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Está a chegar a noite mais importante do ano para o cinema americano. A noite em que a Academia de Artes e não sei quê se junta numa festa caríssima para entregar o prémio mais famoso do mundo: um boneco dourado, nu e com uma espada a tapar-lhe os genitais. Ou, se calhar, aquilo são os próprios genitais. Nesse caso, olhe, parabéns. Sim, senhor. Falo, claro, dos Óscares.
Para nos prepararmos para esta noite, e como acredito que ninguém que me leia esteja convidado para a cerimónia e logo não precise de conselhos de moda, deixo-vos a versão resumida e explicada ao povo e às crianças dos dez nomeados na categoria de Melhor Filme. De nada.
“Nightmare Alley”
Ou, como vocês dizem, “Beco das Almas Perdidas”
Mais uma fritaria, no bom sentido, de Guillermo del Toro. Desta vez, uma espécie de ultracongelados, ou seja, fritos já previamente fritos, posto que se trata de uma adaptação de outro filme com o mesmo nome, de 1947. A versão original foi um desastre de bilheteira, mas hoje é um filme de culto, que é uma coisa que acontece muito nas artes. O Van Gogh, por exemplo, vendeu apenas um único quadro enquanto era vivo, e foi ao irmão. Sic transit gloria artis. Fez bem o irmão do Van Gogh que ficou também com os outros quadros todos — quase mil — e de borla. É de génio, comprar por tuta e meia uma coisa que mais tarde vale milhões. Mas as pessoas não adivinham. Curiosamente, é esse o tema do filme, pessoas que não adivinham, mas fingem que adivinham. Trata da história de um médium, ou vidente, daqueles que andavam pelas feiras na América, a fazer lá os seus números. Uma espécie de Bruxo de Fafe, mas em 1939. Ou de Linda Reis, aquela senhora que cuspia monelhos de cavelos na televisão e que achava que era, à vez, Nossa Senhora de Fátima e a Princesa Diana. Mas nem o Bruxo de Fafe é o Bradley Cooper nem a Linda Reis é a Cate Blanchett, os protagonistas do filme. Fica já aqui prometido que não vou contar o fim, mas posso avançar que o filme, de facto, acaba.
“Dune”
Ou, como vocês dizem, “Duna”
O mundo divide-se em dois grandes grupos: as pessoas que adoram ficção-científica e as pessoas que, aos quarenta anos, já não vivem em casa dos pais. Como pertenço ao segundo, por natureza, achei o filme uma estopada. Aliás, o trailer. O filme, vejam vocês, que para estas coisas não me convidem. Nada contra, até tenho amigos que veem. E eu próprio, levo muito em gosto a primeira parte desta história, o filme de 1984 do David Lynch. Poderia escrever que gosto de tudo o que o David Lynch faz, mas precisaria primeiro de ir jantar um dia lá a casa para provar a sua salada de atum. Nunca conhecemos verdadeiramente uma pessoa sem lhe ter provado a salada de atum, salvo seja. Come-a quente ou fria? Quanta mayonnaise lhe deita para cima? E de que tipo? Caseira? Industrial? Tempera-a com fio de azeite? Usa apenas batata? E batata nova ou velha? E o atum? Nada diz mais sobre a nossa personalidade do que aquilo que somos capazes de levar à boca à guisa de atum. 95% das marcas de atum são lixo. E depois há uns lombos que estão para o peixe enlatado como o Patek Philippe está para os relógios, ou a Rolls Royce para os carros, ou o Mandarim para os pudins flãs na categoria de até 15 cêntimos. Ambas as películas são adaptadas de um livro de 1965. A mais recente, esta, é realizada pelo Denis Villeneuve, um tipo do Canadá, como a Celine Dion ou o Justin Bieber. A coisa, portanto, promete. Parece que a história anda à volta de uma duna. Podia ser sobre um fim de tarde de um dia de verão, amigos partilhando um parpalho, rindo, e vendo o pôr-do-sol, mas acho que é sobre bichos e naves.
“Duna”: a nova adaptação do clássico de Frank Herbert oscila entre o torpor e a espectacularidade
“Belfast”
Ou, como vocês dizem, “Belfast”
Este filme passa-se, imaginem, na Irlanda do Norte. Vem na linha de uma longa tradição do cinema. Já “Férias em Roma” (1953) se passava em Roma, “O Último Tango em Paris” (1979) se passava em Paris, “África Minha” (1985) se passava em África e “A Canção de Lisboa” (1933) se passava em Lisboa. “Belfast” é realizado por Kenneth Branagh, famoso pelas suas muitas adaptações de Shakespeare e por algumas de Agatha Christie. Desta vez, adapta a sua própria história, quando era um rapazinho a crescer no meio dos The Troubles, em português As Chatices, a castanhada entre os ingleses e os irlandeses em 1969. É protagonizado por Caitríona Balfe, Judi Dench e, quando um filme é protagonizado pela Judi Dench, a partir daí o elenco é sempre a descer. Tal como o anterior, este filme também acaba, não digo é como. Mas ganham os ingleses.
