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Os referendos são perigosos para a Democracia?

Agora foi em Itália, mas antes já tínhamos tido o Reino Unido, a Colômbia, a Grécia, a Hungria... Os referendos polarizam opiniões e reduzem questões complexas a “sim" ou "não”. Isso é bom ou mau?

Primeiro, o Reino Unido. Depois, a Colômbia. E, este domingo, Itália. Os britânicos votaram pelo Brexit e o primeiro-ministro, David Cameron, demitiu-se; os colombianos votaram contra o acordo de paz negociado pelo governo e provocaram um impasse; e os italianos reprovaram uma reforma constitucional e, assim, provocaram a demissão do primeiro-ministro Matteo Renzi.

Os referendos têm provocado terramotos políticos em vários países e os especialistas começam a alertar para as consequências de permitir aos eleitores tomar decisões diretamente — ou seja, sem que o parlamento esteja envolvido — sobre questões complexas. Uma democracia não é o mesmo que uma ditadura da maioria, mas, durante um referendo, pode haver menos espaço para acomodar as nuances de sociedades cada vez mais diversas: é sim ou não, saída ou permanência, legalização ou criminalização, uma fórmula que umas vezes deixa de fora a voz das minorias e outras vezes as amplia desproporcionadamente.

“Os referendos são ferramentas imprecisas para o exercício da democracia, porque pedem aos cidadãos uma resposta fechada a assuntos complexos, ou emocionais, como no caso da Colômbia. Os referendos resultam muitas vezes numa divisão profunda que os próprios políticos não antecipam nem querem”, diz ao Observador Alexandra Cirone, investigadora sênior na área Economia Política na London School of Economics.

"Os referendos são ferramentas imprecisas para o exercício da democracia, porque pedem aos cidadãos uma resposta fechada, sim ou não, a assuntos complexos, ou emocionais, como no caso da Colômbia ou nos referendos pela aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo."
Alexandra Cirone, professora de Economia Política na London School of Economics

“O referendo na Irlanda para decidir a aprovação do casamento entre casais do mesmo sexo foi uma autêntica festa, mas imaginemos que as pessoas não tinham votado pela legalização. Estaria então em causa a aceitação, por parte da maioria do eleitorado irlandês, da generalidade dos direitos da comunidade LGBTQ?”, perguntava, num recente artigo publicado na revista New Statesman, Julia Rampen, editora do blogue de política The Staggers. “O resultado do referendo sobre o Brexit não contempla os desejos, expressos por diversas vezes, das nações que constituem o Reino Unido, mas é bem possível que o voto para sair, concentrado principalmente no centro de Inglaterra, possa vir a pôr em causa o processo de paz na Irlanda do Norte”, acrescenta.

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A decisão sobre o Brexit afetou principalmente a Europa, mas este foi igualmente o ano em que os cidadãos da Colômbia escolheram, também num referendo, dizer “Não” aos acordos de paz negociados com as FARC — Forças Revolucionárias Armadas da Colômbia. Meio século de guerra civil não se resolve com um x num boletim de voto, nem com um debate que se reduziu a isto: o governo pelo acordo de paz, a oposição pela punição dos guerrilheiros. Os colombianos que votaram contra argumentam que defendiam a reformulação do texto, que seria demasiado brando com os crimes das FARC, deixando aberta a possibilidade de perdão legal para os guerrilheiros.

Na Colômbia, o acordo de paz promovido pelo governo foi rejeitado em referendo

LEONARDO MUNOZ/EPA

Jerónimo Ríos Serra, professor de Relações Internacionais na Universidade Católica de Manizales, 300 km a ocidente de Bogotá, diz ao Observador que não concorda com a realização de referendos quando o que está em causa é “um direito humano fundamental”: “Existem direitos fundamentais, como a paz, que se assumem como bens jurídicos superiores de uma sociedade e, portanto, não se podem colocar ao dispor. Não podemos consultar as pessoas para garantir a liberdade, a igualdade ou a justiça. São imperativos de um Estado de Direito. Quando os colocamos em causa, como no caso da Colômbia, o resultado acaba por ser uma subversão da democracia”. Mais: “O debate sobre uma questão tão complicada exigia uma muito melhor explicação daquilo que estava escrito nos acordos, o que não foi feito”

O afunilamento do debate aconteceu também no Reino Unido. Antes de David Cameron, ex-primeiro-ministro britânico, ter prometido a realização de um referendo à permanência na UE, as sondagens mostravam um país pouco preocupado com a relação que mantinha com Bruxelas — mas, quando a campanha começou a aquecer, a Europa passou para o segundo lugar da lista de preocupações, apenas atrás da economia. Cada um dos lados concentrou-se em apenas um argumento: o “Sair” optou por explorar o medo do aumento do número de imigrantes, o “Ficar” o medo do colapso financeiro.

