Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio
A primeira coisa que se ouve é o barulho das pás a enterrarem-se na areia. No edifício da academia militar, em Lviv, os soldados estão a preparar-se para erguer barricadas, enchendo sacos e pneus de areia. A toda a volta do edifício há homens. Chegaram a este local, entretanto tornado centro de alistamento, para se oferecerem para serem enviados para a frente de batalha. Nem todos, porém, podem dar o nome. Com um microfone e sistema de som improvisado, um militar está à porta a anunciar que ali só são aceites os homens que já tiveram experiência militar, no terreno ou na recruta. Todos os outros devem dirigir-se a um ponto das Unidades de Defesa Territorial, os organismos criados para dar treino básico aos civis que queiram ajudar no esforço de defesa do país.
Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” com Cátia Bruno.
Um rapaz de 18 anos, ainda quase sem barba, aproxima-se do militar em questão. “Venho para me inscrever para ir para Kiev lutar”, diz com firmeza, de maxilar cerrado. “Rapaz, tu não tens formação militar, ias prejudicar-nos mais do que ajudar. Vai a um dos centros de defesa civil, estou a dar a morada”, responde-lhe. Ele não se conforma e não arreda pé dali. Continua firmemente à espera, de capuz na cabeça e ténis da Nike nos pés. Ao Observador, explica que tomou a decisão de se alistar no dia em que começou a invasão: “Acordei e ouvi aviões a sobrevoarem Lviv. Pensei ‘Começou’. Já há muito que tinha pensado em ir para o exército, mas foi nesse momento que percebi que tinha de ir já ajudar a proteger o meu país.”
Não quer ser identificado nem aceita que lhe tirem fotografias, por causa “dos fakes e da desinformação russa que está a circular”. Apesar disso, aceita conversar. Explica que os pais estão contra a sua decisão, mas que vai fazer tudo por tudo para ir lutar para as ruas de Kiev e ajudar a expulsar os soldados russos da capital. “Vou juntar-me às forças de defesa civis, mas acho que não me vão chamar porque sou muito novo. Portanto estou a pensar seriamente pegar num carro e viajar até Kiev. Vim porque quero mesmo tomar uma ação”, afirma. Os pais estão contra a ideia e ele está a considerar fazê-lo às escondidas deles. “Não aceito viver sob a bandeira russa, não quero ter nada a ver com eles”, declara.
Sociedade civil mobiliza-se: das discussões de Ciência Política à busca por uma impressora 3D
Em Lviv, onde as sirenes tocam mas ainda se ouviram muito poucas explosões reais, os jovens respiram patriotismo. As imagens de Volodymyr Zelensky junto das milícias populares, em Kiev, inspiram-nos a querer tomar uma ação e o discurso nesta cidade, afastada geográfica e historicamente da Rússia, é neste momento de um idealismo cerrado. Nas ruas encontram-se soldados a preparar uma recruta improvisada com civis. Objetivo: permanecer em sentido debaixo de um forte nevão, para aprender a aguentar condições duras e a obedecer a ordens.
A realidade, porém, é menos cor-de-rosa. À porta de um centro onde se recolhem donativos para o exército e para os refugiados, uma senhora aborda a equipa de reportagem do Observador. Levanta o smartphone, onde se pode ver a foto de um homem de meia-idade, fardado. “É o meu marido, acabou de chegar a Kiev”, explica. Não consegue evitar chorar e pede desculpa por isso. É professora, o marido engenheiro numa fábrica. Ele já esteve na guerra em Donbass, de 2014 a 2017, na 83ª Brigada. Ali, sofreu uma concussão e perdeu parte da audição do ouvido esquerdo. A mulher angustia-se com o que possa acontecer agora. “Ele tinha voltado para casa e agora vai outra vez… É inválido, não devia ir”, lamenta-se.
Contudo, testemunhos como este não beliscam minimamente a vontade dos mais novos de partir para a batalha, se os deixassem. Markiian Kobilitskii, de 20 anos, é um dos jovens que está como voluntário num dos centros para receber medicamentos, comida e material que pessoas como esta mulher deixam ali, gerido pela ONG Ukranian Leadership Academy, em parceria com as autoridades locais. Também ele se ofereceu para o exército e para as unidades civis, mas foi-lhe dito que já havia muitos voluntários e que seria mais útil como voluntário noutras áreas.
