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Movimento das Forcas Armadas (MFA) Press Conference
Movimento das Forcas Armadas (MFA) Press Conference
É o rosto do 25 de abril, mas depressa se afastou ideologicamente dos homens com quem fez a Revolução
Acabou condenado por terrorismo, num processo perdoado por uma amnistia assinada por Mário Soares
Otelo Saraiva de Carvalho morreu este domingo no Hospital das Forças Armadas aos 84 anos
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Sygma via Getty Images

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Otelo, da luta pela liberdade à prisão por terrorismo

Era a última testemunha a ser ouvida naquela sessão de julgamento, no Tribunal de Monsanto, em Lisboa, e pareceu-lhe que o coletivo de juízes já não estava muito atento ao que dizia. O coronel Rodrigo Sousa e Castro, que tinha sido porta voz do Conselho da Revolução, estava ali a pedido da defesa de Otelo Saraiva de Carvalho, um dos 73 arguidos acusados de terrorismo a serem julgados naquele ano de 1986. “Estive com ele em várias reuniões para preparar o 25 de Abril e ele sempre vincou que não podíamos provocar vítimas. Acho que ele era incapaz de matar alguém”, disse em tribunal na altura e recordou esta semana ao Observador, dias antes de se saber, este domingo, que Otelo Saraiva de Carvalho tinha morrido no Hospital Militar de Lisboa, aos 84 anos. “Mas não duvido de que possa ter sido um suporte moral”, acrescentou.

Otelo, que tinha sido o rosto da Revolução do 25 de Abril de 1974, acabaria condenado a 15 anos de prisão, num processo que andou anos às voltas nos tribunais superiores e que acabaria por ser alvo de uma amnistia polémica, anos depois.

Morreu Otelo Saraiva de Carvalho

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Aos 84 anos, Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho sofria de problemas cardíacos e o seu estado de saúde agravou-se nos últimos meses, depois de uma das suas mulheres morrer, Dina, mãe dos seus dois filhos.  Assumiu a bigamia já depois de sair em liberdade, após ter conhecido a segunda mulher na cadeia onde esteve em prisão preventiva por causa do processo das FP-25. Metade da semana estava com Dina e na outra metade com Filomena, a mulher por quem se apaixonou na prisão e que tinha já uma filha.

Nascido na Lourenço Marques de Moçambique, agora Maputo, a 31 de agosto de 1936, Otelo Saraiva de Carvalho era o filho do meio, com duas irmãs. O seu sonho era ser ator como o avô paterno, e chegou a fazer peças de teatro onde era sempre o ator principal. Gostava de estar sob os holofotes. Acabaria, porém, por seguir a carreira militar à semelhança do avô materno. Tinha 20 anos quando entrou na Escola do Exército, mas chegou a reprovar. Não lhe encontravam a verdadeira vocação militar. Assim que terminou o curso foi colocado em Vendas Novas, na Escola Prática de Artilharia, e fez uma viagem para Paris com Dina e duas amigas dela. Foi aí que começou a refletir sobre a libertação dos países africanos, segundo contou no livro de Paulo Moura que é a sua biografia, “Otelo – o Revolucionário”.

Movimento das Forcas Armadas (MFA) Press Conference Otelo Saraiva de Carvalho

Nascido na Lourenço Marques de Moçambique, agora Maputo, a 31 de agosto de 1936. Sonhava ser ator como o avô, acabou por seguir a vida militar

Sygma via Getty Images

“O meu sonho era mudar a sociedade portuguesa”

Em 1961, já como alferes do Exército e com a Guerra Colonial a começar, foi colocado em Angola, onde conheceu o tenente-coronel António Spínola, com quem se iria cruzar mais vezes ao longo dos anos seguintes. Em 1963 passou a contragosto pela Legião Portuguesa, que funcionou durante o Estado Novo, e dois anos depois regressou a outra missão em Luanda. A próxima comissão seria na Guiné, onde foi colocado em 1970. Foi trabalhar no Quartel General do Comando-Chefe como chefe da Secção de Radiodifusão e Imprensa e voltou a cruzar-se com Spínola, o general que comandava as Forças da Guiné. A mulher juntou-se a ele na Guiné com o primeiro filho de ambos ainda bebé e o segundo na barriga.

Na Guiné, Otelo organizou um congresso com os militares, num período em que começavam a acusar o cansaço da Guerra Colonial. Numa entrevista à Visão chegou a dizer que foi aqui que começou a pensar em derrubar a ditadura. Ele e Vasco Lourenço.

Em março de 1973, 400 oficiais assinavam um protesto contra o Congresso dos Combatentes do Ultramar que se iria a realizar nos primeiros dias de junho de 1973 no Porto. Consideravam o congresso fascista, por pretender perpetuar a guerra, e que não representava os militares, como explicou Vasco Lourenço, agora presidente da Associação 25 de Abril, num documentário feito pela RTP, “Os homens sem sono”.

