“Perante a vida ou a morte de uma mulher de 37 anos, eu acho que temos de lhe dar uma hipótese.” A frase é de Sylvia Dissimoz, a médica do INEM que estava de serviço no CODU Lisboa na noite de 13 de abril de 2017. Ao telefone com o médico António Peças, do helicóptero de Évora, tentava convencê-lo a transportar uma doente do Hospital de Faro para o Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide. “Eu não estou a discutir a hipótese”, respondeu António Peças, que acabaria por aceitar o serviço e voar para Faro, mas já não a tempo de o cumprir — a mulher, de 37 anos, não resistiu à ruptura de um aneurisma.
Não estando em causa a possibilidade de a doente se salvar caso o helicóptero tivesse saído de Évora mais cedo — até porque, com a ruptura do aneurisma, as hipóteses seriam muito diminutas —, o caso foi incluído numa carta enviada pela própria Sylvia Dissimoz ao INEM por causa da forma como a questão foi tratada com o médico do helicóptero, que a médica do CODU considera “muito desconfortável”.
A esse caso, Sylvia Dissimoz juntava ainda um outro que se lhe seguiu: o de um homem de 82 anos que tinha dado entrada no Hospital de Évora, pela Via Verde AVC, e que António Peças recusou taxativamente transportar, por entender que o quadro clínico não o exigia e que o transporte de ambulância para Lisboa, onde iria fazer um tratamento que tinha de começar dentro de uma janela de tempo reduzida para ser eficaz, seria mais rápido. Nessa segunda discussão, o médico lembraria, aliás, o episódio anterior: “A última vez que tu me mandaste [sair] e que estivemos a conversar, mandaste-me para uma doente que estava morta”.
Os registos das chamadas de ambos os casos, a que o Observador teve acesso, revelam ainda o desconforto de alguns médicos nas conversas com António Peças (sobretudo a médica do Hospital de Faro, que cuidava da doente com o aneurisma) e alguns desabafos entre elementos do CODU: “Deve ser o Peças o médico do heli, não? Essa história é sempre igual. É reiterado. Eles tentam sempre não sair”.
O médico foi, entretanto, afastado do INEM. A cessação do contrato, já comunicada ao médico, tem a data do próximo dia 1 de fevereiro. A Ordem dos Médicos entregou o caso ao Conselho Disciplinar e o Ministério Público decidiu também abrir um inquérito para investigar as denúncias.
Ouvir as chamadas é perceber como coisas aparentemente simples — e urgentes — se transformam em discussões demoradas, em mudanças de planos, em soluções alternativas, com hospitais sem vagas, ambulâncias sem equipa ou falta de pessoas para acorrer a todas as situações — enquanto os doentes esperam.
“Qual é a urgência do transporte?”
[Ouça aqui os momentos mais relevantes das chamadas registadas pelo INEM neste caso]
13 de abril de 2017. Poucos antes das 23h30, o Hospital de Faro liga para o CODU. Tem uma doente no serviço de urgência com um aneurisma na artéria aorta. Além de ser um caso delicado, precisa de cirurgia urgente e aquele hospital do Algarve não tem esse serviço. Já contactou o Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, que está pronto para recebê-la.
A mulher tem 37 anos e um historial clínico relacionado com problemas renais. Tinha entrado no serviço de urgência 48 horas antes, mas só naquela altura tinha sido diagnosticado o problema, um rasgo de grandes dimensões na parede interna da artéria, com o risco iminente de ruptura também da parede externa.
Em tese, o meio mais rápido para o transporte seria o helicóptero estacionado em Loulé, também no Algarve, mas a aeronave estava a fazer um outro serviço e demoraria a chegar. A solução foi recorrer ao helicóptero de Évora, que tinha de serviço, naquela noite, o médico António Peças, cirurgião do Hospital de Évora e prestador de serviços ao INEM.
A primeira chamada do CODU para o médico, com o pedido para sair para Faro, chegou pouco depois. À chamada junta-se o hospital de Faro, a quem cabe explicar a situação. É “uma jovem”, está “consciente, orientada e colaborante”, mas tem “uma disseção da aorta ascendente, que envolve carótidas, aorta torácica descendente e abdominal, com lesão até às femorais”.
