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Os negócios, as mulheres e os telemóveis chineses. A vida de Rui Salvador contada pelo próprio

Começava por baixo e chegava sempre a gerente. Leiloou telemóveis chineses e vendeu um dispositivo que prometia poupar combustível. A vida do burlão da LibertaGia está toda online. Fomos atrás dela.

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“O meu nome é Rui Salvador. Nasci em Portugal, numa vila chamada Alhos Vedros, em janeiro de 1979. Venho de uma família pobre, que sempre lutou para ter qualquer coisa na vida.”

Era assim que Rui Miguel Pires Salvador se apresentava em 2010. Na altura, o português tinha então regressado de Inglaterra, onde havia morado durante cerca de dez anos. Foi aí, em Bristol, que, entre altos e baixos, começou a investir em vários negócios — venda de sandes, bolos e sumos e até num restaurante. De empregado de balcão, chegou a diretor de duas empresas britânicas, a S.F.D.S. Limited e a Golden Rush Enterprise Limited, por ele criadas.

Por volta de 2009, regressou a Portugal. Com uma mão à frente e outra atrás, como gostava de contar. Foi na Quinta do Conde, onde se instalou com a família, que se iniciou no marketing multinível (por outras palavras, em esquemas em pirâmide online). Com “esforço e dedicação”, conseguiu arrecadar milhões e decidiu ajudar outros que, como ele, também sonhavam um dia serem milionários.

A história está toda na internet — contada pelo próprio. E nós fomos atrás dela.

A vida online de Rui Salvador começou, tanto quanto se sabe, em 2010. Foi nesse ano, em fevereiro, que iniciou um blog chamado “A Caminho da Felicidade” onde, durante cerca de um ano, publicou pequenos textos — sobre ele, sobre a sua história e sobre os produtos que, na altura, comercializava através de sites de leilões.

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É por aqui que se consegue começar a perceber um pouco da história do antigo diretor da LibertaGia. A ida para Inglaterra, a família pobre, o regresso a Portugal e o trabalho com o cunhado, Nuno Mergulhão. O blog, abandonado em janeiro de 2011, deu lugar a um site, o ruisalvador.com, desativado em agosto de 2015, altura em que a história da LibertaGia chegou aos jornais. Muitos dos posts que publicou estão ainda disponíveis no Internet Archive, uma biblioteca digital que guarda informações relativas a sites, aplicações, música e vídeos.

Durante cerca de dois anos, a sede da LibertaGia funcionou no Parque das Nações, em Lisboa

Michael M. Matias/Observador

É a partir da altura em que abandona os estudos, no 11º ano, que Rui Salvador começa o seu percurso profissional e empresarial. Começou então por trabalhar “a tempo inteiro como armador de ferro nas obras”. No seu site, o português explicou que chegou a ganhar “um bom dinheiro”, que gastou durante a “juventude”. “Acham que sinto remorsos por ter gasto dinheiro? Claro que não, aproveitei bastante o que tinha.”

Rui Salvador cresceu no seio de uma “família pobre, que sempre lutou para ter qualquer coisa na vida”. “Ensinaram-me o que deve ser ensinado. ‘Estudas, estudas, estudas, estudas, e um dia serás alguém, terás um emprego com um cargo alto’. Não quero dizer que a escola é um desperdício de tempo, até porque ainda hoje em dia estudo — mas estudo o que quero e o que realmente tenho interesse em aprender”, admitiu no seu site.

Depois de abandonar a escola, Salvador terá trabalhado no Sindicato dos Profissionais de Seguros de Portugal (SISEP), entre 1996 e 1998, de acordo com um curriculum vitae publicado no people per hour, uma plataforma online para trabalhadores independentes. Contactado pelo Observador, o SISEP garantiu que nunca empregou nenhum Rui Miguel Pires Salvador. Sobre a possibilidade de o português ter estado inscrito como sócio, a organização sindical referiu que esse tipo de informação é confidencial.

A seguir ao SISEP, ter-se-ão seguido dois anos na Polícia Militar do Exército, no Regimento de Lanceiros n.º 2. Ao Observador, o Exército Português confirmou que “o cidadão cumpriu o Serviço Militar Obrigatório no Regimento de Lanceiros n.º2, sendo incorporado em julho de 1999“.

