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O momento em que a Conferência Episcopal Alemã recebeu, em 2018, o relatório elaborado por um grupo de académicos sobre os abusos na Igreja Católica naquele país

picture alliance via Getty Image

O momento em que a Conferência Episcopal Alemã recebeu, em 2018, o relatório elaborado por um grupo de académicos sobre os abusos na Igreja Católica naquele país

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Os números, os métodos e a reação da Igreja. Como se compara o relatório dos abusos na Igreja com investigações de outros países?

A comissão independente apresentou o seu relatório final sobre abusos na Igreja, após um ano de investigação. O Observador compara o relatório português com as investigações noutros seis países.

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A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa apresentou esta segunda-feira as conclusões da investigação que realizou, ao longo do último ano, a pedido da Conferência Episcopal Portuguesa — e os números do relatório mostram uma realidade que, até aqui, era praticamente desconhecida em Portugal. De acordo com aquele documento, 512 pessoas deram o seu testemunho sobre os abusos sexuais que sofreram às mãos de membros do clero e outras pessoas ligadas à Igreja Católica em Portugal ao longo das últimas sete décadas. Com base na informação recolhida nesses 512 testemunhos, a comissão estimou a possibilidade de a totalidade de vítimas em Portugal neste período ser de, no mínimo, 4.815 pessoas. No entanto, a comissão não apresentou um número estimado de abusadores, ao contrário de outros relatórios.

Foi a primeira vez que a Igreja Católica portuguesa decidiu olhar, com seriedade, para o seu passado no que toca à crise dos abusos de menores — mas fê-lo por arrasto, quarenta anos depois de os primeiros sinais desta crise terem surgido no sul dos Estados Unidos da América, e especialmente em resposta aos apelos dos católicos portugueses na sequência do escândalo gerado em França, em 2021, com a publicação dos resultados de uma investigação similar.

A Igreja Católica portuguesa está longe de ter sido a primeira a decidir investigar o modo como, no passado, permitiu que dezenas de crianças sofressem abusos nas suas instituições e, sobretudo, como protegeu sistematicamente os padres abusadores, evitando processos civis e canónicos em ordem à salvaguarda da reputação eclesiástica num país profundamente católico. Ao longo das últimas duas décadas, em vários países do mundo, foram feitas investigações semelhantes, através das quais foi possível começar a construir um retrato da maior crise da Igreja Católica contemporânea. Em alguns países, foram os bispos a tomar a iniciativa; noutros, foram as instituições do Estado. Algumas investigações tiveram uma essência mais académica; outras foram de pendor judicial. Em alguns, a Igreja colaborou; noutros, nem tanto. Algumas investigações foram feitas por universidades, outras por juízes e outras por advogados. Mas todas elas tiveram em comum o facto de lançar ondas de choque na Igreja Católica, tanto a nível nacional como mundial, obrigando o próprio Vaticano a repensar leis internas, a mudar a formação dos seminaristas e a vir a público pedir perdão às muitas vítimas provocadas pela Igreja, por atos (dos abusadores) e omissões (da hierarquia).

No dia em que a comissão independente em Portugal apresentou as suas conclusões, comparamos o relatório português com seis outras investigações internacionais marcantes desta realidade: Irlanda, Austrália, Alemanha, Pensilvânia (EUA), França e Espanha.

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Quem encomendou — e quem fez — o relatório

Portugal

No caso português, ao contrário do que aconteceu em vários outros países (como EUA, Austrália ou Irlanda) e à semelhança do que sucedeu noutros (como Espanha, França ou Alemanha), a decisão de avançar com uma investigação alargada sobre a realidade dos abusos de menores no contexto da Igreja Católica foi tomada pela própria Igreja, através da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP).

A decisão foi anunciada pelo presidente da CEP, o bispo D. José Ornelas, em novembro de 2021, após várias semanas de debate público em Portugal sobre o assunto, à boleia do escândalo que se acendeu em França com a publicação de um relatório semelhante, encomendado pelos bispos franceses, em outubro de 2021. Pouco depois da publicação desse relatório, a CEP garantiu que tudo faria para apurar a verdade histórica sobre a realidade dos abusos em Portugal e prometeu a criação de uma equipa nacional para coordenar os trabalhos das várias comissões diocesanas de proteção de menores. Mas essa decisão não chegou para uma parte dos católicos portugueses. Em novembro de 2021, um grupo de católicos mobilizaram-se numa carta aberta para exigir aos bispos uma investigação independente sobre o assunto.

A decisão foi anunciada em novembro de 2021 pelo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o bispo D. José Ornelas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Na Assembleia Plenária da CEP de novembro de 2021, os bispos decidiram dar resposta a esse apelo que provinha da sociedade civil e anunciaram a criação de uma comissão independente destinada ao estudo histórico da realidade dos abusos na Igreja em Portugal.

Igreja vai finalmente investigar história dos abusos sexuais em Portugal. Seis respostas sobre a nova comissão independente

No final do mesmo mês, a CEP anunciou que tinha convidado o pedopsiquiatra Pedro Strecht, um dos mais conceituados especialistas do país, que tinha acompanhado as vítimas do processo Casa Pia, para liderar a comissão independente. A comissão independente, totalmente financiada pela Igreja Católica, entrou em funções em janeiro de 2022 e é composta por seis elementos: além de Strecht, fazem parte também o psiquiatra Daniel Sampaio, o ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos.

A comissão recebeu a missão de trabalhar durante um ano num relatório a entregar no início de 2023.

Irlanda

A Igreja Católica irlandesa viu-se mergulhada num grave escândalo de abusos sexuais de menores entre 2009 e 2010 — uma crise de tal modo profunda que motivou o Papa Bento XVI a escrever uma carta pública aos católicos da Irlanda, que se tornaria num dos mais marcantes documentos da luta da Igreja contra a crise dos abusos. Essa crise foi motivada pela divulgação, naqueles anos, de um conjunto de relatórios que pintaram um retrato negro da situação em que foram deixadas milhares de crianças que durante décadas estiveram ao cuidado da Igreja.

Ao contrário do que sucedeu noutros países, a crise da Irlanda não foi desencadeada por uma grande investigação de âmbito nacional, mas por uma sucessão de inquéritos estatais que incidiram sobre circunscrições territoriais específicas, de que se destacam quatro documentos principais:

  • Ferns Report: encomendado em 2003 pelo governo a uma comissão liderada por Frank Murphy, um juiz do Supremo Tribunal que já se encontrava reformado, para investigar o modo como a Igreja tinha lidado com um padre da diocese de Ferns; quando foi publicado, em 2005, acabou por revelar que aquele padre não era caso único.
  • Ryan Report: depois de uma série de casos terem vindo a público na década de 1990, o governo criou uma comissão nacional para investigar as alegações de abusos sexuais, mas também físicos e psicológicos, contra crianças em escolas, orfanatos e internatos por todo o país, uma investigação que abrangeu essencialmente instituições católicas. A investigação ficou a cargo de uma comissão de inquérito presidida pelo juiz Sean Ryan. O documento final foi divulgado em maio de 2009.
  • Murphy Report: quando, no início da década de 2000, vieram a público alegações de encobrimento de abusos de menores na arquidiocese de Dublin, o governo determinou a criação de uma comissão de inquérito para investigar as suspeitas, que envolviam também a conivência das autoridades policiais. A investigação foi liderada pela juíza Yvonne Murphy e o relatório final saiu em novembro de 2009.
  • Cloyne Report: no verão de 2011, foi publicado num novo relatório, também resultante de uma investigação liderada pela juíza Yvonne Murphy, mas desta feita sobre a diocese de Cloyne, onde também havia alegações de abusos de menores e de encobrimento, tanto por parte da Igreja como pelas autoridades civis.

Austrália

Em novembro de 2012, o governo australiano decidiu lançar um inquérito de grandes dimensões sobre os abusos sexuais de menores em todos os âmbitos da sociedade australiana. A decisão do governo federal foi motivada por um contexto de grande preocupação com os abusos, especialmente no seio da Igreja Católica, que se vinha adensando desde a década de 1990. Em 1993, o padre católico Gerard Ridsdale tinha sido condenado por abusos de menores, naquele que foi entendido como um primeiro sinal de um problema que viria a ganhar grandes proporções no país — e que até obrigou a Igreja australiana a tornar-se numa das primeiras do mundo a publicar normas para lidar com os padres abusadores. Em 2012, porém, a crise intensificou-se com a divulgação de um relatório policial que atribuía a situações de abusos em escolas católicas a causa de pelo menos 40 suicídios, que motivou a criação de uma comissão de inquérito no parlamento estadual de Vitória.