Logo ali, António Peças duvida:
António Peças: Essa situação não tem indicação operatória…
Hospital de Faro: Não?
António Peças: Não, digo eu.
Hospital de Faro: Não sei, ela foi aceite em cirurgia cardíaca no Hospital de Santa Cruz, portanto imagino que tenha indicação operatória…
António Peças: Espere lá, espere lá, espere lá… Vamos lá falar com calma, está bem? Não vale a pena estar a falar dessa maneira. (…) Essa doente vai para Santa Cruz para ser operada ou para ser estudada?
Hospital de Faro: Ser estudada a quê?
António Peças: Bom, se quiser ir pelo caminho do esclarecimento, nós vamos pelo caminho do esclarecimento. Se não quiser ir pelo caminho do esclarecimento, vai ter que ir por outro caminho que não é o meu.
Hospital de Faro: Mas eu não estou a perceber a questão que me está a colocar…
António Peças: A questão que lhe estou a colocar é muito simples: essa doente vai para Santa Marta [Santa Cruz], tem indicação operatória? É que eu desconheço que haja uma cirurgia que consiga resolver uma disseção da aorta que vai até às femorais.
A médica de Faro, até então com um tom sempre calmo, começa a ficar claramente desagradada com a conversa. Pergunta-lhe de novo o nome e António Peças aproveita para sublinhar que é cirurgião. A médica responde que contactou três serviços de cirurgia: Santa Maria não tinha vaga, Santa Marta não o poderia fazer ainda naquele dia e Santa Cruz, que aceitou receber a doente. “Eu imagino que eles tenham aceite o doente porque a doente tem indicação cirúrgica e o que me disseram é que iam operar a doente“, concluiu.
A explicação, porém, não demove o médico, que pede, então, para falar com o Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, para saber se a doente vai ser operada naquela mesma noite. Apresenta-se e fala das dúvidas que tem.
António Peças: Para já, nunca vi uma disseção da aorta que vai desde a raiz até às femorais, nunca vi, mas tudo bem, acredito que haja e que não tenha ouvido e visto tudo na vida. Agora a minha questão é: vocês vão operar essa doente quando ela aí chegar hoje?
Hospital de Santa Cruz: A nossa ideia era ver os exames e ser logo para de manhã. Vai chegar cá já de madrugada e já tem 48 horas, já que esperou, ser de manhã é mais seguro operar do que estar a fazer durante a madrugada. (…) Como nós tínhamos vaga e para ficar em vigilância, recebíamos já, íamos orientando as coisas, para então de manhã… isso será para operar.
Com a informação de que a doente seria operada apenas de manhã, António Peças prepara-se para terminar a conversa, mas é interrompido pela médica de Faro que também estava na chamada em conferência e não gostou de ouvir o médico questionar o diagnóstico que tinha sido feito. “Ao contrário da sua experiência como cirurgião, que eu não questiono e não está em causa, vou-lhe ler o relatório da TAC, que finalmente tenho”. António Peças, porém, não quer ouvir.
António Peças: Eu não tenho nada que ouvir o relatório da TAC.
Hospital de Faro: Oh Dr. Peças, posso falar? Se não se importar que eu fale, uma vez que questionou a disseção…
António Peças: Eu não questionei a disseção! Repare numa coisa, eu não tenho nada que questionar a disseção…
Hospital de Faro: Questionou a disseção. Oh Dr. Peças, eu ouvi-o portanto eu agora vou-lhe pedir que me ouça, está bem?
Acaba, porém, por não o fazer porque a conversa se torna mais desagradável:
António Peças: A doente está aí há 48 horas e, por aquilo que me disseram, vai ser eventualmente intervencionada amanhã de manhã.
Hospital de Faro: Não é eventualmente intervencionada, vai ser intervencionada amanhã de manhã.
(…)
António Peças: Eu com a senhora doutora tenho a minha conversa terminada. Agora falo com o CODU. Eu consigo não tenho mais nenhuma conversa a ter, está bem?
Hospital de Faro: O colega, portanto, recusa-se a transportar a doente, é isso?
