis e a negociar o preço e não está essa reunião no powerpoint” que Christine mostrou no início da audição e que, como respondeu, foi encurtado já que a primeira versão teria 30 páginas. Carlos Pereira concluiu a ronda insistindo que a decisão recaia em Christine.
Só que a bomba chegaria de seguida. Paulo Moniz, do PSD, tomou a palavra e questionou a CEO da TAP sobre se algum deputado presente na comissão teria estado na reunião de 17. “Car-los Pe-rei-ra”.
Novos protestos do PSD. E na segunda ronda o PS tinha novamente o deputado Carlos Pereira a questionar a CEO. Para começar com a indicação de que o conselho de administração tinha aprovado por unanimidade, a 1 de fevereiro (portanto Alexandra Reis e a TAP já estavam a negociar a saída e no dia seguinte o advogado da gestora enviaria uma última proposta de acordo), a nomeação de Alexandra Reis para uma comissão de cultura e pessoas da TAP. Unanimidade significa que Christine também aprovou, o que Carlos Pereira considerou: “um inexcedível exercício de cinismo da CEO da TAP”.
Christine — Não sou a única a tomar decisão. Foi uma proposta feita pelo board, e chairman. E não pela comissão executiva. [A Alexandra Reis] estava com recursos humanos, era lógico que estivesse na comissão, mesmo estando o processo a decorrer. Não há cinismo. Não somos más pessoas, somos gestores a tentar fazer o que deve ser feito. Não foi a minha decisão. Foi do conselho de administração e eu sou um membro à volta da mesa.
Carlos Pereira — Não disse que eram más pessoas, disse que era cinismo e o confirmou cinismo, porque estava lá, e não explicou que não estava em curso a saída. E demonstra que tomou sempre a decisão sozinha e não a partilhou com ninguém.
Christine — Está a tirar conclusões. Não foi o que eu disse.
A inquirição continuou no mesmo registo. Carlos Pereira queria provar que a decisão da saída de Alexandra Reis tinha sido tomada por Christine e só por ela. “Não justificou, até agora, de forma perentória porque considera que a conclusão da IGF – de que o ato de demissão é nulo e foi conduzido por si – não justificou de maneira nenhuma a razão pela qual não considera esse ato nulo. Não acha que enquanto CEO da TAP, o mais alto membro da comissão executiva, tem de conhecer obrigatoriamente aquilo que é a lei principal que rege as empresas públicas?” A consulta aos advogados especializados é o argumento de defesa da CEO. Ao que Carlos Pereira questionou porque não tinha Christine confrontado o seu advogado quando este inicialmente a alertou para o que considerava ser uma proposta (inicial de Alexandra Reis) “politicamente e economicamente inaceitável”.
Christine — Os advogados não são contratados para questões políticas. Era uma questão para o secretário de Estado ver se era politicamente aceitável. O valor era muito elevado, mas não me cabia a mim comentar.
Carlos Pereira — Quem assinou a saída foi a eng. Christine e não o secretário de Estado. Era avisado questionar o que se passava com este aviso.
E, depois, o deputado quis saber se o departamento jurídico da TAP foi também questionado, tal como pretendeu saber porque teve, a determinada altura, a CEO da TAP pressa para fechar o acordo.
Carlos Pereira terminou a inquirição já com os olhos dos restantes deputados em cima de si. Paulo Moniz aproveitou para realçar a “postura franca e as respostas completas” da CEO. “Estas comissões são conhecidas por induzirem doença por esquecimento, amnésia, ficámos com um grande registo da capacidade de responder ou tentar responder a tudo”, salientou o socia-democrata.
Numa última ronda, e na comissão em que Paulo Moniz pediu para o deputado do PS presente na reunião de 17 de janeiro não fazer questões, Carlos Pereira ainda foi à terceira ronda, questionando se tinha havido relação entre o acordo de saída de Alexandra Reis e a sua ida para a NAV, mas insistiu nas responsabilidades da CEO no caso Alexandra Reis.
“O secretário de Estado das Infraestruturas [Hugo Mendes] interpretou que não atuou em conformidade [e demitiu-se]; o ministro [Pedro Nuno Santos] assumiu também que não tinha atuado; a TAP prescindiu da colaboração da SRS Advogados e considerou que não esteve à altura; Alexandra Reis, depois de conhecer relatório da IGF, disse que entregaria a indemnização; todos estes envolvidos tomaram responsabilidades. A CEO, que esteve envolvida até à medula, não tira nenhuma responsabilidade nem conclusão”, atirou Carlos Pereira para terminar a sua inquirição com os fundos Airbus e com uma outra pergunta: que conversas tinha tido com os ministros antes da conferência de imprensa. “Teve ou não antes da conferência uma reunião com ministro das Infraestruturas [João Galamba] em que a informou que iria ser demitida?”
Christine acabaria por confirmar a reunião. Antes tinha dito que tinha sabido da demissão na conferência de imprensa.
À medida que a audição se ia desenrolando, a 4 de abril, a oposição pedia a cabeça de João Galamba, de Ana Catarina Mendes e queria também explicações de Eurico Brilhante Dias (líder parlamentar do PS) e de António Costa. O primeiro-ministro só esta segunda-feira se pronunciou sobre a comissão de inquérito, mas não sobre a reunião de 17 de janeiro. A comissão de transparência da Assembleia da República vai analisar se Carlos Pereira infringiu o regimento que requer isenção. Carlos Pereira voltou aos trabalhos na audição, no dia seguinte, a Alexandra Reis. Mas sem fazer qualquer pergunta. E não ficou até ao fim. Já sobre a audição a Christine, Seguro Sanches terminou-a dizendo que “tinha sido uma reunião produtiva e com bons resultados”.