Na altura começaram a fazer-se reuniões clandestinas. Vasco Lourenço procurou Ramalho Eanes para tentarem criar uma associação que pudesse representá-los. A 13 de julho de 1973, porém, a aprovação do decreto 353/73, que visava preencher o quadro permanente de oficiais, acabaria por gerar um movimento de contestação ainda maior, com vários militares a apresentarem por escrito várias reclamações. “Tudo reunido dava uma manifestação coletiva”, diz Otelo, no documentário da RTP, onde aparece ao lado de Vasco Lourenço e do major Alves, onde entre baforadas de cigarros e alguns copos de uísque recordam aqueles tempos. “Tudo isso gerou em nós uma oposição absoluta ao regime” e a guerra colonial serviu de “catalisador”, diz Alves. “Queríamos reconquistar a imagem das forças armadas”, explica por Otelo, já de cabelo grisalho. “Existia um divórcio real entre o povo e as forças armadas, que se mantinham burguesmente acomodadas”.

“O meu sonho era mudar a sociedade portuguesa”, proclamou.

D.R.

O movimento dos capitães nasce, então, numa reunião clandestina ocorrida em Évora onde aparecem 136 capitães e subalternos. A 5 de março de 1974 era aprovado o programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) em Cascais, movimento que substituía assim o, até então, denominado Movimento dos Capitães.

Otelo lembra que o documento gerou controvérsia, nem todos o assinaram. Assinaram 110 e estavam mais de 200, como revela a ata que ainda há desta reunião. Uma das suas características é que escrevia tudo — foi isso, aliás, que, anos mais tarde, levou à sua condenação no Tribunal de Monsanto.

Dias antes dessa reunião, o general Spínola tinha publicado o livro “Portugal e o futuro” onde já defendia a descolonização. O MFA acabaria colado ao general, uma vez que as ideias do seu programa tocavam em muitas do general. No documentário da RTP, os oficiais garantem que não, e que na reunião em Cascais a maioria até escolheu o general Costa Gomes como o chefe que deviam contactar e mostrar o seu programa. Spínola terá sido o segundo votado. Otelo acusa mesmo Spínola de se ter aproveitado desta reunião. Seria este o programa do MFA apresentado depois do 25 de abril.

Spínola e Costa Gomes acabariam exonerados por Marcello Caetano.

Coube a Otelo Saraiva De Carvalho liderar as operações militares que, a 25 de abril, derrubaram o regime, a partir de um posto de comando clandestino montado na Pontinha. Na Revolução dos Cravos, a ordem era para não abrir fogo sobre ninguém. E o agora coronel Rodrigo Sousa Castro lembra-se bem de que Otelo fazia questão de o frisar durante todas as reuniões preparatórias do golpe de Estado. À Visão, Otelo descreveu o momento de maior intensidade que viveu nesse dia: quando Salgueiro Maia está no Largo do Carmo e o general Spínola lhe telefona a perguntar se pode ir receber a rendição de Marcello Caetano, refugiado no quartel da GNR: “Representou a subordinação do Spínola ao MFA”.

Otelo com Mário Soares em 2014, nas comemorações dos 40 anos do 25 de Abril

EPA

O PREC e o período conturbado no COPCON

No Processo Revolucionário em Curso (PREC), o período que se seguiu à Revolução e só terminou com a aprovação da Constituição Portuguesa, em abril de 1976, o sucesso de Otelo fez com que fosse nomeado o comandante do recém criado Comando Operacional do Continente (COPCON) e da Região de Lisboa. Criado em julho de 1974 pelo Presidente António Spínola para fazer cumprir o programa do MFA, o COPCON reunia militares dos vários ramos das Forças Armadas e era composto por duas repartições: uma de Informação e outra de Operações.

Este foi um período conturbado, com grandes convulsões sociais e políticas, de confrontos entre militares e com o surgimento de vários movimentos de extrema-esquerda. Otelo contou em entrevista que, nessa altura, começaram a aparecer no COPCON vários problemas sociais, com trabalhadores a verem os seus patrões fugirem e a ficarem desempregados, por exemplo. Depois começaram a receber trabalhadores rurais descontentes com a reforma agrária. Chegavam todo o tipo de problemas.

À frente do COPCON, Otelo começa a tomar decisões controversas. “Devo ter cometido erros, mas agi mais de coração”, chegou a dizer numa entrevista em 2012 à RTP. Entre essas medidas polémicas estão os mandados de detenção em branco, sem intervenção do poder judicial, que Otelo assinava e que depois eram executados pelos seus subordinados, muitas vezes durante a noite sem que os visados soubessem sequer porque estavam a ser detidos.

Numa entrevista que deu e em resposta a se o COPCON estava preocupado com o avanço das forças contra-revolucionárias, que assaltavam, destruíam, incendiavam sedes de partidos de esquerda, do Partido Comunista, do MDP, de outros partidos de esquerda, Otelo diz uma frase que viria também a ficar célebre pela sua controvérsia: “Olhe, estamos, de facto, muito preocupados. Isto está a ter um crescendo muito grande, e oxalá que nós não tenhamos de meter no Campo Pequeno os contra-revolucionários antes que eles nos metam lá a nós”.