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A primeira-ministra australiana Julia Gillard anunciou a investigação em 2012

Getty Images

Em novembro de 2012, publicamente pressionada pelos resultados daquele inquérito, a primeira-ministra Julia Gillard anunciou a criação de uma investigação de âmbito nacional para conhecer a realidade dos abusos sexuais de menores ao longo das décadas anteriores, não só em instituições católicas, mas em todos os setores da sociedade australiana. A figura escolhida foi a da Royal Commission, o mecanismo de investigação mais importante do ordenamento jurídico australiano, com a possibilidade de os seus resultados serem remetidos diretamente para o sistema judicial. Para liderar a comissão, o governo australiano escolheu o juiz Peter McClellan, à época juiz do Supremo Tribunal do estado de Nova Gales do Sul. A comissão foi constituída ainda por um antigo comissário da polícia, uma juíza do tribunal federal das famílias, um responsável pelo diálogo com as comunidades indígenas, uma psiquiatra especializada em crianças e adolescentes e um antigo senador — seis elementos, tal como a comissão independente criada em Portugal.

Alemanha

O caso alemão assemelha-se ao que aconteceu em França e em Espanha (e contrasta com a situação da Austrália, Irlanda e EUA, onde foi o Estado a avançar com uma investigação), uma vez que foi a própria Conferência Episcopal Alemã a encomendar o estudo, em 2014. No entanto, em vez de um conjunto de especialistas ou de uma sociedade de advogados, os bispos alemães decidiram confiar a realização do estudo a três universidades do país: as universidades de Giessen, Heidelberg e Mannheim. Foi a partir dessas instituições de ensino superior que se constituiu a equipa de investigadores que levou a cabo o longo trabalho. A este grande relatório viria a juntar-se, mais tarde, uma nova investigação, especificamente focada na diocese de Colónia — uma investigação encomendada pela própria diocese a uma sociedade de advogados.

Pensilvânia (EUA)

No estado norte-americano da Pensilvânia, a investigação partiu das autoridades estatais — e o contexto que se vivia nos EUA é crucial para compreender como surgiu este relatório. Foi nos EUA que a crise dos abusos de menores na Igreja eclodiu, no início da década de 1980, quando vieram a público os primeiros casos de encobrimento. Na década de 1990, o caso do padre James Porter tinha chocado o país — mas a crise ganhou uma dimensão sem precedentes em 2002, quando o Boston Globe divulgou um conjunto de investigações que ficariam conhecidas como o “caso Spotlight”, denunciando um clima de encobrimento sistemático de centenas de casos de abuso na arquidiocese de Boston.

Sucederam-se por todo o país pequenas investigações locais que descortinaram práticas semelhantes em várias dioceses norte-americanas. Em março de 2016, foi conhecido o resultado de uma investigação realizada na diocese de Altoona-Johnstown (no estado da Pensilvânia), com conclusões graves: durante um período de 40 anos, centenas de crianças tinham sofrido abusos às mãos de mais de 50 padres e religiosos da diocese. O relatório foi realizado por um Grande Júri — uma figura do direito americano que prevê a criação de uma equipa a quem é confiada, pela procuradoria-geral do estado, a missão de investigar uma determinada realidade, paralelamente aos tribunais. O resultado dessa investigação tem, depois, consequências legais, uma vez que as descobertas que ainda puderem ser analisadas pela justiça são enviadas para os tribunais.

A divulgação daquele documento destapou uma realidade sobre a qual até então pouco se sabia no estado da Pensilvânia. Por isso, a procuradoria-geral estadual decidiu alargar o alcance da investigação e instituiu secretamente um novo Grande Júri, desta vez com a missão de investigar a realidade dos abusos de menores na Igreja na generalidade do estado da Pensilvânia (à exceção das duas dioceses sobre as quais já tinha sido feita uma investigação). O resultado da investigação foi conhecido em 2018.

França

Em França o estudo foi encomendado pela Igreja, através da CEF (Conferência Episcopal Francesa) e da CORREF  (Conferência dos Institutos Religiosos de França). A comissão, constituída a 8 de fevereiro de 2019, foi composta por 21 pessoas, sob a liderança de Jean-Marc Sauvé — cujo apelido acabou por dar nome ao relatório nos meios de comunicação. O relatório é agora conhecido como o relatório “Sauvé”. Os membros da comissão são de várias áreas, como Direito, Medicina (psiquiatria), História, Sociologia, Psicologia, Ética, Teologia, de várias religiões diversas e agnósticos. Todos eles trabalharam em regime de voluntariado, assistidos por uma equipa de seis a sete relatores, um gestor de projeto, um ou dois colaboradores e três estagiários.

Espanha

Apesar de a investigação aos casos de abuso sexual na Igreja por parte do jornal El País ter começado a desvendar, logo a partir de 2018, uma dura realidade em Espanha, que acabou por contabilizar 1.600 vítimas de abuso sexual por parte de membros da Igreja em Espanha, só em 2022 foi decidido estudar o tema. Em fevereiro, a Conferência Episcopal Espanhola encarregou uma sociedade de advogados de investigar os abusos. Em março, porém, o parlamento aprovou abrir também uma investigação liderada pelo Provedor de Justiça, Ángel Gabilondo. A iniciativa foi aprovada pelo Unidas Podemos, ERC, EF Bildu, Ciudadanos, BNG, JuntXCar, PEeCAT e pelo PP, com um voto contra do Vox e duas abstenções do UPN.

A comissão liderada por Ángel Gabilondo foi constituída a 5 de julho de 2022 e é composta por 20 profissionais de diversas áreas focadas nas vítimas, como áreas jurídicas, direitos humanos, vitimologia e ensino.

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O Provedor de Justiça espanhol, Ángel Gabilondo, está à frente da investigação estatal à realidade dos abusos em Espanha

Europa Press via Getty Images

O método usado para a investigação

Portugal

A comissão independente portuguesa centrou o seu trabalho de recolha de informação em dois grandes eixos: a recolha direta de testemunhos de vítimas e de outras pessoas com conhecimento de casos de abuso e encobrimento; e a investigação nos arquivos históricos da própria Igreja Católica.

No que toca ao primeiro eixo, a comissão estabeleceu desde o primeiro dia um conjunto de formas de contacto, através do seu site (darvozaosilencio.org), para que qualquer pessoa com informações pudesse revelá-las de forma segura aos elementos da comissão. Essas formas de contacto incluíram um questionário online, uma linha telefónica, um endereço de e-mail, uma morada para envio de correspondência e ainda a possibilidade de agendamento de um encontro presencial com os elementos da comissão. A criação de um “espaço de referência onde se sinta confortável para poder falar” foi a primeira grande prioridade da comissão, que também recorreu a vários meios publicitários, incluindo cartazes nas ruas, panfletos nas igrejas e anúncios nos meios de comunicação social para divulgar as formas de contacto.

O segundo eixo passou pela constituição de uma equipa independente de académicos, liderada pelo historiador Francisco Azevedo Mendes, da Universidade do Minho, que ficou com a missão de consultar os arquivos das 21 dioceses portuguesas em busca de documentos que possam dar pistas sobre casos históricos de abuso de menores e sobre o modo como a Igreja Católica lidou com as denúncias. A consulta aos arquivos chegou a estar no centro de uma breve polémica devido à falta de entendimento sobre o grau de acesso que, segundo as leis da Igreja, os historiadores poderiam ter aos arquivos secretos — que se resolveu com um esclarecimento do Vaticano a garantir que os bispos podiam autorizar o acesso aos arquivos secretos.

Os membros da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica, Laborinho Lúcio (E), Ana Nunes de Almeida (2-E), Pedro Strecht (C), Daniel Sampaio (3-D), Filipa Tavares (2-D), e Catarina Vasconcelos (D), durante uma conferência de imprensa para balanço dos primeiros três meses de trabalho na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, 12 de abril de 2022. ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

A comissão independente recebeu a missão de estudar a realidade dos abusos de menores na Igreja Católica ao longo das últimas sete décadas

ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Além destas duas principais formas de recolha de informação, a comissão independente também levou a cabo um trabalho de recolha de informação sobre casos de abuso na Igreja através da consulta dos arquivos dos meios de comunicação social portugueses desde a década de 1950 até à atualidade.

Desde o início do trabalho, os membros da comissão garantiram que fariam um tratamento essencialmente académico dos dados descobertos e prometeram remeter para o Ministério Público todos os casos que ainda pudessem estar sujeitos à intervenção da justiça civil.