De Alhos Vedros para o mundo

Em 2000, então com 21 anos, Rui Salvador muda-se para Inglaterra. Durante cerca de dez anos terá morado em Bristol, onde terá conhecido a primeira mulher. De acordo com o seu próprio relato, começou por ganhar a vida como empregado numa coffee shop, a BB’s Coffee and Muffins, onde terá chegado a gerente. Mas, já na altura, Salvador tinha um espírito empreendedor. “Cheguei a gerente numa rede de coffee shops, tinha os melhores resultados da empresa numa rede de 70 lojas.” Mas não era suficiente.

Quatro anos depois, abandona o cargo de gerente e monta o seu próprio negócio — o primeiro de muitos. “Saí desse emprego para me aventurar em meu nome. Comecei com um carrinho de mão e uma caixa térmica cheia de sandes, bolos e sumos. Andava de loja em loja a vender”, contou no seu site.

O negócio começa mal, mas Salvador não se deixa abater. “Ao fim do primeiro mês, já não tinha mãos a medir. Tive de comprar um carro e contratar um empregado para o conduzir, porque não tinha carta.” Um ano depois, em 2005, já tinha o seu próprio restaurante, “com várias carrinhas a entregar comida por toda a cidade.” Foi nessa altura que conheceu a primeira mulher, uma “louraça inglesa”, que, mais tarde, o terá deixado na penúria.

“Ao fim do primeiro mês, já não tinha mãos a medir. Tive de comprar um carro e contratar um empregado para o conduzir, porque não tinha carta.” 
Rui Salvador, antigo presidente da LibertaGia

A existência da empresa de distribuição de refeições, referida por Salvador, é confirmada pelos registos da Companies House, um departamento do governo britânico responsável pela criação e dissolução de empresas Lda. De acordo com o departamento, o português terá criado a 21 de abril de 2004 a S.F.D.S. Limited, uma empresa de catering com sede no número 119 de Sandholme Road no bairro de Brislighton, em Bristol.

Este foi o primeiro de muitos feitos alcançado pelo português de Alhos Vedros que, graças a “muito trabalho” e “dedicação”, conseguiu sempre chegar a gerente de todos os locais onde trabalhou. Pelo menos assim o assegura.

A S.F.D.S. Limited foi dissolvida em junho de 2010, depois de terem sido emitidos dois avisos de fecho — um em 2007 e outro em 2010, em fevereiro. Jo Johnstone, assessora de imprensa da Companies House, explicou ao Observador que, “neste caso, a empresa foi fechada por não ter entregue os documentos legais necessários”. Ou seja, Rui Salvador falhou em apresentar as contas anuais da S.F.D.S. Limited ao departamento britânico.

A “louraça inglesa” fugiu. “Parecia o fim do mundo”

Tudo parecia correr de vento em popa para Rui Salvador, mas eis que uma tragédia se abateu sobre a vida do português. A mulher com quem estava casado há cerca de três anos, abandonou-o. “Para mim, parecia que era o fim do mundo”, desabafou no seu site, numa entrada de 28 de janeiro de 2013 em que conta as aventuras e desventuras em Inglaterra.

Com o divórcio, vieram as contas. “Começaram-se a amontoar e perdi o resto que tinha quando me divorciei.” A mesma ideia, surge num outro post, de 13 de outubro de 2012, em que Salvador refere que passou de “ter muito dinheiro” a “ficar sem nada”, depois de a ex-mulher o “deixar”.

Rui Salvador viveu durante cerca de dez anos em Bristol, no sudoeste de Inglaterra

Getty Images

É também nesta altura que o nome de Rebecca Salvador surge nos registos da Companies House. A 17 de agosto de 2006, a britânica apresentou demissão do cargo de secretária da S.F.D.S. Limited. A data coincide com o relatado por Rui Salvador.

Divorciado e na miséria, o antigo diretor da LibertaGia começou a alugar quartos na casa onde vivia. Era uma maneira de conseguir arranjar algum dinheiro, enquanto não conseguia encontrar um outro emprego. “Entretanto, arranjei um trabalho de limpezas. Não era perfeito, mas passado dois meses virei gerente”, contou Salvador. “Já estava melhor.”