António Peças: É uma satisfação que eu não tenho que lhe dar a si. (…) A nossa conversa, do meu ponto de vista, não tem mais justificação, vou falar agora com o CODU, está bem? Muito gosto, uma boa Páscoa para a sôtora.
Já só com o CODU, diz que não tem “muita paciência para aturar a colega de Faro” e insiste que o transporte não faz sentido. “Qual é a urgência do transporte?”, questiona. Sylvia Dissimoz, a médica do CODU, explica que uma das regras do helitransporte é a de transportar doentes urgentes que estão em hospitais que não têm o serviço de que precisam — como era o caso — e que mesmo que só fosse operada de manhã, a doente passaria a estar “em vigilância estrita” por uma equipa de cirurgia vascular, podendo ser operada de imediato “se a coisa evoluir mal”, o que não aconteceria em Faro.
António Peças: Se a coisa evoluir mal, ela morre. E a probabilidade de ela morrer no intra-operatório ou no pós-operatório é elevadíssima!
CODU: É elevadíssima, mas, perante a vida ou a morte de uma mulher de 37 anos, eu acho que temos de lhe dar uma hipótese!
António Peças: Mas eu não estou a discutir a hipótese!
CODU: E vir por terra uma mulher com disseção de aorta, uma viagem de três horas…
O CODU ainda avalia a possibilidade de esperar que o helicóptero de Loulé regresse do transporte que também foi fazer a Lisboa, mas não há estimativa de quando isso aconteceria. António Peças insiste e explica que o tempo que ele próprio, a partir de Évora, demoraria a voar até Faro, abastecer, preparar a doente e seguir para Lisboa não tornaria o transporte mais rápido do que fazê-lo de ambulância: “A única coisa que eu acho é que tens duas coisas: se dá para a torto, a doente morre — pelo ar, pela terra, por onde seja. Morre, ponto final”, conclui o médico.
António Peças: Tens uma doente que está há 48 horas no serviço de urgência e agora é que é urgente ir para Lisboa para ser operada amanhã? (risos)
CODU: A situação chega ao INEM agora, o que se passou antes… percebes? O que eu sei é que esta senhora é nova e tem de estar perto de um cirurgião vascular. E é uma valência que Faro não tem.
A médica do CODU acaba por decidir acabar a chamada e avaliar outras possibilidades. Minutos depois, liga de novo com a decisão. Não só já confirmou os tempos que demorariam a chegar, como se lembrou que a colega do Hospital de Santa Cruz “acha que é melhor que a doente chegue para estabilizar e preparar a senhora para a cirurgia”: “Para nós é para sair”, diz. “Agora, não sei se tu não queres…”. “Oh Sylvia, não é não querer”, responde António Peças.
António Peças: Eu nunca me nego a nada. Acho que isto é uma cagada, mas pronto, tudo bem. Achas que eu daqui a uma hora estou em Lisboa, não é? Então aponta aí, é meia noite e quinze, é correto? Desde o princípio tu não me ouviste dizer que recusava o transporte…
CODU: Sim, mas estás a falar muito de coisas para não fazer o transporte…
António Peças: Sim, ouve lá, está tudo bem!
CODU: Se não concordas com o transporte, tens direito. Para mim é só dizer e eu faço o que tenho a fazer.
Segundo documentos a que o Observador teve acesso, o helicóptero acabaria por descolar do heliporto de Évora às 00h38, uma hora depois de ter sido pedido. E a equipa está já em Faro quando se confirma o pior cenário. Pelas 2h27, António Peças comunica ao CODU que o quadro clínico da doente é agora muito mais grave: a doente entrou em paragem cardíaca e teve de ser reanimada. Passou a estar entubada, ventilada e muito instável.
“Basicamente, aquilo que eu acho é que a disseção estourou”, diz o médico. “Do meu ponto de vista, esta doente, neste momento, não tem mínimas condições sequer para ser transportada. No entanto, vamos nos precaver de qualquer situação menos agradável para a nossa parte. Agradecia-te que perguntasses à colega de Santa Cruz, tendo em consideração que houve este agravamento (…), se ela continua disponível para receber uma doente que está entubada e ventilada“, acrescentou.