Irlanda

As quatro investigações realizadas na Irlanda durante a década de 2000 tiveram em comum o facto de serem inquéritos estatais conduzidos por um juiz. Tal como na maioria dos países onde foi realizado este tipo de investigação, o principal método de obtenção de informação foi a recolha de testemunhos diretos por parte de centenas de pessoas que responderam aos apelos públicos das comissões e se disponibilizaram a contar as suas histórias. Ao contrário do que aconteceu em Portugal, as comissões irlandesas receberam poderes de investigação diretamente do Estado, o que lhes permitiu intimar testemunhas a comparecer perante os elementos da comissão ou a fornecer documentos, garantindo-lhes a possibilidade de se fazerem acompanhar por advogados.

No caso concreto do Ryan Report, por exemplo, a comissão criou um processo de audição confidencial de testemunhas, por parte de um comité de confidencialidade que levou a cabo várias entrevistas privadas com testemunhas, na presença de alguns dos comissários. As entrevistas foram gravadas em áudio (à exceção daquelas em que a testemunha não permitiu) num ambiente “informal”, em que as vítimas se puderam fazer acompanhar de uma pessoa da sua confiança.

As comissões também levaram a cabo audiências públicas com representantes das instituições e investigaram os arquivos documentais das várias instituições envolvidas — maioritariamente valendo-se da sua faculdade de obrigar as instituições a fornecer documentos relacionados com o estudo.

Austrália

Mandatados pelo governo australiano, os elementos da comissão australiana recorreram a uma miríade de métodos para a investigação. O relatório final explica que a investigação girou em torno de três pilares:

  1. Os relatos pessoais. A comissão lançou um apelo público para que todos aqueles que quisessem partilhar histórias contactassem o grupo de trabalho de diferentes formas. No final, feitas as contas, 16.953 pessoas contactaram a comissão para partilhar informações; os comissários realizaram 8.013 audiências privadas com pessoas que quiseram partilhar as suas histórias; e a comissão recebeu ainda 1.344 relatos por escrito.
  2. As audiências públicas. A equipa realizou 57 audiências públicas em múltiplas cidades australianas, que duraram mais de 400 dias. Durante essas audiências, cerca de 1.200 testemunhas falaram sobre diferentes casos de abuso de crianças em contextos distintos. As audiências públicas permitiram à comissão pintar um retrato do modo como as crianças foram tratadas em múltiplos contextos durante décadas na Austrália.
  3. O debate sobre práticas e políticas de tratamento das crianças. A comissão realizou 35 rondas de debate com académicos, especialistas e profissionais de diferentes áreas para formular um conjunto de propostas concretas sobre o modo como as crianças devem ser protegidas em diferentes contextos.

Alemanha

Na Alemanha, a investigação à realidade dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica foi verdadeiramente considerada como um trabalho científico — do qual, aliás, resultou justamente uma publicação científica assinada por vários investigadores das três universidades envolvidas no estudo. Ao contrário de outras investigações, a equipa alemã não ouviu vítimas nem pretendeu olhar para casos concretos. “O projeto de investigação não teve uma abordagem legal ou criminal, mas centrou o seu trabalho numa forma retrospetiva-descritiva e epidemiológica. Não se pretendia avaliar a plausibilidade de casos individuais. Para a equipa do estudo, todas as pessoas envolvidas permaneceram anónimas durante todo o projeto de investigação”, lê-se no segmento da publicação que detalha os métodos seguidos. Além disso, o estudo, encomendado pela Conferência Episcopal, era de participação obrigatória: todas as dioceses assinaram um contrato que as obrigava a participar no estudo.

Assim, a equipa de investigadores recolheu dados, essencialmente, a partir dos registos das várias dioceses. Em cada diocese alemã, foi montada uma equipa (com elementos da própria Igreja) com o objetivo de passar os arquivos a pente fino em busca de documentos que apontassem para situações de abuso sexual de menores. Sempre que encontrassem um caso, esses elementos tinham de preencher um conjunto de longos questionários para descrever os vários aspetos do caso, mas sempre mantendo o anonimato das pessoas envolvidas. Além disso, as dioceses tiveram de responder a questionários sobre as práticas estruturais associadas às nomeações do clero e à formação dos seminaristas.

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O investigador Harald Dreßing, responsável pela elaboração do relatório final, entrega o documento ao cardeal Reinhard Marx, presidente da Conferência Episcopal Alemã

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Os investigadores não tiveram acesso direto aos arquivos da Igreja, tendo apenas trabalhado com base na documentação anonimizada que foi enviada por cada diocese — o que levantaria, mais tarde, dúvidas na opinião pública sobre se a Igreja tinha colaborado totalmente ou apenas parcialmente.

Pensilvânia (EUA)

A figura jurídica do Grande Júri tem, na prática, um conjunto de atribuições semelhante às competências de uma investigação judicial. Assim, os métodos utilizados pela comissão foram, na prática, os mesmos que um tribunal usaria. Uma das principais formas de recolha de informação foi a auscultação de testemunhos na primeira pessoa — segundo o relatório final, foram “dezenas” as pessoas que aceitaram partilhar as suas histórias. Por outro lado, a equipa tinha o poder legal de intimar as dioceses a entregarem toda a documentação que tivessem nos seus arquivos sobre questões relacionadas com abusos de menores (enquanto a comissão portuguesa depende, essencialmente, da boa vontade dos bispos). A equipa revelou ter analisado cerca de 500 mil páginas de documentos recolhidos entre as dioceses: esses documentos incluíam relatos detalhados de casos de abuso e encobrimento por parte dos bispos.

França

A Comissão recorreu aos serviços do IFOP (Instituto de Estudos de Opinião e Marketing em França) que começou por fazer um questionário online anónimo: foram preenchidos 1.628 questionários que permitiram organizar 69 novas entrevistas de investigação.

Entre 25 de novembro 2020 e 28 de janeiro de 2021, o IFOP fez uma sondagem por quotas a uma amostra de 28.010 pessoas com mais de 18 anos, em que procurou vítimas de abuso sexual e as circunstâncias para perceber qual a percentagem de abusos sexual que ocorreram nas estruturas da Igreja.

Antes, entre 3 de junho de 2019 e 21 de outubro de 2020, a Comissão tinha também recorrido ao Instituto Nacional de Saúde e de Investigação Médica (INSERM) que, além de uma forte campanha de apelo ao testemunho, fez um questionário online e entrevistas. Deste trabalho resultaram 6471 contactos, 3652 entrevistas telefónicas, 2459 emails e 360 cartas que foram tratadas pela equipa France Victimes.

Além de dados estatísticos, a Comissão procurou também material nos arquivos sócio-históricos: fez um questionário a todos os bispos e superiores dos institutos; pesquisou nos arquivos da Igreja, tanto ao nível central como nas 31 dioceses e 15 institutos (onde estão os arquivos comuns e secretos) — houve duas recusas no acesso a estes dados, por parte de uma diocese e de um instituto;  (dois recusaram, um instituto e uma diocese).

Fora da Igreja, os voluntários procuraram também dados nos arquivos públicos, do Ministério da Justiça, do Ministério do Interior (Polícia Judiciária) e da Guarda. E na própria comunicação social.

A comissão liderada por Sauvé fez ainda um inquérito a 48 clérigos e religiosos para perceber a evolução da formação sobre castidade de clérigos e religiosos e recolheu vários testemunhos de vítimas, alguns dirigidos à Comissão, outros tornados públicos.

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Uma manifestação em frente à sede da Conferência Episcopal Francesa depois da publicação do relatório Sauvé

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Foi feito um estudo sócio-antropológico por uma equipa da Fundação Maison des Sciences de L’Homme para analisar os dados que chegaram à CIASE: foram transcritas 153 audições e recebidos 2819 cartas e emails. Para completar o trabalho, a comissão entrevistou onze agressores sexuais (dez padres e um diácono) e analisou as perícias de personalidade e psiquiátricas feitas em 25 casos judiciais em que eclesiásticos foram condenados por crimes sexuais.

Espanha

A comissão, que continua a recolher testemunhos durante um período que se deverá estender até julho de 2023, disponibilizou um email, um telefone e uma morada para receber testemunhos. A equipa está disponível para receber testemunhos presenciais, Tem também disponível um formulário online no site do Provedor. É garantido o anonimato às vítimas.

O Provedor criou ainda um fórum de Associações, onde os representantes das vítimas poderão contar a sua experiência em diversas sessões, e uma Unidade de Atenção às Vítimas, composta por profissionais com experiência com vítimas cujo trabalho será escutá-las e ajudá-las a expor o seu testemunho.

Já em setembro anunciou que iria pedir informações de casos à Igreja e às Congregações, assim como aos seus arquivos, mesmo passando a ideia que a Igreja não estava a mostrar grande “entusiasmo” em colaborar.