Ao trabalho na empresa de limpezas, seguiu-se um emprego num bar local, o Atrix. Mais uma vez, o esforço e dedicação de Rui Salvador compensaram, e o português chegou — mais uma vez — a gerente. “Recebia dinheiro de arrendar os quartos, trabalhava de dia como gerente na empresa de limpezas e trabalhava de noite como gerente do bar até às quatro da manhã. Dormia cerca de três horas.”

De acordo com o curriculum vitae publicado no site people per hour, Rui Salvador terá trabalhado como gerente no Atrix entre 2007 e 2008. Contactado pelo Observador, o bar de Bristol confirmou que o português trabalhou de facto no estabelecimento durante o período referido, mas não como gerente. “É um negócio de família, gerido por pai e filho. O Rui trabalhou connosco, mas atrás do bar”, disse fonte do Atrix, que preferiu não ser identificada.

Data também de 2007 o emprego na First Group, uma empresa de transportes britânica. O Observador contactou a First no sentido de confirmar se o português terá trabalhado na empresa como condutor de autocarros. Até ao momento, ainda não obteve resposta.

Foi nesta altura, entre o trabalho no bar, na empresa de limpeza e na companhia de autocarros, que Rui Salvador conheceu a segunda mulher, a polaca Sylwia Monika Bos.


Adeus, Inglaterra. O regresso a Portugal

Em 2009, Rui Salvador, na companhia de Sylwia Bos e das duas filhas, fez a viagem de regresso a Portugal. Mas antes disso, ainda se aventurou num último negócio por terras de sua majestade — a empresa Gold Rush Enterprise Limited, referida por vários jornais como sendo um negócio de compra e venda de ouro, muito semelhante àqueles que floresceram na altura em Portugal.

De acordo com a Companies House, a Gold Rush foi criada em novembro de 2008. A natureza do negócio? “A ser fornecida no próximo relatório anual de contas.” Pouco claro, não?

O site da empresa também não ajuda. “A Gold Rush Enterprise Limited está aqui para o ajudar a ter sucesso. Oferecemos vários tipos de serviços e produtos. Dê uma vista de olhos, tenho a certeza de que podemos ajudá-lo e que vai encontrar aquilo de que está à procura”, podia ler-se na página inicial do greltd.co.uk, agora desativado, mas ainda disponível no Internet Archive.

Os “vários tipos de serviços”, que pareciam ser direcionados a imigrantes, tinham como base o “conhecimento geral”. Conselhos legais, sobre impostos, sobre como abrir uma empresa e até sobre discriminação racial — o greltd.co.uk tinha a solução para (quase) tudo. “Não vale a pena sofrer porque perdeu o emprego ou por outra razão qualquer. Existe sempre uma maneira de superar os obstáculos da vida. É aí que nós entramos”, alegava a Gold Rush.

"O nosso serviço principal é fornecer informação sobre qualquer coisa que queira obter ou que tenha problemas em obter."
Gold Rush Enterprise Limited

Os “conselhos” podiam ser obtidos através de uma afiliação de três meses, seis meses ou de um ano, que podia custar entre 54,36 e 135,91 euros. Cada afiliação dava direito entre 30 minutos a uma hora de consulta semanal com os “representantes” da Gold Rush.

Mas a empresa teve uma vida curta. Foi dissolvida, em julho de 2010, altura em que Rui Salvador já se encontrava em Portugal. O motivo? O mesmo que levou ao fecho da S.F.D.S. Limited — não foram entregues os documentos legais necessários.

Segundo relatou o português no seu site, terá sido a complicada situação económica em que vivia que fez com que regressasse a Portugal. Afinal, os cargos de gerente que tinha acumulado não eram suficientes.

Telemóveis chineses: Jackpot!