Markiian não se importa, quer é ajudar de alguma forma. “Os russos acham que estão a lutar contra o exército ucraniano, mas estão a lutar contra toda a sociedade. É algo muito poderoso”, conta ao Observador este estudante de Ciência Política, que recorda o passado de resistência da cidade de Lviv. Tem amigos que estão a ir para Kiev, onde vão lutar como soldados. Outros, como ele, fazem o que podem noutras áreas. Dizem não conhecer ninguém que não esteja de alguma forma envolvido nesta reação popular.
Outro dos voluntários, Fedor Petrov, está a estudar em Munique, mas regressou na semana passada, antes de a ofensiva começar. A sua experiência na Alemanha fá-lo ter a certeza de que, a partir do Ocidente, não é possível compreender a onda de mobilização e patriotismo que se está a viver na Ucrânia. “Quando uma guerra começa, tudo muda rapidamente, o mundo fica virado ao contrário. Tomam-se decisões diferentes”, explica. “Há 3 meses tive uma aula de Teoria Política em Munique onde o professor perguntou, numa questão hipotética, ‘Quem daqui estaria disponível para dar a vida pelo seu país?’. E ninguém pôs a mão no ar. Enquanto que agora, aqui, tenho dois colegas que já estão nas unidades de defesa.”
O trabalho para estes dois voluntários, porém, não pára. O saco do McDonald’s que têm ali para o almoço (alguns restaurantes estão a fazer refeições especialmente para apoiar estas equipas) vai ter de esperar, porque entretanto chega mais gente que viu a lista oficial de medicamentos necessários e veio trazê-los. São Zlata Boisiuk e Vasili Dmetruk, um casal jovem que tem passado todo o dia a fazer piscinas para ir buscar o que é mais necessário. “É preciso ajudar com o que for preciso. Slava Ukraina! [Glória à Ucrânia]”, diz Zlata ao Observador.
Estão ambos motivados e com esperança na resistência dos ucranianos: Vasili diz que a capacidade do exército ucraniano o tem surpreendido e que é “um milagre”. E aproveita o contacto com um jornal estrangeiro para fazer um apelo internacional, pegando no telemóvel para mostrar a fotografia de uns aparelhos de plástico pretos, que servem para estancar hemorragias. “Estamos a tentar arranjar este material, mas não temos conseguido encontrá-lo”, explica. “Podemos fazer cópias através de uma impressora 3D, mas não temos nenhum que possa servir de modelo de base. Se alguém em Portugal quiser ajudar…”, acrescenta a namorada.
Populares transformam cerveja em cocktails molotov, enquanto soldados seguem para a frente de batalha
Enquanto uns procuram medicamentos e impressoras 3D, outros usam formas mais originais para ajudar. A três quilómetros dali, nos arredores da cidade, a fábrica cervejeira Pravda produz outro tipo de apoio. O jovem Nazar é um dos seus funcionários, que passou os últimos três dias sempre a cumprir a mesma tarefa rotineira: encher garrafas de cerveja vazias com combustível usado; colocar no gargalo uma tira de pano branco; dar um nó no pano. Assim se faz um cocktail molotov.
A Pravda está a produzi-los para virem a servir de armamento improvisado para as forças de defesa civis. Nazar acha uma excelente ideia, “porque são o tipo de arma que eu posso vir a utilizar, por exemplo”. Há três dias quase sem ir à cama — “só paramos quando as sirenes tocam e temos de nos abrigar” —, Nazar e a restante equipa estão hiper mobilizados para contribuir para a “Resistência”. “Estou à espera para quando os russos chegarem. Vou resistir”, garante, já que, como a maioria dos ucranianos de Lviv, não está com grande fé nas negociações e não exclui a possibilidade de também a sua cidade vir a ser atacada.