“Belfast”: a vitória de Kenneth Branagh entre a infância e uma cidade em luta fratricida
“The Power of the Dog”
Ou, como vocês dizem, “O Poder do Cão”
Temos aqui um western que não é um bem um western, e graças a Deus. Também não adoro westerns. Ainda antes de ver o filme, dei conta de que as pessoas que sabem que a maior parte das pessoas não gosta de westerns se apressa a dizer que o filme não é um western, apenas parece um western. E, por acaso, parece imenso. Realizado pela neozelandesa Jane Campion, é outra adaptação de um livro, no caso um livro qualquer dos anos sessenta. A história não é particularmente original: temos mais dois cowboys que gostam de se esfregar um no outro. Creio até que isto já é uma categoria no PornHub. Mas o que é que não é? Até já os desenhos animados japoneses são uma categoria no PornHub. Bom, pelo menos é de borla. O Benedict Cumberbatch e a Kirsten Dunst estão muito bem. No filme e na vida. Não vou contar como acaba, até porque não vi todo. Tal como os do PornHub, ninguém vê estes filmes até ao fim.
Com “O Poder do Cão”, Jane Campion tem algo importante para nos dizer: todos os cowboys têm segredos
“King Richard”
Ou, como vocês dizem, “Para Além do Jogo”
Como qualquer prémio que se preze, também os Óscares este ano têm uma categoria de Desporto, com este filme dirigido por Reinaldo Marcus Green. É uma biografia sobre a vida e obra de Richard Williams, pai e treinador das tenistas Venus e Serena Williams, que, aliás, pagaram esta brincadeira toda, que não deve ter sido barata. Se calhar, foi o presente de anos do pai. Nada mau. Bem melhor que uma garrafa de whisky de três anos. Ou uma gravata de polyester. Ou um aparelho auditivo. Ou qualquer outra das porcarias que os pais costumam receber dos filhos quando já estão mais entrados na idade. O ser humano é muito ingrato. Mais uma prova de que Venus e Serena não são seres humanos vulgares. Quem também não é um ser humano vulgar é o protagonista, Will Smith, o que é sempre fixe. Os filmes com o Will Smith são como os do Woody Allen: são sempre bons, mesmo quando são uma merda. Como é uma biografia e o senhor ainda está vivo, pode dizer-se que o filme ainda não acabou. Por isso, aqui não há spoilers.
“King Richard”. A história de Venus, Serena e o pai que acreditou nas irmãs Williams campeãs
“Don’t Look Up”
Ou, como vocês dizem, “Não Olhem Para Cima”
Aqui está o filme sensação do ano passado. O filme que toda a gente viu, mesmo as pessoas que dizem que não viram para não parecer que só veem as coisas que anda toda a gente a ver. É como a “Macarena” nos anos 90, que ninguém gostava mas toda a gente sabia a letra de cor. Quem realizou foi o Adam McKay, e tem uma pilha de estrelas: Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Timothée Chalamet, Ariana Grande, Cate Blanchett, e a Meryl Streep. Faço ideia da conta calada que foi pagar os cachets desta gente toda. E a quantidade de garrafas de Perrier para pôr naquelas roulottes, que isto é gente que já não está habituada a beber água da torneira. O filme é engraçado, ainda que bastante óbvio e, se não fosse por outra coisa, vale pela interpretação da Meryl Streep, que é como o bacalhau à Brás, mesmo quando é mau sempre é melhor do que morrer de fome preso numa barraca no meio da selva colombiana depois de se ser raptado pelas FARC. Já sabemos que a Meryl Streep sai de manhã de casa, vai à pastelaria, pede uma meia-de-leite e um jesuíta e todos — clientes e funcionários — batem palmas de pé. Pela maneira trágica como disse aquele “de” em “meia-de-leite” ou pela maneira sexy sem ser vulgar como revirou ligeiramente os olhos quando pediu o jesuíta. Há gente que já nasce assim. Só que há é pouca. Quanto ao filme, é uma possibilidade de apocalipse diferente daquelas a que estamos habituados. Mais rápida e mais eficaz e sem precisarmos de deixar de usar palhinhas. Mas, na verdade, é uma paródia ao Trump e às pessoas que acham que a terra é plana. Aqui tenho mesmo de fazer um spoiler: a Terra não é plana. Acho eu. Sei lá. Não sou médico.
