A questão mais interessante em “O Poder do Cão” é que tudo o que tem de melhor é o que não se vê, o que está não estando. Não está lá Bronco Henry, que foi outrora dono do rancho, amigo e figura tutelar de Phil. Não está lá o falecido marido de Rose e pai de Peter que dizem que se matou. Não está lá o calor familiar do passado entre os irmãos Burbank, agora somente uma recordação. Não está lá sequer um cão. Não há cão algum. E mal se vê sequer a figura do cão que alguns dizem vislumbrar na forma das montanhas diante. O que há é a orfandade de Phil, a solidão de George, a viuvez de Rose, a inquietude de Peter – o vazio, o nada, o que não acontece. Tudo o que um tipo poderia querer de um filme para estrear a TV 4K nova.
Faça-se justiça a Jane Campion, a parcimoniosa realizadora de “O Poder do Cão”, somente a terceira longa-metragem em 20 anos, oitava no total da cinematografia da diretora que nos deu “O Piano”, corria o longínquo ano de 1993: é ser orgulhosamente contra-corrente. Num tempo viciado em estimulação visual, em que tudo é feito para garantir que se arrepanha cada pixel dos ecrãs, ela escolhe o gesto mínimo, o simbolismo, o luxo extravagante de não se querer meter pelos olhos dentro do espectador.
[o trailer de “O Poder do Cão”:]
Valha-nos, a nós que comprámos mesmo uma TV nova – agora que tantos filmes estreiam diretamente naquela que foi, em tempos, conhecida como “caixinha mágica” e que é hoje mais um totem, um grande monólito negro saído de “2001” para a nossa sala – valha-nos, dizíamos, a grandeza da paisagem. A paisagem do Montana, que, na verdade, é a Nova Zelândia natal de Campion, porque isto, ultimamente, o western, que era esse género cinematográfico para machos ocidentais, anda mesmo a ser explorado é por mulheres do outro lado do mundo.
O ano é 1925. Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) é o macho-alfa que governa um rancho que possui com o irmão visivelmente mais polido e menos confiante, George (Jesse Plemons). O acontecimento que põe em marcha a história é o casamento súbito e em segredo de George com Rose (Kirsten Dunst), a pobre viúva dona de um restaurante de beira de estrada, que agora vai viver para o rancho com o filho Peter (Kodi Smit-McPhee) e tentar ser parte de uma família cuja cabeça (Phil) não a aceita.
Com efeito, parece não haver a menor química entre George e Rose – o que é tão mais curioso quanto os atores, Plemons e Dunst, serem, na vida real, marido e mulher – mas outras forças mais profundas, telúricas, trabalham num jogo que a tagline anuncia como “o que significa ser um homem”. Rose fica perturbada na presença de Phil, Phil despreza e, no entanto, interessa-se por Rose. Mas também se interessa por Peter, que por sua vez o teme e, no entanto, ao mesmo tempo deseja.
“Um homem”, diz Phil ainda nos primeiros passeios a cavalo, “faz-se de paciência e contra as probabilidades.” Mas quem é o homem, ali? Eke, que esfola animais, banha nu no rio e troça de todos – da gordura do irmão, do alegado golpismo de Rose, da feminilidade de Peter? Ou o educado e responsável George? Ou Peter, que sem pai e agora também sem uma mãe que se vai perdendo para o álcool, tem de fazer homem num meio que lhe é obviamente hostil? Ou os fantasmas do velho Bronco Henry ou do marido de Rose que, vai-se a ver, e não temos realmente a certeza de como e porque morreu, figuras parentais que ainda deixam a sua longa sombra sobre os vivos e que o Doutor Freud, certamente, explicaria? Mas mais importante ainda: quem é o cão? Aquele para cujo poder alerta o título e o salmo bíblico de que é extraído. Qual deles?
Adaptado de um romance de Thomas Savage, tensamente musicado por Jonny Greenwood, “O Poder do Cão” valeu a Jane Campion o prémio para melhor realização em Veneza, o de melhor filme no festival de San Sebastián e já uma série de outros reconhecimentos em certames internacionais e círculos de crítica. Ainda assim, entre nós, já nem passa pelas salas de cinema – chega direto ao computador e ao totem negro no meio da sala de estar. Se é isso tudo que já se tem dito dele? Achamos que não. Mas, ao fim destes quase dois anos de marasmo cinematográfico, é do melhor que se tem visto. Sobretudo no que não se vê.