O período temporal em análise

Portugal

A comissão definiu como período do estudo os 72 anos entre 1950 e 2022 — embora tenha, mais tarde, admitido que recebeu alguns testemunhos relativos a casos ocorridos na década de 1940, que não excluiu do relatório. Trata-se de um período de estudo em linha com o de outros relatórios feitos noutros países, que também recolheram informação entre as décadas de 1940/50 e a atualidade.

Irlanda

Os quatro relatórios, que foram encomendados pelo Estado irlandês em momentos diferentes, debruçaram-se sobre períodos temporais distintos. O Ferns Report, sobre a diocese de Ferns, analisou alegações de crimes cometidos entre 1962 e 2002. Já o Ryan Report, encomendado em 2000, tinha como período temporal de referência os anos 1940 a 1999, mas o mandato dado à comissão permitia aos comissários a extensão do período se necessário. O Murphy Report, sobre as alegações na arquidiocese de Dublin, focou-se no período entre 1975 e 2004 — o mesmo período analisado pelo Cloyne Report.

Austrália

Não foi definido um período temporal em específico para o trabalho da comissão de inquérito australiana: os comissários deveriam recolher o máximo de informação possível sobre o modo as crianças foram tratadas e cuidadas em diferentes contextos institucionais na sociedade australiana ao longo das décadas para, com esse conhecimento, formular recomendações concretas às instituições públicas e privadas. Os testemunhos recebidos colocam, no entanto, a esmagadora maioria das situações relatadas entre a década de 1950 e a década de 2010.

Alemanha

O período temporal em análise foi definido com base na quantidade de documentos que foi possível recuperar dos arquivos das dioceses: entre 1946 (após a II Guerra Mundial) e 2014.

Pensilvânia (EUA)

A incumbência do Grande Júri não incluía um período temporal específico para análise: a ideia era olhar para todos os casos identificáveis com base nos testemunhos que fosse possível recolher. No final, a equipa que conduziu a investigação conseguiu identificar casos distribuídos por um período de 70 anos, ou seja desde o final da década de 1940 até à atualidade.

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O procurador-geral do estado da Pensilvânia, Josh Shapiro, durante uma conferência de imprensa, rodeado de sobreviventes de abusos, para apresentar o relatório do Grande Júri

MediaNews Group via Getty Images

França

Desde 1950 a 2020.

Espanha

Não há informação sobre um período específico em análise, mas o objetivo desta Comissão é determinar factos e responsabilidades, assim como propor procedimentos de reparação às vítimas e impulsionar medidas e prevenção e protocolos de atuação para evitar que estes crimes voltem a acontecer.

As principais conclusões da investigação

Portugal

Em Portugal, a Comissão Independente validou 512 testemunhos de vítimas de abuso sexual entre 1950 e 2022. A maioria dos casos refere-se a vítimas do sexo masculino (57,2%), enquanto 44,2% se refere a vítimas do sexo feminino  — um número que surpreendeu por ser superior ao registado noutros países que estudaram a mesma temática

Dos 512 testemunhos, a comissão conseguiu apurar, porém, 4303 outras potenciais vítimas de abusos sexuais por membros da Igreja. É que, segundo explicam os investigadores, nalguns relatos foram indicadas outras vítimas presentes que foram igualmente contabilizadas. Nalguns casos, porém, foi feita uma estimativa do número de alunos numa turma ou num grupo de catequese que determinada vítima apontou também ter sido vítima — perfazendo assim um total de possíveis 4815 vítimas de membros do clero.

Atualmente, quem respondeu ao questionário lançado pela comissão tem entre os 6 e os 89 anos (uma média de 52 anos) e maioria reside em território português. A maior parte foi abusada quando tinha entre os 10 e os 14 anos (58,6%) e as vítimas demoraram cerca de dez anos até conseguir denunciar.

Apesar de não ter sido indicado um número total de abusadores, concluiu-se que  96,9% são do sexo masculino, quase não existindo relatos de agressões sexuais por parte de mulheres, e que têm entre os 31 e os 50 anos. Em 77% dos casos estes agressores eram efetivamente padres, seguindo-se em 9,6% dos casos professores de colégios religiosos e depois (4,5%) membros de ordens religiosas diversas. Em quase metade dos casos, os agressores eram já conhecidos das vítimas.

A Comissão decidiu enviar 25 casos ao Ministério Público para investigar. Dos primeiros 17 enviados, quase todos foram já arquivados ou pela prescrição de crimes ou pela falta de elementos suficientes para investigar agressor e vítima.

Irlanda

No caso irlandês, os quatro relatórios que foram conhecidos entre 2005 e 2011 tiveram dimensões muito diferentes. O primeiro, respeitante apenas à diocese de Ferns, revelou que ao longo das quatro décadas em estudo pelo menos 21 padres tinham abusado sexualmente de mais de 100 crianças em diferentes contextos da vida da Igreja. A comissão de inquérito ouviu uma centena de denunciantes — e, além de concluir que largas dezenas de crianças tinham sofrido abusos às mãos de duas dezenas de padres, a comissão identificou também provas de encobrimento ativo dos casos por parte de vários bispos que passaram pela diocese.

Já o segundo relatório, que se focou sobretudo no contexto das escolas, orfanatos e internatos geridos pela Igreja Católica, teve uma dimensão muito maior: o documento acusou o estado irlandês de ter renunciado à responsabilidade sobre cerca de 35 mil crianças, que ao longo de várias décadas viveram em reformatórios, escolas e orfanatos geridos por instituições da Igreja Católica, onde se viveu um clima de permanente abuso físico, sexual e psicológico, silenciado pelo medo. A comissão que conduziu o relatório recolheu testemunhos de 1.100 pessoas, que disseram ter sofrido abusos cometidos por 800 funcionários (incluindo membros do clero) em 216 instituições.

No terceiro relatório, sobre a arquidiocese de Dublin, o método de apresentação dos resultados foi ligeiramente diferente. A comissão identificou acusações contra 172 padres ao longo de várias décadas, mas concentrou-se numa amostra de 320 denunciantes contra 46 padres, com o objetivo de limitar o inquérito ao período temporal inicialmente pretendido. O documento também revelou como as autoridades civis irlandesas tinham falhado em toda a linha na investigação destes crimes ao longo das décadas.

O último relatório, sobre a diocese de Cloyne, foi o de menor dimensão: identificou 19 padres que tinham sido acusados de abusos e descobriu que a diocese não tinha enviado para as autoridades civis nove das 15 queixas que tinha recebido.

No total dos quatro relatórios, as autoridades irlandesas receberam testemunhos de 1.535 vítimas de abusos sexuais — um número que levou a estimativas muito acima desse valor.

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O arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, perante um protesto em frente à catedral da cidade após a divulgação do Murphy Report

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Austrália

No final da investigação, que abrangeu a totalidade dos contextos num país com cerca de 25 milhões de habitantes, o relatório final da comissão de inquérito revelou que um total de 7.981 vítimas de abusos contaram a sua história aos comissários. Mais de 2.500 casos foram remetidos para as autoridades policiais, uma vez que ainda podiam ser alvo de investigações criminais.

O contexto mais comum para a ocorrência dos abusos foram as instituições religiosas (58,1% dos sobreviventes que falaram), seguindo-se as instituições do estado (32,5%) e outras instituições (10,5%).

De entre as situações de abuso ocorridas em instituições religiosas, destaca-se a Igreja Católica, com 61,4% dos casos, seguindo-se a Igreja Anglicana, com 14,8%. Considerando que 22,6% da população australiana é católica e 13,3% anglicana, estes números não traduzem uma proporcionalidade: a população católica é menos do dobro da população anglicana na Austrália, mas os abusos registados nas instituições católicas foram mais de quatro vezes os das instituições anglicanas. A julgar por estes números, a prevalência dos abusos na Igreja Católica foi superior ao que aconteceu noutras religiões.

Ainda no que diz respeito à Igreja Católica, a comissão identificou 4.444 casos em que as vítimas se queixaram à hierarquia eclesiástica dos abusos que sofreram.

A categoria de abusador mais frequente foi a de sacerdote ou ministro religioso (31,8% dos casos), seguida dos professores (20,4%). Os dados também permitiram pintar um retrato médio das vítimas e dos abusadores. Quanto ao sexo, 63,6% das vítimas eram do sexo masculino e 36,1% do sexo feminino. A maioria (93,3%) disse ter sofrido os abusos às mãos de um homem, enquanto 10,7% disse ter sido molestado por uma mulher.