No Hospital de Santa Cruz, em Carnaxide, a médica que esperava a doente tem dúvidas, perante o novo cenário. “A questão é que, se está em ruptura, não vai chegar aqui viva”, diz. Acresce que, em caso de paragem cardíaca durante o voo, não seria possível avançar com manobras de reanimação a bordo.
Ainda é pedida a opinião a um colega mais velho, que entra em conferência com o médico do helicóptero e confirma que também acha que já não há condições para o transporte. A doente acabaria por morrer no hospital de Faro.
“O colega do heli não lhe apetece levar o doente, já percebi”
[Ouça aqui os momentos mais relevantes das chamadas registadas pelo INEM neste caso]
16 de maio de 2017. São 2h13 da manhã quando chega ao CODU um pedido do Hospital de Évora: na urgência estava um homem de 82 anos, encaminhado pela Via Verde AVC. Está consciente e colaborante, mas os exames mostram que tem um trombo na artéria cerebral e precisa de tratamento no Hospital de S. José, em Lisboa. A trombectomia endovascular (o tal tratamento que permite fazer a remoção do coágulo que provocou o AVC), para ser eficaz, tem de ser feita numa janela de seis horas, desde os primeiros sintomas. E, neste caso, o tempo tinha começado a contar às 22h45, quando o homem estava em casa. Só às 00h48 chegou ao hospital e tinha passado uma hora a fazer vários exames, até ser pedida a transferência para Lisboa.
Hospital de Évora e CODU fazem contas e concluem que é melhor optar pelo helicóptero: “Compensa porque a gente [de helicóptero] consegue pô-lo lá em menos de uma hora, certamente, e nós aqui [no hospital] o problema é que não temos ambulâncias a tempo e horas, que vêm de fora e não sei quê”, explica a médica do serviço de urgência.
Tomada a decisão, às 2h33 o CODU contacta António Peças, o médico de serviço ao helicóptero nessa noite, e explica o caso. Peças pede mais detalhes e não gosta da resposta:
António Peças: O doente está ventilado?
CODU: Não, não está ventilado…
António Peças: O doente não está ventilado?
CODU: … está bem?
António Peças: Desculpe lá, não está bem, não.
CODU: Pois…
António Peças: Desculpe lá, oh Dra. Teresa, isso não é assim. (…) Se o doente está em ventilação espontânea [respira sozinho], qual é a justificação para um helitransporte?
CODU: Por causa da rapidez. Porque ele tem de fazer aquilo rapidamente. Pelo menos é isso que foi pedido.
António Peças: Não, não, não. Se é esse o argumento, digo-lhe já que recuso o transporte.
O médico explica depois que entende que “a questão da rapidez é uma farsa”. “Se o doente tivesse sido metido numa ambulância, neste momento já estaria a caminho de Lisboa. (…) Se o doente está entubado e ventilado, se eles não tem condições para… é uma desculpa que se usa muitas vezes, não têm pessoal em número suficiente para acompanhar o doente ventilado, tudo isso… Agora, se o doente está em ventilação espontânea e precisa de ir para S. José rapidamente, vai acompanhado de enfermeiro e de ambulância, não precisa de ir acompanhado de médico“, conclui.
A médica do CODU ainda responde que isso é o lógico, “mas nós não vivemos num país de lógica” e pergunta: “Diga lá, recusa o transporte, é isso?”. “Eu aceito o transporte se o doente for ventilado. Se o doente for em ventilação espontânea, não encontro justificação para o helitransporte. Nem a rapidez é argumento”, responde António Peças.
Aquela médica, de serviço no CODU, estava, na verdade, no seu tempo de descanso e acaba por passar o caso para as mãos de outra médica — Sylvia Dissimoz, a mesma que tratou do transporte da doente de Faro e que pediu, depois, ao INEM para analisar ambas as situações. Nessa passagem de serviço, percebe-se que os problemas com aquele médico seriam frequentes.
Sylvia, CODU: Falaste com o médico do heli?
Teresa, CODU: Falei.
Sylvia, CODU: Deve ser o Peças, o médico do heli, não?
Teresa, CODU: Sim…
Sylvia, CODU: Essa história é sempre igual.
Teresa, CODU: É sempre? Ah, então pronto…
Sylvia, CODU: Sempre. Isto é reiterado. Eles tentam sempre não sair.