Uma vez em Portugal, o português instalou-se na Quinta do Conde, onde morava a irmã, Cidália Mergulhão, e o cunhado. Nuno Mergulhão era então dono de uma oficina de automóveis, a Pneus Condense, e foi aí que Rui Salvador começou por trabalhar. “Comecei por ajudar o meu cunhado na loja dele, mas fui sempre procurando outras formas de complementar o meu rendimento”, contou no mesmo post de 28 de janeiro de 2013.

“Sem qualquer conhecimento de mecânica, meti mãos ao trabalho. Fiz, e continuo a fazer, o que posso para ajudar. Em compensação, ele começou a pagar-me 700 euros todos os meses. Nada mau, para o meu primeiro mês. Mas e a minha família? 700 euros para todos tornava as coisas um pouco difíceis…”, referiu numa entrada do blog “O Caminho da Felicidade”. “Tinha de arranjar um outro trabalho, ou utilizar os meus conhecimentos.”

Os “conhecimentos” levaram Salvador novamente à internet. “Comecei a estudar o mercado online em Portugal. Vi um grande mercado para os produtos estrangeiros, provenientes dos países asiáticos. Jackpot! Tinha os conhecimentos indicados. Só faltava estudar os custos e alfândegas.”

Por esta altura, o jackpot de Rui Salvador eram réplicas chinesas de telemóveis topo de gama, que vendia em leilões na internet. O ex-diretor da Libertagia chegou mesmo a criar um site, o mobileweb200.com, que usava exclusivamente para vender telemóveis e respetivos acessórios, que importava da China.

Enquanto isso, tentava recrutar colaboradores, tentando convencê-los de que podiam “aprender a vender os produtos e ganhar muito dinheiro no processo”. “Não sou nenhum sábio, mas sei ensinar o que sei. Sempre é um ponto de partida, onde não terás de sofrer para aprender… Apenas terás de ler”, escreveu no seu blog. Salvador parecia ter a receita para o sucesso.

Mas as coisas não correram como esperava. “Os meses que se seguiram foram uma guerra que perdia constantemente. Tive de começar a lavar carros nos tempos livres, juntamente com a minha mulher, para tentar recuperar o dinheiro perdido.” O site, criado em 2010, foi desativado ainda no mesmo ano, altura em que Rui Salvador terá abandonado o negócio da China para se dedicar a outro.

“Depois de ter deixado de vender telemóveis, concentrei-me numa área do meu interesse. Ajudando o meu cunhado Nuno na loja de pneus, decidi concentrar-me ainda mais e abrir a porta para comercializarmos mais e melhores produtos”, referiu na sua última entrada no blog, datada de 23 de janeiro de 2011. A vida de Rui Salvador estava prestes a mudar.

Rui Salvador e o negócio da poupança de combustível

Depois da loja de pneus e dos telemóveis chineses, Rui Salvador, sempre em busca de um negócio mais rentável, decidiu dedicar-se à comercialização de dispositivos de poupança de combustível automóvel. Para tal, juntamente com o cunhado Nuno Mergulhão, criou uma nova empresa — a Moletronic Portugal Lda.

De acordo com o Portal da Justiça, a Moletronic, com sede na Rua Gama Pinto, lote 249, na Quinta do Conde, foi criada em março de 2011, com um capital social de seis mil euros. No registo da empresa, surgem como sócios Cidália Mergulhão, o marido, Nuno Mergulhão, e Rui Salvador. Envolvido no negócio, estaria também Luís Mota Capucho, um engenheiro metalúrgico e “consultor de custos energéticos” de Reguengos de Monsaraz.

Segundo os documentos disponíveis no Portal da Justiça, a empresa teria como objetivo comercializar, montar, importar e exportar “produtos de poupança de energia ecológicos e de assistência técnica”, peças e acessórios para automóveis e ainda “compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim”. O produto mais importante da Moletronic era o Moletech Fuel Saver, que prometia uma poupança de até 20% no consumo automóvel.

carros,

Um panfleto de divulgação do Moletech, um dispositivo de poupança de combustível

De acordo com um antigo site da Moletronic, Rui Salvador e os restantes sócios teriam o direito exclusivo da comercialização deste produto em Portugal, que seria fabricado por uma empresa de Taiwan. A comprovar a eficácia do mecanismo, com “uma grande reputação no mundo inteiro”, Rui Salvador tinha à sua disposição vários “estudos” científicos, que teriam sido realizados por inúmeras “universidades e identidades idóneas e independentes de renome internacional”.