Alemanha

Todas as 27 dioceses alemãs assinaram um contrato de participação no estudo científico que as obrigou a entregar aos investigadores todas as informações relacionadas com abusos sexuais de menores detetadas nos seus arquivos. No final, a equipa de cientistas recebeu um total de 38.156 ficheiros, distribuídos ao longo de 68 anos — entre 1946 e 2014.

A análise desses ficheiros permitiu identificar indícios de abusos sexuais de menores cometidos por 1.670 clérigos alemães, o que corresponde a 4,4% do total de clérigos alemães daquele período de tempo cujas informações foram analisadas. A maior prevalência registou-se entre padres (1.429), seguindo-se os membros de ordens religiosas (159) e os diáconos (24), havendo ainda 58 clérigos sobre os quais não era conhecido o estatuto. Já no que toca a vítimas, foram identificadas 3.677 crianças e adolescentes que sofreram abusos às mãos daqueles clérigos.

Por se tratar de um estudo essencialmente académico e estatístico, mais do que uma investigação com fins judiciais, o trabalho alemão resultou numa grande quantidade de números e estatísticas, das quais se destacam:

  • Os abusadores tinham entre 20 e 70 anos quando abusaram de crianças, sendo que a idade média do primeiro abuso é de 42,6 anos;
  • Em média, os clérigos começaram os comportamentos abusivos ao fim de 14,3 anos de sacerdócio;
  • O número médio de vítimas por abusador foi de 2,5 — tendo sido registado um caso em que um único clérigo abusou de 44 crianças;
  • Em 28,2% dos clérigos foi encontrado um padrão com a pedofilia: abusar de pelo menos duas crianças com menos de 13 anos durante pelo menos seis meses;
  • Perto de dois terços (62,8%) das vítimas eram rapazes, enquanto um terço eram raparigas (34,9%);
  • Mais de metade das vítimas (51,6%) tinham menos de 14 anos à data do primeiro abuso;
  • Em média, os abusos duraram 15,8 meses;
  • Mais de 80% dos casos envolveram contacto físico e 15,8% envolveram penetração anal, vaginal ou oral;
  • A resposta institucional da Igreja Católica foi, essencialmente, focada no encobrimento: os padres acusados foram transferidos de paróquia em média 4,4 vezes durante a sua vida, enquanto os padres que não foram acusados foram transferidos em média 3,6 vezes. Por outro lado, só há relatos de abertura de processos canónicos em 33,9% dos casos e de denúncia às autoridades em 37,7% dos casos.

Pensilvânia (EUA)

Há dois grandes números que saltam à vista no documento que ficaria conhecido como relatório da Pensilvânia: mais de 300 membros do clero abusaram de pelo menos 1.000 crianças e jovens ao longo de um período de 70 anos nas seis dioceses analisadas. A equipa que conduziu a investigação descobriu que todos estes casos tinham sido, de uma maneira ou de outra, encobertos pela hierarquia da Igreja, que não só tentou forçar as vítimas a não denunciar os casos como pressionou as autoridades civis a não avançarem com investigações. Trata-se de números que podem ser diretamente comparados com a realidade portuguesa, uma vez que o estado da Pensilvânia tem perto de 13 milhões de habitantes — um território de uma dimensão semelhante à portuguesa.

Na introdução do relatório, o Grande Júri destaca que nunca tinha havido um relatório “desta escala” nos Estados Unidos. “Ouvimos o testemunho de dezenas de testemunhas sobre abuso sexual cometido por clérigos. Recolhemos e analisámos meio milhão de páginas de documentos internos das dioceses. Eles continuam alegações credíveis contra mais de trezentos padres predadores. Foi possível identificar mais de mil crianças vítimas, só a partir dos registos da Igreja. Acreditamos que o número real — de crianças cujos registos se perderam ou que tiveram medo de denunciar — é de vários milhares”, diz o documento.

"Ouvimos o testemunho de dezenas de testemunhas sobre abuso sexual cometido por clérigos. Recolhemos e analisámos meio milhão de páginas de documentos internos das dioceses. Eles continuam alegações credíveis contra mais de trezentos padres predadores. Foi possível identificar mais de mil crianças vítimas, só a partir dos registos da Igreja."
Relatório do Grande Júri da Pensilvânia

“A maioria das vítimas eram rapazes, mas também houve raparigas. Alguns eram adolescentes, muitos eram pré-púberes. Alguns foram manipulados com álcool ou pornografia. Alguns foram obrigados a masturbar os seus agressores, ou foram violentados por eles. Alguns foram violados oralmente, vaginalmente ou analmente. Mas todos foram postos de lado, em todas as partes do estado, por líderes eclesiásticos que preferiram proteger os abusadores e as suas instituições acima de tudo”, acrescentam os membros do Grande Júri. “Como consequência do encobrimento, quase todas as situações de abuso que descobrimos são demasiado antigas para serem investigadas.”

Segundo o relatório, apenas dois casos foram encaminhados para a polícia por dizerem respeito a situações ocorridas na última década.

França

Do levantamento feito, a Comissão concluiu que em 70 anos terão sido abusadas 330 mil pessoas no seio da Igreja, por membros do clero e por agressores leigos, como catequistas, voluntários, grupos de jovens. Só por membros da Igreja foram 216 mil as vítimas. Estes números resultaram da sondagem sobre “violências sexuais na população” feita a 28.010 pessoas de mais de 18 anos, representativas da população francesa segundo o método de quotas. O estudo concluiu que a maior parte das vítimas de membros do clero (78,7%) eram rapazes entre os 10 e os 13 anos. Enquanto as vítimas de abuso sexual no resto da sociedade costuma ser maioritariamente meninas (83%). A taxa de prevalência de vítimas de abuso sexual na sociedade francesa por membros ligados à Igreja é de 1,2% (uma taxa abaixo dos 3,7% de incidência no que se refere aos abusos por membros da família).

A equipa francesa trabalhou também com uma outra amostra, semelhante à portuguesa, que entre junho de 2019 e 2020 recebeu 6.471 contactos, aos quais foi proposto o preenchimento de um questionário online — respondido por 1448 menores ou pessoas vulneráveis (à data do abuso). Uma amostra comparável à de Portugal, se pensarmos que a população francesa é seis vezes superior à portuguesa.

Na sequência deste trabalho, em novembro de 2022, 11 bispos ou antigos bispos foram indiciados pela justiça civil canónica ou pela justiça civil francesa por envolvimento em vários casos de abuso sexual.

Espanha

No final de setembro, o Provedor tinha já 230 testemunhos validados. Os dados estatísticos desta comissão são aguardados com grande expectativa em Espanha, por serem os primeiros oficiais. É que perante a investigação do jornal El País, a Conferência Episcopal começou por dizer que não tinha meios para investigar, para depois, em abril de 2021, pressionada pelos media, ter dito que tinha nos últimos 20 anos registos de denúncias contra 220 sacerdotes e religiosos. Já na investigação encomendada quase ao mesmo tempo do parlamento aprovar a comissão, a Igreja veio avançar em março com o número 506 para denúncias recebidas desde 2020  – 300 das quais cometidas há mais de 30 anos. Esta investigação, porém, só terminará na primavera e a Igreja já veio entretanto projetar um resultado possível: “Entre 1000 a 2000 casos”.

Páginas, anos e euros: os números dos vários relatórios

Portugal

O relatório português tem 486 páginas. A Comissão Independente iniciou funções em janeiro de 2022 e contabilizou todos os testemunhos chegados até ao final do mês de outubro. Uma equipa de investigadores da Universidade do Minho fez o estudo dos arquivos secretos da Igreja, mas como só conseguiu aceder em outubro, depois de uma série de entraves e bloqueios burocráticos da Igreja, só conseguiu fazer a consulta durante três meses. Neste trimestre, esta equipa reuniu pormenores de como a Igreja lidou com 20 casos diferentes de denúncias de abuso sexual contra padres e membros da Igreja Católica.

Irlanda

Em termos de números, a comparação entre o relatório português e as investigações na Irlanda não é imediata. O relatório sobre a diocese de Ferns, encomendado pelo Ministério da Saúde e da Infância, foi realizado ao longo de pouco mais de dois anos (entre março de 2003 e outubro de 2005) e o documento final ficou com 280 páginas. Por outro lado, o Ryan Report, sobre as escolas e instituições da Igreja, foi um trabalho de maior dimensão: realizado durante uma década (entre 1999 e 2009), o resultado final foi um relatório de 2.500 páginas, dividido em cinco volumes. O Murphy Report, sobre a arquidiocese de Dublin, foi publicado em novembro de 2009 ao fim de um trabalho de quatro anos que resultou num relatório de três volumes e com um total de 720 páginas. Já o último relatório, focado na diocese de Cloyne, foi realizado ao longo de dois anos (entre 2009 e 2011), tendo o documento final ficado com 421 páginas.