Teresa, CODU: Pois, eu também achei que havia aqui… que era isso, não é?
É já Sylvia Dissimoz quem liga de novo para António Peças, que continua irredutível: “Eu não transporto o doente em ventilação espontânea. Não transporto. Não tem parâmetros de transporte”. A médica do CODU explica que isso não é verdade, que o caso está dentro dos parâmetros para usar o helicóptero e que se então era sempre mais rápido ir de ambulância, como ele dizia, mais valia acabar com o helicóptero. Peças insiste, entende que o caso é um pedido injustificado de “transporte ao domicílio”.
António Peças: Não acho que seja indicação de helitransporte.
CODU: Então fazes por escrito…
António Peças: Faço por escrito, faço como tu quiseres. E, se for preciso, levanto um processo disciplinar ou faço uma queixa na Ordem dos Médicos ou nos tribunais a propósito de alguém que me está a cravar a mim para levar um doente que acha que está no limite das 6 horas e meia para fazer trombectomia e ainda não meteu o doente dentro de uma ambulância para o pôr em Lisboa, em ventilação espontânea!
Também não quer fazer uma chamada em conferência com o Hospital de Évora, mesmo que as regras do helicóptero assim o definam, o que leva a médica do CODU a um desabafo:
CODU: E eu estou farta, e vou-te dizer, que cada saída do heli seja um problema! Cada saída do heli é um problema!
António Peças: Não, não! Comigo?! Olha, a última vez que tu me mandaste e que estivemos a conversar, mandaste-me para uma doente que estava morta. Estava morta!
CODU: E tu sabes como correu isso…
António Peças: Lembras-te? Pronto. E quando eu cheguei lá em baixo, a colega de Faro até me pediu muita desculpa.
Peças recordava, assim, o episódio do aneurisma de Faro, que ele próprio entendia não ser urgente e no qual a doente, de 37 anos, acabou por morrer.
Perante o impasse, quando já são três da manhã, a médica do Hospital de Évora queixa-se da demora: “Nós temos seis horas para pôr o doente em Lisboa e eu estou aqui há uma hora ao telefone convosco. O colega do heli não lhe apetece levar o doente, já percebi. (…) Não quer transportar o doente, primeiro porque tinha de ir entubado, agora porque tem de ir por terra. Deve ser o Dr. António Peças, quase de certeza, de serviço, não é verdade?”, questiona. “Eu vou tentar dar a ordem, como médico regulador, de este helitransporte ser feito. Se o colega do heli recusar, recusa e dá explicações a seguir à casa”, responde a médica do CODU.
Nova chamada, nova recusa.
CODU: António, é para sair. Se tu quiseres recusar, recusa. Agora é para sair, é a indicação do CODU. E depois vamos escrever estas coisas todas e as da outra saída, eu vou tomar medidas sobre o assunto, mas, neste momento, a minha indicação como médico regulador [do CODU] é para sair.
António Peças: Pronto. E o doente está em ventilação espontânea?
CODU: Sim, está em ventilação espontânea.
António Peças: Sim, senhora. Eu não faço o transporte. Tá?
CODU: Não fazes? OK. Fica registado.
António Peças: Que fique registado. Fica registado e se calhar quem vai fazer uma queixa sou eu, por vocês estarem a ativar o helicóptero numa situação destas.
O CODU tenta, então, encontrar uma alternativa com o Hospital de Évora. Admitem chamar o helicóptero de Loulé, mas acabam por concordar que a melhor opção será recorrer a uma ambulância do hospital. “Para aí uma hora e um quarto, a acelerar”, diz a médica da urgência.
O doente acabaria por chegar ao Hospital de S. José apenas às 5h15 de manhã, transportado pelos bombeiros de Arraiolos e acompanhado por médico e enfermeiro do serviço de urgência do Hospital de Évora, três horas depois do pedido do helicóptero. O tratamento endovascular já não foi feito, avaliado o risco/benefício da intervenção naquela altura, já fora da janela das seis horas recomendadas. Não estaria em causa qualquer risco de vida, mas o tratamento — para atenuar eventuais sequelas — ficou por fazer.