“Não Olhem para Cima”: uma sátira política e apocalíptica frouxa e mal-ajeitada
“ドライブ·マイ·カ”
Ou, como vocês dizem, “Conduz o Meu Carro”
Realiza o japonês Ryusuke Hamaguchi e é baseado num conto de Haruki Murakami, do seu livro Homens sem Mulheres. Não se trata de mais uma história de cowboys, mas sim de histórias de homens que, por uma razão ou outra, perderam as mulheres, a maior parte das vezes por uma questão de cornos. Não é o caso deste conto, em que a personagem principal, interpretada por Hidetoshi Nishijima, faz a tal viagem de carro do título do filme — num Saab 900 Turbo — depois da morte da mulher. Coitado. Não é spoiler dizer que a mulher já morreu, porque é a premissa do filme. Spoiler seria contar que ele foi, em certa medida, responsável pela morte dela. Por isso, não conto.
“Drive My Car”: do Japão com sofrimento, teatro, tabaco e um velho Saab vermelho
“Licorice Pizza”
Ou, como vocês dizem, “Licorice Pizza”
É uma comédia muito dramática ou um drama muito cómico realizado por Paul Thomas Anderson, e conta a história de miúdos a crescer, um género a que se chama “coming-of-age”. Mas é, sobretudo, um filme sobre a América dos anos 70, sobre o que é ser americano e sobre as duas coisas juntas. A maior parte das personagens é baseada em pessoas reais. Quer dizer, em geral e neste filme também. Os protagonistas são Alana Haim e Cooper Hoffman, que se estreiam no cinema ao lado de gente famosa como o Sean Penn, o Tom Waits, o Bradley Cooper, e até o pai do Leo DiCaprio, que fazem papéis mais pequenos mas que devem ganhar cem vezes mais. Olha, é a vida.
“West Side Story”
Ou, como vocês dizem, “West Side Story”
Que temos aqui? Não é preciso ser um génio para perceber que é a adaptação do clássico musical da Broadway de 1957, com música do Leonard Bernstein e letras do Stephen Sondheim. É o segundo filme que se faz desta produção, o primeiro, de 1961 e realizado pelo Robert Wise, ganhou no ano a seguir o Óscar de Melhor Filme. A ver se esta versão, de Steven Spielberg, repete a gracinha. Tal com o musical original, é uma adaptação moderna de Romeu e Julieta, passada em Manhattan e que explora tensões raciais. Com tanta coisa boa para explorar, credo. Para já, o filme foi sobretudo um sorvedouro de dinheiro. Dos 100 milhões de dólares que custou a fazer ainda só rendeu 75 milhões. Não é de estranhar. Com tanta pornografia de borla na internet, quem é que vai ao cinema ver o “West Side Story”? Eu seguramente não. Numa nota mais poética, o filme estreou na América três dias depois da morte do genial Sondheim. Para quem ainda não viu, vou contar o fim. E não me lixem, a história é de um musical de 1957 e baseada numa peça de 1597. O protagonista Tony (nesta versão interpretado por Ansel Elgort) leva um tiro nos cornos e morre. A sua amada Maria (aqui Rachel Zegler) fica tristíssima. Fim.
“CODA”
Ou, como vocês dizem, “No Ritmo do Coração”
Para fechar a lista, outro coming-of-age e outra comédia muito dramática ou um drama muito cómico, da realizadora Sian Heder. E é mais uma versão, desta vez de um filme francês de 2014, La Famille Bélier. Parece que estão a precisar de ideias novas em Hollywood. Se calhar, vou ter de me chegar à frente e mostrar a alguém o meu guião para um filme em que um jornalista português dos anos 30 tenta desesperadamente provar que Salazar é um extraterrestre disfarçado de beirão. É verdade que os produtores de Hollywood não fazem ideia do que é Portugal, a Beira ou o Salazar, mas por outro lado, estão bastante na moda os filmes sobre estes países mais pitorescos. A ver se pega. Enquanto isso, gramem lá com este filme, protagonizado por Emilia Jones a fazer de uma rapariga que cresce com ambos os pais surdos (CODA significa “child of deaf adults”). Não vou contar o filme, por isso, quem quiser saber se a infância da miúda foi gira ou uma chatice, tem mesmo de ver. Estou a brincar. Não conto porque não sei, não vi.
“CODA”: sem alarmes e sem surpresas, uma boa história com princípio, meio e fim
Já que estamos a falar de filmes, termino com a minha frase preferida do cinema, que João César Monteiro pôs na boca do Criador no seu “As Bodas de Deus”:
“Quando eu subi aos céus
Disse para todos os mortais
@€£‰-se vocês agora
Que a mim já não me@€£# mais”