Em outubro passado, a Hungria pediu aos seus cidadãos que respondessem à seguinte pergunta: “Deseja que a União Europeia decrete uma relocalização obrigatória de cidadãos não-húngaros na Hungria sem a aprovação do parlamento húngaro?”. Noventa e cinco por cento dos eleitores responderam que não queriam aceitar mais imigrantes, mas o referendo não foi vinculativo, porque a participação se fixou abaixo dos 50%. É impossível saber se a abstenção foi uma estratégia de boicote, como pediram nas redes sociais ativistas e Organizações Não-Governamentais de apoio a refugiados, ou simples indiferença — mas os resultados foram utilizados por Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, como uma prova de que existe uma parte significativa da população preparada para se opôr àquilo que ele considera serem os “diktats da EU”.

Até aos anos 60 realizaram-se, em média, dois referendos por ano, em todo o mundo. Dos anos 60 aos anos 80, foram cerca de dez. E a média está agora perto dos 50 por ano.

Em abril, a Itália pediu à população que decidisse sobre a possibilidade de se iniciar a exploração petrolífera em plataformas off shore e, em fevereiro de 2015, a Eslováquia referendou o casamento entre pessoas do mesmo sexo — mas nenhuma das duas consultas provocou qualquer mudança, já que a participação também não atingiu o mínimo de 50 por cento.

Na Grécia, no verão do ano passado, o primeiro-ministro Alexis Tsipras submeteu a aceitação das condições do bail-out ao voto popular, mas concedeu apenas oito dias para a campanha. Os eleitores disseram “Não”, o que levou alguns líderes europeus a avançar com a ideia da saída do euro, mas a Grécia acabou depois por aceitar as condições da Europa para continuar a receber ajuda.

Porquê tantos referendos?

Há historiadores que defendem que o primeiro referendo se realizou na Coreia, no século XV, e que visava a instituição de um sistema mais justo de cobrança de impostos. Não é possível saber quantas consultas se realizaram desde então, mas há cada vez mais países a utilizarem o referendo como instrumento democrático. Até aos anos 60 realizaram-se, em média, dois referendos por ano, em todo o mundo. Dos anos 60 aos anos 80, foram cerca de dez. E a média está agora perto dos 50 por ano. São contas feitas por Matt Qvortrup, professor de Ciência Política Aplicada na Universidade de Coventry, no Reino Unido, e autor de “Referendums Around the World” (Referendos pelo Mundo), um estudo sobre as causas e consequências de 200 referendos.

Em Portugal, realizaram-se até hoje três referendos nacionais, dois sobre Interrupção Voluntária da Gravidez e um sobre a regionalização — mas nenhum deles teve uma participação superior a 50%. Na primeira consulta, a 28 de junho de 1999, perguntava-se: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Apenas 31,9% dos eleitores se dirigiram às urnas e o “não” ganhou com 50,9% dos votos.

O governo socialista de António Guterres deixou, então, a lei inalterada. Quase uma década depois, num referendo convocado por José Sócrates, a resposta foi a inversa: o “sim” venceu com 59,25% dos votos e a taxa de participação fixou-se nos 43,57%. Um nome que ficou associado a estas duas campanhas foi o de Marcelo Rebelo de Sousa, que, em 1998, defendeu a realização do referendo e também o voto no “não”.

"Antes de David Cameron prometer o referendo, a União Europeia era um problema para apenas um por cento do eleitorado. Ele subestimou o quanto os britânicos estavam zangados com a situação do país, não soube ver que a oposição facilmente tornaria a Europa na causa desses problemas"
Matt Qvortrup, professor de Ciência Política Aplicada na Universidade de Coventry

O outro assunto sobre o qual os eleitores portugueses foram chamados a decidir via referendo realizou-se em novembro de 1998, sobre a regionalização. Com uma percentagem de votantes de 48,1%, 63,52% responderam “não” e a regionalização não avançou.

Ao telefone com o Observador, Qvortrup explica a crescente popularidade dos referendos: “Hoje em dia as pessoas não se identificam tanto com os partidos nos quais costumavam votar. Antes dos anos 80, o apoio ao ‘partido de sempre’ de cada um era quase tribal, mas hoje as pessoas trocam de opinião como quem adquire um novo produto de cada vez que nos dirigimos a uma loja. Os avanços tecnológicos na área da partilha de informação e a multiplicação de partidos são dois fatores que podem ajudar a explicar esta mudança”, diz.

Esta pulverização da opinião pública, explica Qvortrup, “leva a que a posição de um político hoje em dia seja muito mais frágil do que há 20 ou 30 anos, o que faz com que alguns governantes tenham medo de decidir sobre questões controversas, que lhes podem custar o apoio do eleitorado, cada vez mais volátil”. Conclusão: “Preferem utilizar referendos”.