Na página “Testemunhos“, é ainda possível ler o relato de várias empresas que — supostamente — teriam usado o Moletronic. Uma dessas, a Tracomed Lda., pertenceria ao Grupo Linde, uma empresa internacional de fornecimento industrial. Porém, contactada pelo Observador, a Linde garantiu que a “Tracomed não pertence nem nunca pertence ao Grupo Linde”.

Em 2012, o mecanismo chegou a ser notícia na Automotor, uma revista portuguesa de automóveis que pertencia ao grupo Cofina. “Tudo começou com um email enviado à nossa redação. A proveniência? Luís Mota Capucho”, escreveu o jornalista Bruno Castanheira no artigo “Ver para crer”, publicado em maio.

Mas o investimento publicitário da Moletronic Portugal Lda. não se ficou por um artigo numa revista de automóveis. Rui Salvador chegou a ter um expositor montado na Expo Salão da Batalha, de 2012. As fotografias ainda estão disponíveis na página de Facebook da empresa portuguesa.

No artigo da Automotor, Bruno Castanheira não pôs de lado a hipótese de o Moletech provocar uma redução no consumo de combustível. Porém, deixou uma advertência: “Mas, sejamos sinceros: os 175 euros que custa esta solução dão para adquirir 103,24 litros de gasolina 95 e 116,74 litros de gasóleo ditos ‘normais'”. Contudo, a opinião do jornalista não era consensual.

Na internet, as opiniões dividiam-se. No “Poupar Melhor”, um site dedicado a soluções de poupança, um artigo em particular provocou a ira de Luís Capucho. “O problema destes produtos é que exageram na poupança que reclamam. A primeira impressão logo que vi o anúncio de poupança de ‘até 20% no combustível’ foi a de ‘porque é que os construtores ainda não se lembraram disto’?”, escreveu um dos autores do site, numa publicação de 20 de novembro de 2011.

"Num mundo em que os combustíveis são cada vez mais caros, surgem facilmente vendedores da banha da cobra, a dizerem que têm uma solução milagrosa para o problema."
A. Sousa, no "Poupa Melhor"

Um troca de comentários menos agradáveis, tanto no site como no Facebook, levou a que Capucho enviasse um DMCA take down notice para os servidores do “Poupar Melhor” nos Estados Unidos da América e fizesse com que o site fosse deitado a baixo, por infração do direito autoral. O engenheiro metalúrgico, assim como Rui Salvador, chegaram até ao ponto de ameaçar os autores do “Poupa Melhor” de que os colocariam em tribunal.

Mas, à semelhança de outros projetos, também a Moletronic Portugal Lda. acabou por desaparecer. Enquanto isso, na Pneus Condesse, as coisas também não corriam bem. “Ao fim de um ano e meio a crise atacou a loja, e o meu cunhado foi forçado a vendê-la. Fiquei apenas a trabalhar numa empresa que tinha criado, mas que também não estava a ter resultados significantes.”

As contas voltaram então a amontar-se, mas a solução para os problemas de Rui Salvador estava mais perto do que ele próprio pensava.

“A caminho da felicidade”

“Depois de muito esforço e trabalho, a tentar convencer clientes a comprar um produto extremamente difícil de vender, e ao fim de meses à procura de algo que nos tirasse da miséria, um senhor que trabalhou comigo em Inglaterra, chamado Neale, falou comigo através do Facebook e contou-me sobre um negócio online, do qual podíamos comprar um pacote e receber duas vezes o que compramos.” O negócio era a Banners Broker.

A Banners Broker International Inc. era uma empresa de marketing multinível criada em 2010 por um grupo de canadianos sediados em Belize, um pequeno estado localizado na costa nordeste da América Central. O esquema era muito semelhante ao da LibertaGia: o principal negócio era visualização de publicidade na internet e tudo era negociado em dólares norte-americanos. A sede fiscal estava na Ilha de Man.