O diretor de produção da Pravda, Igor Chertov, explica ao Observador como aqui a ideia de resistência popular adquire um novo significado: “Lviv é um lugar especial na Ucrânia. Cada ucraniano tem este sentimento cá dentro, mas quando se chega a Lviv estes sentimentos vêm todos cá para fora. Queres fazer qualquer coisa pelo teu país, vês estas pessoas orgulhosas de serem ucranianas e isso deixa-te orgulhoso também”, confirma. “Agora, este sentimento explodiu.”
Na manhã do dia 24, horas depois de Vladimir Putin ter anunciado a “operação especial” contra a Ucrânia, Igor acordou com um telefonema do pai. “Olá, filho. A guerra no nosso país começou”, ouviu do outro lado. Quinze minutos depois, estava em contacto com os seus colegas cervejeiros a pensar no que podiam fazer para contribuir. “Pensámos: ‘O que é que sabemos fazer bem?’ Bom, o que fazemos bem é cerveja. E o que é a cerveja? É um líquido engarrafado. Portanto tivemos a ideia de que podíamos fazer cocktails molotov”, explica, com naturalidade. Se inicialmente começaram a produção com o seu próprio dinheiro, a Pravda já conta com fundos de amigos, familiares e desconhecidos que souberam do que estavam a fazer pelo Facebook. A produção é 100% manual por enquanto, mas, com este investimento, Igor estima que em 5 dias podem estar a produzir mais do dobro dos cocktails molotov que fazem agora por hora. Pelo meio, Igor garantiu que a mulher e o filho de ano e meio iam para a Polónia e ficavam a salvo. “No minuto em que eles atravessaram a fronteira, ufff!”, diz, soltando um longo suspiro. “Agora já posso fazer o meu trabalho”.
Alexei Lukianenko queria sentir o mesmo, mas a mulher recusou a proposta de partir. “Tentei ter uma conversa razoável com a minha mulher, mas ela rispidamente respondeu-me que não”, conta, rindo-se, ao Observador. Também ele conhece o caminho e as filas de mais de 60 quilómetros que se formam agora para atravessar a fronteira para a Polónia, mas em sentido contrário. Este funcionário de uma empresa de alimentação de animais de estimação trabalha habitualmente do outro lado da fronteira, mas, quando a guerra começou, decidiu regressar.
O que viu pelo caminho, conta, deixou-lhe “sentimentos contraditórios”. “Por exemplo, nos carros estavam sobretudo mulheres e crianças, mas fiquei surpreendido por ver carros caros, com matrículas de Kiev, cheios de homens, a tentarem sair ao mesmo tempo que eu tentava entrar. E que a minha mulher e os meus dois filhos estão em Lviv”, diz, referindo-se ao rapaz e a à rapariga de 6 e 5 anos que estão em casa com a mãe e o avô.
Para Alexei, a experiência militar que ganhou há 20 anos na recruta, tem de ser aplicada agora. É por isso que está aqui, no mesmo centro de alistamento onde aquele jovem de 18 anos tentava à força entrar. Este homem na casa dos 50 está sereno, mas não consegue evitar emocionar-se quando fala na quantidade de homens que ali estão, por oposição aos que viu fugir na fronteira: “Muitas pessoas estão a lutar para proteger o país. Mas o que é o país? O país é o seu povo, que vive aqui. Portanto para mim o mais importante é proteger as pessoas”.
Está pronto para ir para onde o enviarem, para onde “for útil”. Cozinhar, fazer trabalho administrativo, limpar armas ou disparar na linha da frente, qualquer tarefa será aceite por Alexei. Antevê que, apesar das negociações, a situação ainda se possa complicar mais e diz que “os tempos estão duros”. As imagens que chegam de Kiev, Kharkiv, Odessa e tantos outros pontos do país deixam-no cada vez mais convicto de que é preciso pegar em armas e resistir. Mas está calmo, controlado e confiante. Nem a perspetiva de enfrentar os mísseis russos ou o combate corpo a corpo o demovem, por agora. “É claro que tenho medo, qualquer pessoa normal sente medo nesta situação. Mas sei o que fazer com ele”, sentencia. “Aceito-o, dou-lhe um propósito. Transformo-o em mobilização.” Um simples especialista de marketing a falar como um verdadeiro militar. Dali a poucos minutos, receberá um papel carimbado com a sua guia de marcha para a frente de batalha.