Austrália

No fim de contas, o trabalho da comissão de inquérito australiana teve uma dimensão muito significativa — logo a começar pelo dinheiro que custou. Inicialmente, a comissão recebeu mais de 430 milhões de dólares australianos (275 milhões de euros) para o trabalho de investigação, a que mais tarde se somariam mais 125 milhões de dólares (80 milhões de euros), em resposta a um pedido de tempo e financiamento adicionais. No total, a investigação custou ao estado australiano mais de 350 milhões de euros.

Talvez o número mais impressionante da investigação australiana seja mesmo o número de páginas do relatório final: o documento, dividido em 17 volumes, ficou com um total de 7.323 páginas. O volume 16, dedicado às instituições religiosas, é sem margem para dúvidas o mais extenso de todos: 2.567 páginas, representando mais de um terço de todo o documento. Atualmente, todas estas páginas estão disponíveis em dezenas de ficheiros PDF no site da comissão de inquérito — apenas os documentos com informações referentes a processos judiciais em aberto foram mantidos parcialmente em sigilo até ao final dos respetivos processos —, a que se somam centenas de outros documentos com transcrições das entrevistas e reuniões e as provas reunidas nos vários estudos de caso. Tudo foi divulgado num esforço de transparência anunciado pela própria comissão.

Durante os cinco anos que durou a investigação, entre o início de 2013 e o final de 2017, mais de 680 pessoas trabalharam para a comissão de inquérito.

Alemanha

O grande relatório alemão, que ficou conhecido como relatório MHG (as iniciais das três universidades envolvidas no estudo), tem as suas origens em agosto de 2013, quando a Conferência Episcopal Alemã abriu um concurso académico para uma investigação sobre a realidade dos abusos de menores na Igreja alemã. O projeto foi atribuído a um grupo de cientistas em 2014 — e em junho desse ano as 27 dioceses alemãs assinaram o contrato que as obrigava a cooperar com o estudo.

Inicialmente, a duração do projeto seria de três anos e meio, devendo estar concluído em 31 de dezembro de 2017 — mas os atrasos ocorridos nos arquivos das dioceses levaram os cientistas a pedir uma extensão do prazo até setembro de 2018.

No total, o projeto de investigação custou aos bispos alemães 1,09 milhões de euros.

O documento final ficou com 366 páginas, divididas em sete capítulos, e inclui 211 tabelas. Além do grande relatório apresentado em setembro de 2018, o projeto de investigação deu origem também a várias publicações científicas nas quais os resultados do inquérito são apresentados e discutidos.

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O cardeal Reinhard Marx, à época presidente da Conferência Episcopal Alemã, foi o principal responsável da Igreja a dar a cara na crise dos abusos na Alemanha

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Pensilvânia (EUA)

O documento final que resultou da investigação do Grande Júri na Pensilvânia tem 887 páginas — incluindo 314 de relatório propriamente dito e 573 de anexos, com fichas individuais sobre cada padre agressor identificado. O relatório da Pensilvânia foi o 10.º relatório de Grande Júri realizado nos Estados Unidos sobre a realidade dos abusos de menores no contexto da Igreja Católica — mas nunca houve, até agora, uma investigação de âmbito nacional comparável, por exemplo, à que foi realizada na Austrália, apesar dos muitos pedidos nesse sentido. Foi, contudo, o de maior dimensão e o que mais consequências teve.

França

A comissão empenhou 26 mil horas no seu trabalho, o que significaria que se os seus voluntários recebessem por isso teria custado 1,2 milhões de euros. Os custos do trabalho do Ciase, somando os custos financeiros para quem o fez e o valor de todos os que trabalharam voluntariamente na comissão seria de 3,8 milhões de euros.

Foram 32 meses de trabalho. O relatório final tem 548 páginas.

Espanha

Como as investigações em Espanha ainda estão em curso não há dados concretos, no entanto é de salientar que passaram quatro anos desde que o El País começou a investigar os abusos no seio da Igreja católica até as autoridades civis e eclesiásticas decidirem fazer um estudo apurado sobre o tema.

As recomendações dos investigadores

Portugal

A primeira recomendação da comissão portuguesa à Igreja Católica é a criação de uma nova comissão,  que prossiga um trabalho semelhante à Comissão Independente mas com uma diferente composição e um novo estatuto, “incluindo psicólogos, assistentes sociais, terapeutas familiares, psiquiatras, juristas, sociólogos e outros, e com novos objetivos, prosseguindo, a partir dos conhecimentos agora adquiridos, o propósito de assegurar um canal de comunicação aberto à receção de denúncias ou testemunhos de abusos sexuais de crianças por membros da Igreja Católica portuguesa”. A ideia é que receba dados, que os valide e os remeta a quem de direito, devendo haver mesmo um protocolo com o Ministério Público para operacionalizar a transmissão direta dos casos para as autoridades civis.

Esta comissão deverá também servir ainda para decidir sobre eventuais indemnizações a pagar às vítimas.

A comissão independente recomenda ainda à Igreja que promova uma outra cultura, capaz de um “reconhecimento inequívoco” dos abusos, que lance uma publicação anual sobre o lugar da criança na Igreja, que combata o clericalismo, que cumpra efetivamente a “tolerância zero” e a tomada de uma série de medidas concretas para proteger as crianças nos ambientes eclesiásticos.

A comissão pretende igualmente que a Igreja deixe de associar os abusos de menores a uma quebra do sexto mandamento — para que os abusos sejam vistos como crimes contra as crianças e não contra a Igreja — e que repense “todo o tema da sexualidade, enquanto matéria a tratar aos vários níveis no interior da Igreja e ligando-a a princípios e estratégias próprias da doutrina social da Igreja“.

Outro dos pedidos da comissão é a materialização às vítimas em “algo que simbolicamente perdure no tempo enquanto espaço de evocação das pessoas vítimas”, mude as lógicas de formação dentro da Igreja Católica e crie estratégias para acompanhar futuras vítimas, incluindo a criação de uma linha telefónica dedicada.

Entre as recomendações mais controversas da comissão está a revisão do sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças — um debate que os bispos portugueses já disseram que não pretendem sequer abrir, mas que foi, por exemplo, uma das propostas também feitas noutros países, como França.

Abusos na Igreja. Comissão independente recomenda à Igreja uma revisão do segredo de confissão

Irlanda

Os quatro relatórios publicados na Irlanda entre 2005 e 2011 incluíram longas secções com recomendações às instituições visadas pelos inquéritos, incluindo as autoridades eclesiásticas, as polícias e o próprio estado irlandês. Entre as muitas dezenas de recomendações que constam dos quatro documentos, encontra-se a sugestão de uma campanha publicitária promovida pelo estado para sensibilizar a sociedade para o problema dos abusos de menores, a criação de códigos de conduta dentro das instituições destinados a prevenir os abusos, a melhoria das políticas estatais de proteção de menores, a formação dos bispos católicos em gestão, a formação dos agentes policiais no sentido de melhorar os métodos de audição de crianças para reduzir o risco de trauma, a criação de canais de contacto mais próximos entre a Igreja e as autoridades civis e a construção de um memorial às vítimas.

Austrália

O relatório final da comissão australiana detetou falhas graves e estruturais em todo o tipo de instituições da Austrália, desde escolas a comunidades religiosas, relativamente ao modo como as crianças foram tratadas ao longo de várias décadas. Nos vários documentos, entre os relatórios intercalares e o relatório final, os comissários incluíram mais de 400 recomendações concretas, com diferentes destinatários: o estado federal e os governos estaduais (com recomendações para mudarem determinadas leis, tornando-as mais protetoras das vítimas de abuso, e para criarem estruturas governamentais para a segurança infantil), as escolas e as instituições onde são internadas crianças (com sugestões concretas para apertarem a malha na seleção de profissionais) e as instituições religiosas.

No caso da Igreja Católica, a recomendação mais controversa foi a de, na prática, acabar com a inviolabilidade do segredo de confissão quando estão em causa crimes de abuso de menores. A comissão recomendou ao governo a implementação de uma norma de denúncia obrigatória dos crimes de abuso sexual de menores, transformando em crime punível por lei a não comunicação de um crime deste género por parte de ministros religiosos, psicólogos, trabalhadores de instituições onde vivem crianças e uma conjunto de outros trabalhadores que contactam regularmente com crianças. Concretamente sobre a Igreja Católica, o relatório final lançou o apelo aos bispos católicos australianos para que escrevessem ao Vaticano pedindo uma alteração no Código de Direito Canónico, permitindo aos padres católicos que violassem o segredo de confissão para denunciar crimes de abuso de que tivessem conhecimento durante a confissão. A comissão também recomendou à Igreja Católica que ponderasse a possibilidade de tornar o celibato voluntário para os padres.