A Banners Broker operava em várias dezenas de países, incluindo os Estados Unidos da América, Canadá, Portugal e Índia. Prometendo uma rentabilidade de 4.045%, no espaço de dois anos, a empresa terá recrutado cerca de 250 mil afiliados. Em fevereiro de 2013, a DECO chegou mesmo a lançar um alerta, acusando a empresa de multinível de se tratar de um esquema piramidal, “intitulada como uma empresa de publicidade online que comercializa impressões”. Em março de 2014, a empresa entrou em insolvência, deixando milhares de pessoas numa situação muito semelhante à dos afiliados da LibertaGia.

Rui Salvador teve o primeiro contacto com a empresa de multinível da Ilha de Man em 2012, altura em que participou numa convenção organizada pela Banners Broker no hotel Tivoli Victoria, em Vilamoura, no Algarve. A história, no mínimo extraordinária, foi uma das relatadas no seu site.

A convenção organizada pela Banners Broker em Portugal decorreu em Vilamoura, no Algarve

Arquivo T&Q

“Quando chegámos a julho, estávamos completamente sem dinheiro para ir à convenção da Banners Broker no Algarve”, escreveu o ex-diretor da LibertaGia. “Só tínhamos mesmo combustível suficiente para ir de Lisboa ao Algarve. Nunca mais me esquecerei do dia em que tomámos a decisão, depois de uma longa conversa.” Sem dinheiro e com a gasolina contada, Rui Salvador e Sylvia Bos saíram da Quinta da Conde, onde então viviam, em direção ao Algarve. O panorama, negro, começou a mudar assim que o casal pôs os pés em Vilamoura.

Na Banners Broker, o dinheiro parecia nascer nos bolsos. Durante os sete dias que durou a convenção, Salvador e a mulher conseguiram amealhar cerca de 200 euros e um computador portátil. Uma parte do dinheiro, foi-lhes dada pessoalmente por Lorenzo Guarini, um dos representantes da empresa presentes no evento. “Durante a semana, marcamos uma reunião com o Lorenzo Guarini, na qual contámos, junto à piscina do hotel, a nossa história e que, mesmo com tudo contra a nossa ida, persistimos em ir.”

Comovido com a história de Rui Salvador, Guarini não perdeu tempo em sacar um molho de notas do bolso. “O Lorenzo vai à carteira e tira 120 dólares norte-americanos, põe-nos na mesa e diz ‘ok, isto é para vocês’. Eu e a Sylvia, embaraçados, olhamos um para o outro. Empurrei o dinheiro de volta para ele, e disse que não foi para aquilo que lhe estive a contar a nossa história. Não tinha feito nada para receber aquele dinheiro, e não achava correto. O Lorenzo, com uma cara muito séria, disse-me: ‘A mim não me faz diferença nenhuma, para vocês faz toda’.

"A mim não me faz diferença nenhuma, para vocês faz toda. Não peço que mo devolvam, mas sim que, mais tarde, façam o mesmo por outra pessoa que necessite."
Lorenzo Guarini, representante da Banners Broker

Para Rui Salvador, este foi o início de tudo.

“Cursos Rui Salvador”, como ganhar dinheiro online

Ao fim de mais dez anos a investir em negócios online, os esforços de Rui Salvador começaram finalmente a dar frutos. “Já consegui recuperar daquele ponto em que me sentia a afogar em dívidas, em que só me apetecia chorar e gritar e em que a minha família olhava para mim com dúvidas”, escreveu em 2013.

A Banners Broker foi apenas a primeira de várias empresas de marketing multinível em que o português esteve envolvido. À empresa da Ilha de Man, seguiram-se outras — a Pure Leverage, a Rippln e a AliveMatrix. Foi nesta última que conheceu os brasileiros Edson Silva, um dos principais rostos da LibertaGia Mondial, e William Gil, que também esteve inicialmente envolvido no projeto.

Salvador descobriu a AliveMatrix no início de 2013, através de Edson Silva, que há muito lhe “vinha a falar nesta empresa”. O primeiro investimento foi feito pouco tempo depois, na sequência de uma apresentação em Portugal, em fevereiro do mesmo ano. De acordo com fonte próxima da LibertaGia, o português manteve-se ativo na empresa até outubro desse mesmo ano. “Esteve com o Edson Silva e o William Gil na AliveMatrix. Quando a LibertaGia começou, os três fizeram uma pausa no projeto. Quando o William Gil saiu, acho que voltou a pegar na empresa”, contou a mesma fonte ao Observador.