Na sequência do episódio, além da carta enviada por Sylvia Dissimoz sobre os dois casos pedindo ao INEM para ouvir todas as chamadas e explicar-lhe se está a fazer “erros como médica reguladora em relação aos critérios de ativação dos helis”, o Instituto Nacional de Emergência Médica também recebeu uma queixa da médica da urgência de Évora que tratou do caso, reencaminhada pela administração do centro hospitalar.
Irineia Lino relata toda a situação e diz que acredita que “o atraso no transporte deste doente mediado pelo CODU e, ao que parece, pelo médico de serviço no helicóptero (…) pode estar relacionado com o desfecho menos favorável desse doente“, pedindo que sejam apuradas responsabilidades.
A mesma médica já tinha estado na origem de um processo em tribunal com António Peças (que também exerce funções de cirurgião do hospital de Évora), depois de uma troca de emails que considerou ofensivos e que ditou o afastamento do médico dos serviços na Viatura de Emergência Médica, que ela coordenava, em 2012. Em 2016, o Tribunal do Trabalho de Évora ainda condenou o hospital a reintegrar nas escalas da VMER António Peças, que se dizia vítima de um “ato discricionário e infundado”, e a pagar-lhe uma indemnização de 44 mil euros. Num recurso, porém, o Supremo Tribunal de Justiça viria a anular a decisão. O acórdão, de outubro de 2017, concluiu que a coordenadora tinha todo o direito de escolher os médicos para o serviço e não encontrou qualquer ilegalidade na decisão de o afastar das escalas.
O INEM também recebeu um pedido de apuramento de responsabilidades por parte do filho do doente em causa, num email enviado à Direção Regional Sul do INEM a 23 de maio. Queixa-se que o transporte do pai para Lisboa “foi recusado sem qualquer observação ao doente por parte do médico do serviço de helicóptero do INEM” e pede explicações sobre a recusa e o não cumprimento, assim, do protocolo da Via Verde AVC.
Casos seguiram para a IGAS. MP também está a investigar
Estes dois casos, tal como o episódio em que António Peças alegou ter uma gastroenterite para não transportar um doente para Lisboa, estando, afinal, numa tourada (como as fotografias do evento comprovam), foram recolhidos pelo INEM e analisados no inquérito interno noticiado pelo Observador na segunda-feira passada.
Fotos provam que médico do INEM assistiu mesmo à tourada em Évora
Nas conclusões, o instrutor dessa investigação recomendou ao INEM que enviasse o caso para a Inspeção Geral das Atividades em Saúde e para a Ordem dos Médicos e fizesse cessar o contrato de prestação de serviços do médico em causa — o que acontecerá, confirmou o INEM, já a partir de 1 de fevereiro.
Na reação, António Peças acusou o Instituto de perseguição. Ao jornal Público, o médico garantiu que estava a ser saneado: “É o resultado do desconforto pelas declarações que tenho proferido. Sem dúvida alguma”. Referia-se a declarações que fez no programa Sexta às 9, da RTP, a propósito de um outro processo que corre na IGAS e que analisa um caso de suposta utilização ilegal do helicóptero pela diretora do departamento de Emergência Médica. Na reportagem, o médico concluía que a responsável deveria ser demitida, se as suspeitas se provassem.
Ao Observador, porém, Peças nunca levantou esta questão, apesar de ter confirmado a existência do inquérito — e de um outro, por parte do Hospital de Évora. Limitou-se a desmentir as denúncias relacionadas com o episódio da tourada, mas, quando o Observador o confrontou com as contradições da sua versão, a conversa acabou. “Não lhe vou responder a esta pergunta, nem lhe vou responder a mais nada”, concluiu.
Esta quarta-feira, ficou também a saber-se que António Peças está a ser investigado pelo Ministério Público e também por causa das suspeitas de sobreposição de escalas — com dezenas de relatos de que estaria a trabalhar nos mesmos dias e às mesmas horas no hospital e no helicóptero, recebendo ambas as remunerações. O inquérito foi aberto no Departamento de Investigação e Ação Penal de Évora e não tem, para já, arguidos constituídos.
Perante estes outros dois casos, o Observador tentou contactar, de novo, António Peças, esta quarta-feira, mas não obteve resposta.