Para o autor, foi precisamente isso que aconteceu no Reino Unido. “O caso Brexit é complicado: por um lado, cai na categoria de assuntos suficientemente importantes para que se realize um referendo; por outro, isto só aconteceu porque David Cameron teve medo de perder votos à sua direita. Antes de ele prometer o referendo, a União Europeia era um problema para apenas um por cento do eleitorado. Ele subestimou o quanto os britânicos estavam zangados com a situação do país, não soube ver que a oposição facilmente tornaria a Europa na causa desses problemas”, completa.

David Cameron convocou o referendo sobre o Brexit porque teve medo de perder votos à sua direita - acabou por ter que se demitir

Getty Images

Da Austrália vem um exemplo dessa “manobra de fuga”: o governo conservador de Malcolm Turnbull prometeu que realizaria um referendo ao casamento entre pessoas do mesmo sexo se vencesse as eleições, apesar de as sondagens mostrarem que mais de 70% da população apoia a introdução da nova lei. O Partido Trabalhista australiano bloqueou entretanto a marcação desse referendo, dizendo que a modificação legislativa deve emanar do Parlamento, já que uma campanha sobre um assunto tão sensível criaria uma crispação desnecessária na sociedade.

Como evitar as armadilhas

Mas então, paramos de dar às pessoas a possibilidade de decidirem diretamente sobre alguns dos assuntos mais importantes? Também não. “As sociedades onde as pessoas são chamadas mais vezes a decidir o seu futuro são aquelas em que as pessoas apresentam um maior conhecimento sobre assuntos políticos e uma maior taxa de confiança nas instituições que as governam. Por outro lado, os referendos devem ser utilizados apenas em assuntos importantes, porque a autoridade dos parlamentos não deve ser esvaziada”.

Os suíços não concordam. A Constituição do país prevê que qualquer iniciativa de alteração constitucional que consiga mais de 100 mil assinaturas num período inferior a 18 meses seja levada a votação. Também se pode votar para travar uma lei — e para isso são apenas precisas 50 mil assinaturas recolhidas em menos de três meses (100 dias).

Desde 1848, realizaram-se na Suíça quase 630 referendos, segundo dados consultados pelo Observador nas páginas no governo. Alguns dos mais inusitados: em 1989 o país votou, e rejeitou, a iniciativa civil para a eliminação do seu exército; em 2008, votou-se uma proposta para dar aos cidadãos de cada localidade a possibilidade de votarem, anonimamente, pela naturalização ou não dos cidadãos locais que desejassem tornar-se suíços (também não passou); um ano depois, a Suíça votou contra a construção de minaretes, de onde tradicionalmente ecoa o chamamento para as preces muçulmanas.

Matt Qvortrup lembra algumas vantagens dos referendos: eles promovem o diálogo entre militantes de diferentes partidos e a formação política dos cidadãos. “No recente referendo no Reino Unido, membros do Partido Trabalhista partilharam plataformas com Conservadores que apoiavam a permanência e vice-versa.” Já o referendo na Escócia — “o voto com maior participação na história do Reino Unido” — trouxe à política milhares de pessoas que há décadas tinham deixado de achar que o seu voto valia a pena. Em Glasgow, às sete da manhã, filas intermináveis de jovens esperavam para votar antes de irem para as aulas.

E é possível aproveitar o que os referendos têm de bom e evitar as suas armadilhas? “Os referendos precisam de garantir uma taxa mínima de participação é uma maioria absoluta. Nos parlamentos da maioria dos países é essa a condição para que sejam aprovadas mudanças na constituição ou em assuntos que afetem minorias presentes no país, por exemplo. A ideia de que um assunto suficientemente relevante para ser levado a votos possa passar sem nenhuma “rede” que assegure ou um mínimo de participação ou uma maioria absoluta é perigosa”, defende Alexandra Cirone.

No Reino Unido, 52% dos eleitores votaram para sair da UE e 48% pela permanência. Na Colômbia, 50.2% das pessoas rejeitaram o acordo de paz, mas 49.8% votaram pela sua implantação. Num universo de 13 milhões de votos, apenas 54 mil fizeram a diferença neste referendo.

“Referendos que resultem em números próximos dos 50% para cada lado, e às vezes com participação abaixo disso, são um barómetro muito pouco claro da opinião pública, e um ainda pior indicador de que a medida aprovada seja de facto a melhor para o país em causa”. Não há pacificação possível, porque o campo que perde sente, legitimamente, que ainda há espaço para luta. E, aí, recomeçam os problemas com que se pretendia acabar.

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