Mas, mais do que ganhar dinheiro, Rui Salvador queria ajudar os outros a lucrar. No seu site, multiplicavam-se os posts em que divulgava os seus segredos “para ganhar dinheiro online“. Para tal, chegou mesmo a criar os “Cursos Rui Salvador”, com “dicas e estratégias” que utilizava nos seus “negócios”. Um desses cursos, dizia respeito a “como publicitar gratuitamente no Facebook”.

"Mais que tudo, adoro ajudar os que realmente necessitam. Não são os sistemas que utilizamos que nos alteram a vida, são as nossas atitudes e humildade, para aprender e ensinar."
Rui Salvador, antigo presidente da LibertaGia

Para além de poderem participar nos cursos, os interessados podiam ainda revendê-los, “e ganhar 80% em comissões”. No Facebook, uma plataforma essencial para a divulgação dos seus negócios, Salvador chegou até a criar um grupo de apoio, ainda hoje ativo.

Daí para a LibertaGia foi um passo. O anúncio surgiu a 28 de setembro de 2013: “O meu nome é Rui Salvador e sou presidente e CEO da LibertaGia.” O resto é história.

O escritório da LibertaGia começou por funcionar no Edifício "Smart", no Parque das Nações

Michael M. Matias/Observador

“É como a Dona Branca, que era uma velhinha simpática”

Desde que criou o primeiro blog, em 2010, até ao fecho da LibertaGia, em agosto de 2015, o discurso de Rui Salvador permaneceu o mesmo. Recorrendo à sua história e experiências pessoais, durante vários anos, o português tentou convencer potenciais interessados em investir nos seus negócios.

Filipe Pontes, do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), considera que este perfil é “muito habitual na lógica da fraude”. “É a ideia do self-made man. Claramente não é uma pessoa que tenha nascido no berço do sector financeiro, o que é muito habitual. É mais fácil as pessoas identificarem-se. Se tivesse trabalhado no sector, não iria ter o mesmo acolhimento”, disse ao Observador.

Sofia Ribeiro Branco, sócia da Vieira de Almeida & Associados na área de Contencioso e Arbitragem, explicou ao Observador que, regra geral, “o crime de burla resulta de uma prática reiterada, não correspondendo a atos isolados”. “Muito embora existam estudos sobre o perfil típico das pessoas que praticam fraudes ou crimes económicos, a verdade é que a experiência demonstra que este tipo de crimes não tem um autor específico, sendo transversal a todos os setores de atividade”, acrescentou a advogada.

Porém, para Filipe Pontes, no caso específico da LibertaGia, existiu “uma certa personificação na forma do seu líder”. “É como a Dona Branca, que era uma velhinha simpática. É a mesma ideia — a de querer parecer um homem normal, comum”. Contudo, ao mesmo tempo, “havia a intenção de mostrar um certo posicionamento, com as reuniões nos hotéis de luxo e os vídeos no Parque das Nações”.

O facto de, em momentos de alguma indefinição no negócio, Rui Salvador ter dado “a cara, como que a dizer ‘podem ter dúvidas, mas isto é possível, e eu explico como'”, demonstra que tinha “soft skills muito desenvolvidas”. “É alguém que desenvolveu capacidades de envolvimento, de confiança”, muito em parte devido ao trabalho que teve enquanto empregado de balcão e condutor de autocarros. “Aprendeu a fazer com que os outros confiassem nele e se sentissem gratos no final da viagem.”

"Não se fechava num hotel, dava a cara, como que dizendo 'eu não só prometo o futuro, como o mostro'. Queria transmitir uma ideia de sucesso aos outros."
Filipe Pontes, especialista em gestão de fraude

Para além disso, o especialista em gestão de fraude considera que parece ter existido “um objetivo”, que é o da felicidade, instantânea ou longínqua, e de um “futuro mais risonho para aqueles que o seguirem”, um discurso que Salvador foi desenvolvendo ao longo dos anos. E que funcionou na perfeição.