Alemanha

O relatório elaborado pelo grupo de investigadores alemães inclui 10 recomendações concretas à Igreja Católica, incluindo a de que devem ser mantidos registos detalhados sobre os padres e funcionários da Igreja, devem ser criadas estruturas para apoiar vítimas de abuso, deve ser promovido um alargamento do estudo científico sobre o problema dos abusos, deve haver maior atenção à implementação de processos canónicos e criminais e à punição dos infratores.

Os investigadores apelam também à Igreja Católica que melhore os processos de educação e formação dos padres, que faça uma reflexão interna sobre alguns pressupostos da moral sexual católica, nomeadamente sobre a questão da homossexualidade, e que especifique o que pretende fazer para prevenir os abusos no futuro.

A equipa de investigadores faz também uma recomendação para que seja abordado, concretamente, o segredo de confissão, uma vez que “os clérigos acusados vêem com frequência a confissão como uma oportunidade de revelar as suas próprias infrações” — e que, em alguns casos, o segredo de confissão foi mesmo “usado por suspeitos para iniciar ou encobrir crimes”. Por isso, os investigadores pedem à Igreja que clarifique o papel e responsabilidade do confessor na prevenção dos abusos e na colaboração com investigações — embora não façam um apelo direto ao fim do segredo de confissão.

O relatório pede ainda à Igreja uma reflexão sobre o poder do clero no seio da instituição — o fenómeno do clericalismo, frequentemente apontado pelo Papa Francisco como o grande responsável pelo encobrimento dos abusos — e sobre a responsabilidade da própria instituição em relação às vítimas.

Pensilvânia (EUA)

No seu relatório final, cujo principal destinatário é a Procuradoria-Geral do estado, o Grande Júri da Pensilvânia apresenta quatro grandes recomendações sobre a realidade dos abusos de menores na Igreja Católica: a primeira é a eliminação total do prazo de prescrição para os crimes de abuso sexual de menores; a segunda é a criação de uma janela temporal excecional de dois anos para permitir que as vítimas das décadas passadas voltem a poder apresentar queixa cível com vista à obtenção de uma indemnização; a terceira é um apelo para que a lei seja alterada de modo a clarificar as punições a aplicar a quem não denuncie um crime de abuso sexual de menores; por fim, a quarta recomendação é a introdução na lei estadual de uma proibição de acordos de confidencialidade que impeçam as vítimas de falar com as autoridades sobre os abusos que sofreram.

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O procurador Josh Shapiro tornou-se num dos rostos incontornáveis da luta contra os abusos na Igreja nos EUA

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França

Do estudo feito em França saíram 45 recomendações para a Igreja Católica, mas a mensagem principal que a Comissão quis passar é que a Igreja deve primeiro reconhecer a violência como sistémica e, depois, ressarcir a vítima pelos danos que sofreu, mesmo que os factos já estejam prescritos.

No relatório final pede-se, assim, à Igreja que reconheça os factos relatados e que tome medidas corretivas, tomando mesmo como exemplo a iniciativa do bispo de Luçon (que ainda antes do relatório recebeu vítimas e fez cerimónias e memoriais para as vítimas de abusos).

Além de uma justiça restaurativa, que deve incluir um processo penal, assim como um processo de reconhecimento da violência por parte da Igreja, recomenda-se também uma mudança na gestão da Igreja, que deve ser reorganizada e mais pluralista, controlando assim os riscos de abuso de poder.

Deve também apostar-se na formação para prevenir os abusos, assim como controlar os antecedentes criminais de todos aqueles que trabalhem com crianças.

A Comissão sugere, também, a criação de um número verde para onde as vítimas possam ligar, gerido por uma equipa que esteja em estreito contacto com outras entidades e com formação em lei criminal.

Outra das recomendações prende-se com o segredo confessional a que os padres estão obrigados. Segundo o estudo, a Igreja deve clarificar quais as confissões que deverão continuar cobertas pelo segredo confessional.

Espanha

Ainda não há recomendações.

Que destino foi dado aos vários relatórios?

Portugal

A Comissão Independente entregou à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), responsável por encomendar o estudo, este domingo e só segunda-feira anunciou os resultados publicamente. Horas depois, o presidente da CEP, José Ornelas, garantia numa conferência de imprensa que iria adotar uma política de “tolerância zero” relativamente aos abusos sexuais e que mal tivesse nas mãos a prometida lista de padres abusadores ainda no ativo, que iria tomar medidas (averiguação prévia e possível processo canónico). No entanto, medidas a tomar pela Igreja só serão conhecidas depois do dia 3 de março, quando a CEP reúne extraordinariamente para analisar as conclusões do relatório.

D. José Ornelas promete “tolerância zero” a abusos sexuais, mas suspeitos não serão imediatamente afastados

Irlanda

A crise dos abusos sexuais de menores na Irlanda, suscitada pela sucessão dos quatro relatórios publicados entre 2005 e 2011 (especialmente os dois divulgados em 2009), foi uma das mais duras que a Igreja Católica enfrentou nas últimas décadas e desencadeou uma cascata de reações que chegou até ao Vaticano. No caso irlandês, uma coisa é certa: os relatórios não foram ignorados.

Em dezembro de 2009, um mês depois da publicação do Murphy Report, sobre os casos na arquidiocese de Dublin, o bispo irlandês Donal Murray apresentou a demissão. Murray, que em 2009 era bispo de Limerick, tinha sido bispo auxiliar de Dublin nas décadas de 1980 e 1990 — e o relatório foi especialmente duro com ele, acusando-o de ter ignorado múltiplas denúncias de abusos de menores relativas a padres da arquidiocese. Quando apresentou a demissão, Murray pediu desculpa “a todos os que foram abusados em crianças”, classificando como “indesculpável” a sua inação.

No mesmo mês, a Conferência Episcopal Irlandesa reuniu-se com os relatórios sobre os abusos como ponto central da ordem de trabalhos. A comunicação final foi um pedido de desculpas pelas falhas na “liderança moral” dos bispos: “Nós, como bispos, pedimos perdão a todos aqueles que sofreram abusos cometidos por padres quando eram crianças, às suas famílias e a todos os que se sentem, com justiça, indignados e desiludidos com a falha na liderança moral e na responsabilidade que emerge do relatório.”

Mas a crise desencadeada pelos dois relatórios de 2009 chegou, rapidamente, ao Vaticano. Em fevereiro de 2010, numa altura em que quatro bispos já se tinham demitido na sequência das revelações, o Papa Bento XVI chamou um conjunto de 24 bispos irlandeses ao Vaticano para debater o problema. Naquela fase, várias dioceses já começavam a passar por dificuldades financeiras devido aos esforços por parte de grupos de vítimas que se organizaram para exigir indemnizações.

Um mês depois dessa reunião, o Papa Bento XVI publicou uma carta dirigida a todos os católicos irlandeses a propósito da crise dos abusos. Na carta — um dos mais duros documentos até hoje escritos por um Papa sobre o problema dos abusos de menores na Igreja —, Bento XVI guardou as palavras mais fortes para os padres abusadores (“Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos”) e para os bispos (“Foram cometidos graves erros de juízo e que se verificaram faltas de governo. Tudo isto minou seriamente a vossa credibilidade e eficiência”). O documento que resultou daquela crise ainda é hoje uma das grandes referências para ler a mudança de atitude da Igreja em relação aos abusos de menores pelo clero católico.

Austrália

A publicação do relatório final da comissão de inquérito foi um dos temas centrais do debate público na Austrália durante muitos meses. Da parte do governo australiano, a principal reação foi um longo discurso formal do primeiro-ministro Scott Morrison, no Parlamento, em que pediu perdão às vítimas e garantiu que o governo já estava a trabalhar no terreno para implementar a esmagadora maioria das recomendações práticas que a comissão tinha feito.

Já a Igreja Católica australiana aceitou integrar um esquema de compensações financeiras às vítimas criado no âmbito da comissão de inquérito e aceitou a maioria das sugestões dadas pela equipa, mas rejeitou liminarmente a sugestão relativa ao fim do segredo de confissão para os casos de abuso. Ainda assim, alguns estados decidiram na mesma avançar com leis que acabaram com a proteção legal ao segredo de confissão neste tipo de casos — o que desencadeou um debate aceso no país, com um arcebispo a vir publicamente dizer que a prisão seria preferível à quebra do sigilo.