“Existe uma questão fundamental. Nos últimos anos, houve uma crise social e económica muito aguda, principalmente nos últimos quatro ou cinco anos. Portugal e Espanha, a seguir à Grécia, são provavelmente os países onde a taxa de desemprego é maior. Houve uma oportunidade.” Para além disso, as taxas de juro “extraordinariamente baixas” e a desconfiança que existe face à banca, levaram a que muitas pessoas procurassem uma alternativa e investissem em esquemas como o da LibertaGia.

“As pessoas já não conseguem colocar a banca num nível muito superior ao de um esquema em pirâmide”, salientou Filipe Pontes. “Este surge como uma oportunidade de ganhar dinheiro rápido, a curto prazo. No início, pode não ser muito, mas pode ser o suficiente para tirar uma família de um aperto financeiro. Costumamos dizer ‘eu não me metia nisto!’, mas às vezes as circunstâncias mais adversas da vida levam as pessoas a meter-se ‘nisto’.”

"As pessoas já não conseguem colocar a banca num nível muito superior ao de um esquema em pirâmide."
Filipe Pontes, especialista em gestão de fraude

Para o especialista em gestão de fraude, os esquemas piramidais tornaram-se, acima de tudo, num “último recurso”. São uma forma de ultrapassar grandes dificuldades financeiras. “E nunca deixaram de existir.” Provavelmente, nunca deixarão.

Mil milhões de euros no bolso e até oito anos de prisão

O ordenamento jurídico português prevê — e pune — vários tipos de burla, dependendo do sector em causa e dos meios fraudulentos utilizados. “Contudo, a base de construção dos diversos crimes de burla é o crime de burla comum”, explicou Sofia Ribeiro Branco, punível com uma pena de prisão de até três anos ou com uma pena de multa.

Tendo em conta a descrição do caso, divulgada pela comunicação social, a advogada da Vieira de Silva & Associados considera que, no caso da LibertaGia, poderá estar em causa um crime de burla comum. “Porém, caso o prejuízo patrimonial seja superior a 5.100 euros, estaremos perante um potencial crime de burla qualificada, punível com uma pena de prisão até cinco anos ou com uma pena de multa até 600 dias.” Caso o valor envolvido seja superior a 20.400 euros, Rui Salvador poderá ser punido com uma pena de prisão de dois a oito anos.

De acordo com a firma de advogados Lemat Abogados, que representa a plataforma de lesados da LibertaGia em Espanha, o prejuizo provocado pela empresa situar-se-á entre os 1.180 e os 1.425 milhões de dólares (1.037 e 1.252 milhões de euros). Isto significa que, de acordo com a estimativa da firma espanhola, o português poderá ser condenado a uma pena máxima de oito anos de prisão.

O caso, que está a ser investigado pelo Departamento de Investigação e Ação Penal e pela Polícia Judiciária, encontra-se atualmente em segredo de justiça. “Em termos gerais, caso não haja arguidos presos e o processo não seja de especial complexidade, o prazo máximo legalmente previsto para a duração do inquérito criminal será de 14 meses, sendo este prazo meramente indicativo”, referiu Sofia Ribeiro Branco.

“Como princípio geral, o prazo previsto para vigorar o segredo de justiça corresponde ao prazo máximo da duração do inquérito. No entanto, este pode ser prorrogado pelo período máximo de três meses.” Caso seja indispensável para a conclusão da investigação, o prazo pode ser ainda prorrogado uma segunda vez, “sendo que a jurisprudência recente tende a admitir que esta segunda prorrogação possa ultrapassar os três meses”.

O prazo de prescrição do crime de burla comum é de cinco anos e de burla qualificada de dez. “Estes prazos podem, no entanto, ser alargados, uma vez verificadas as causas de interrupção e suspensão que implicam que o prazo de prescrição seja mais longo do que o previsto”, explicou Sofia Ribeiro Branco. Por outras palavras, a história de Rui Salvador ainda agora começou.

Fotografias: Michael M. Matias, Global Imagens, Getty Images e Youtube

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