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O cardeal George Pell (que chegou a estar preso, antes de ser absolvido pelo Supremo) foi um dos principais alvos da Royal Commission na Austrália

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Alemanha

A publicação do estudo científico em setembro de 2018 foi demolidora no seio da Igreja Católica alemã, tendo tido várias ondas de choque.

Por um lado, motivou outros setores da Igreja a levarem a cabo as suas próprias investigações: em 2020, viria a ser conhecido um novo relatório, desta vez sobre o contexto das ordens religiosas, que revelou acusações contra 654 monges e freiras, relacionados com 1.412 crianças. Um ano mais tarde, em 2021, foi a vez da diocese de Colónia, a maior diocese católica da Alemanha, revelar o seu próprio relatório, elaborado por uma firma de advogados, identificando 243 abusadores e 386 vítimas entre 1946 e 2018 só naquela diocese. Em 2022, a diocese de Münster revelou um documento semelhante, elaborado por investigadores de uma universidade, que apontou 196 abusadores e 610 vítimas ao longo do mesmo período de tempo.

Por outro lado, é preciso ter em conta que a dimensão do drama dos abusos de menores revelada naquele documento foi conhecida em setembro de 2018 — poucos dias depois do relatório da Pensilvânia, e numa altura em que o Papa Francisco já tinha convocado a cimeira de fevereiro de 2019, ou seja, contribuiu decisivamente para um debate que já estava em curso na Igreja Católica naquele momento.

Finalmente, o relatório não foi ignorado pela Igreja Católica alemã e as suas conclusões foram um contributo importante para impulsionar alguns debates do Sínodo alemão, um processo de escuta e reforma da Igreja Católica que tem estado em curso naquele país e no qual têm sido discutidas algumas possíveis revoluções, como o fim do celibato sacerdotal, a possibilidade de celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo, entre outras. Na sequência do relatório de setembro de 2018, a discussão em torno do celibato obrigatório intensificou-se — e até se tem discutido a possibilidade de o processo em curso na Alemanha levar a um cisma dentro da Igreja Católica, devido à radicalidade de algumas propostas.

Homossexuais, celibato e mulheres. Podem os bispos alemães conduzir a Igreja a um cisma do século XXI?

Pensilvânia (EUA)

O relatório da Pensilvânia foi um dos três grandes episódios que transformaram o ano de 2018 num annus horribilis para a Igreja Católica — somando-se à controversa viagem do Papa Francisco ao Chile, um país com feridas por sarar no que toca à crise dos abusos, e ao caso do cardeal Theodore McCarrick, o primeiro cardeal a ser demitido na sequência de uma acusação de abusos.

O relatório mereceu uma reação dura por parte dos bispos americanos: “O relatório do Grande Júri da Pensilvânia ilustra, mais uma vez, a dor daqueles que foram vítimas do crime de abuso sexual por membros individuais do nosso clero, e por aqueles que encobriram os abusadores, facilitando um mal que continuou durante anos ou décadas”, disse a Conferência Episcopal dos EUA, em reação ao relatório. “Como grupo de bispos, estamos envergonhados e pedimos perdão pelos pecados e omissões de padres e bispos católicos.” Por outro lado, o relatório da Pensilvânia teve um efeito dominó nos EUA, motivando mudanças na lei e novas investigações em múltiplos estados americanos.

O relatório teve de tal modo um impacto global que o próprio Vaticano emitiu um comunicado, dois dias depois da publicação do documento. “Há duas palavras que podem expressar os sentimentos perante estes crimes horríveis: vergonha e tristeza”, reagiu o Vaticano. “Os abusos descritos no relatório são repreensíveis do ponto de vista criminal e moral. Aqueles atos são traições de confiança que roubaram aos sobreviventes a sua dignidade e a sua fé. A Igreja tem de aprender duras lições do seu passado, e tem de haver responsabilização tanto dos abusadores como daqueles que permitiram que o abuso ocorresse.” Na sequência do relatório, o Papa Francisco chamou ao Vaticano o presidente da Conferência Episcopal dos EUA para debater a crise dos abusos de menores.

300 padres associados a mais de 1000 casos de abuso sexual de menores nos EUA

O documento da Pensilvânia terá sido a gota de água num ano terrível para a Igreja Católica. Um dia depois de anunciar a reunião com o cardeal americano, o Vaticano fez um anúncio ainda mais sério: após uma sucessão de graves escândalos de abusos, de que o relatório da Pensilvânia era o exemplo mais recente, o Papa Francisco tinha decidido convocar a Roma todos os presidentes das conferências episcopais do mundo para uma cimeira dedicada ao tema da proteção de menores. A cimeira, que decorreu em fevereiro de 2019, seria o momento definidor da nova abordagem da Igreja Católica à crise dos abusos sexuais: foi lá que os mais altos responsáveis eclesiásticos do mundo deram o primeiro passo rumo à criação de novas leis internas, apertando o cerco aos abusadores e protegendo de modo mais eficaz as vítimas.

França

Assim que o relatório foi divulgado, em outubro de 2021, vários membros da Igreja Católica mostraram a sua consternação perante os números. No dia seguinte, o próprio Papa Francisco dirigiu-se às vítimas e aos líderes da Igreja referindo-se a este tempo como o da “vergonha”. Ainda assim, cerca de um mês após a sua divulgação, oito membros da Academia católica francesa escreveram ao Papa a criticar o método de estudo utilizado, assim como as suas “discutíveis recomendações”, considerando impossível haver 330 mil crimes e 330 mil vítimas.

A Comissão fez questão de responder a cada uma das críticas, defendendo o método usado e algumas das recomendações começaram mesmo a ser seguidas.

Ainda em novembro de 2021, após a publicação do relatório, como noticiou o jornal francês Le Monde, a Igreja decidiu aplicar um processo de reconhecimento da qualidade de vítima e de reparação dos danos que sofreu, mesmo em casos que tinham prescrito ou que o agressor tinha morrido. Para tal foram criadas duas estruturas: uma pelo episcopado chamada Inirr (Instância Nacional Independente de Reconhecimento e Reparação) para identificar e indemnizar as vítimas de padres e de leigos e outra pela Conferência de Religiosos e Religiosas de França (que representa 450 congregações) denominada de Comissão de Reconhecimento e Reparação (CRR), encarregada de fazer uma mediação entre as vítimas e os institutos religiosos para eventuais indemnizações.

A 30 de setembro de 2021, menos de um ano depois da divulgação do relatório, a Inirr tinha 1.004 pedidos de indemnização, 45 dos quais já decididos e prestes a ser indemnizados. A CRR, com 400 dossiês relevantes, já tinha ressarcido 15 vítimas com montantes entre os 50 mil e os 60 mil euros. Por esta altura as vítimas queixavam-se da demora dos processos.

No início de fevereiro deste ano de 2023 já eram 1.800 os pedidos, segundo Sauvé.

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A divulgação do relatório em França gerou grande indignação pública no país — e no resto da Europa

NurPhoto via Getty Images

Sauvé, que se tem desdobrado em conferências sobre o tema, anunciava também que existiam nove grupos de trabalho na Conferência Episcopal — que estão há um ano a refletir sobre estes temas — que deverão reunir em março de 2023 para decidir questões sobre o governo da igreja, como evitar o abuso de autoridade e a reforma legal na Igreja.

No início deste ano nasceu ainda em Paris, pelas mãos do episcopado francês, uma nova estrutura de direito interno da Igreja católica: um tribunal nacional penal canónico, que terá como função tratar casos de agressão sexual em que as vítimas são maiores de idades.

O TPCN não se vai substituir à justiça civil e poderá também servir para casos de abuso de confiança, de abuso espiritual (sem dimensão sexual) ou até delitos financeiros. Não tratará porém de casos de abusos de menores, que continuarão a ser julgados no Vaticano. Mas será o primeiro tribunal especializado em questões penais com competência nacional e que terá como membros oito padres e cinco leigos.

Até agora estes assuntos eram tratados em tribunais eclesiásticos diocesanos, muitas vezes sem especialistas suficientes em direito canónico e com padres da própria diocese a servir de juiz. Assim haverá uma maior independência.

Espanha

Apesar de ainda não haver conclusões, a Conferência Episcopal espanhola parece ter dado alguns passos em 2022 na luta contra os abusos no seio da instituição. Ainda antes de haver resultados do estudo que encomendou, que corre paralelamente ao do provedor,  a Igreja criou um serviço de coordenação e ajuda para as vítimas, integrado por psicólogos e outros especialistas. Aprovou também um protocolo, denominado “Marco”, de prevenção e atuação em caso de abusos e lançou o site “paradarluz.com” com várias informações destinadas às vítimas de abuso sexual.

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