Ouça aqui o E o Resto é História sobre Otelo.

Quem foi Otelo Saraiva de Carvalho?

Os conflitos entre militares foram crescendo e, em agosto de 1975, um grupo de nove oficiais das Forças Armadas fez mesmo um documento que visava clarificar o que defendiam. Entre os nove subscritores estava Vasco Lourenço. Otelo não. Os oficiais defendem um projeto socialista e uma democracia pluralista, opondo-se às teorias mais revolucionárias.

Em setembro de 1975, militares do COPCON roubaram cerca de mil espingardas G3 de um Depósito de Material de Guerra em Loures para distribuir por unidades militares ligadas à extrema-esquerda, que depois deviam distribuir pelos partidos à esquerda do PS. Um dos responsáveis pelo desvio das armas acabou por assumir que estas tinham sido entregues ao Partido Revolucionário do Proletariado e às Brigadas Revolucionárias de Isabel do Carmo e Carlos Antunes. Dias depois, Otelo daria ordens para mais um desvio de armas, mas acabaria desautorizado. Começava a temer-se um confronto armado. Para Isabel do Carmo, o documento dos Nove era um golpe contra o processo revolucionário em curso.

Só a 25 de novembro de 1975 se poria um ponto final no PREC, com Otelo a ser preso por três meses. Mais tarde, no livro que escreveu para se defender do processo das FP25, assumiu que, depois do 25 de Abril, criou-se uma “situação de ambiguidade” só ultrapassada com o 25 de novembro, reconhecendo que extravasou os limites: “Extravasei largamente os limites a que a minha ação de comando militar devia ter-se circunscrito, guiado pela imperiosa necessidade de demonstrar concretamente ao povo que em nós tanto confiava que não eram vãs as esperanças de redenção que no MFA tinham depositado”.

Otelo, o candidato a Presidente

Quando saiu da prisão de Santarém, Otelo foi abordado por um grupo que reunia militantes de vários partidos de esquerda para se candidatar à Presidência. Seria apoiado pela União Democrática Popular (UDP), pelo Movimento de Esquerda Socialista (MES), pela Frente Socialista Popular (FSP) e pelo Partido Revolucionário Popular (PRP).

Depois de ter sido abordado por um grupo de militares nesse sentido, após a sua saída da prisão, Otelo candidatou-se à Presidência da República, em 1976
LUIS VASCONCELOS /LUSA
Os resultados acabariam por surpreender — e preocupar — algumas figuras, como Mário Soares. Ficou em segundo lugar, atrás de Eanes
MANUEL MOURA / LUSA
Em 1980 voltou a candidatar-se, mas os resultados ficaram longe do que esperava: teve apenas 1,4 % dos votos de 5 milhões de eleitores

Em 1976, Otelo candidatou-se à Presidência da República. Perdeu para Ramalho Eanes, mas foi o segundo candidato mais votado — o que preocupou Mário Soares e Sá Carneiro. Soares falava de um “resultado inesperado” que conferia a Otelo o direito de “continuar uma campanha de agitação”, contrária ao que o Governo agora pretendia para Portugal.

Otelo criou depois a Organização Unitária de Trabalhadores (OUT), uma associação política de onde iria nascer o partido político Força de Unidade Popular (FUP).

Em 1980, Otelo voltou a candidatar-se, com a promessa de dissolver a Assembleia da República, por não reconhecer os resultados eleitorais que tinham dado vitória à Aliança Democrática (AD). Mas os resultados ficaram longe do que esperava, com apenas 1,4 % dos votos de 5 milhões de eleitores, como nota Nuno Gonçalo Poças no livro “Preso por um Fio”. A 27 de maio de 1980, numa entrevista ao Expresso, reconheceu que nunca pensou vencer as eleições com as ideias que tinha. No ano da campanha eleitoral, em 1980, numa entrevista ao O Jornal, tinha dito que o seu compromisso era com as massas trabalhadoras e não com as orgânicos partidárias e que iria ver quem eram afinal os “otelistas”. Mas já não eram assim tantos. Aliás, Otelo também já não era o mesmo. Nos jornais lia-se que tinha deixado de ser um homem espontâneo, para apresentar agora um discurso mais estudado e uma postura de maior vedetismo e até alguma vaidade.

Foi precisamente no início de 80 que as FP-25 se apresentaram ao país, com o lançamento de petardos em várias zonas do país e a distribuição de manifestos que mostravam o seu apoio aos trabalhadores e a sua luta contra o capitalismo. O seu objetivo era desestabilizar o poder instituído, reivindicando vários assaltos à mão armada e ataques com alvos. Houve, pelo menos, 13 vítimas às mãos das FP- 25 — entre elas um bebé, empresários e o diretor-geral dos Serviços Prisionais, Gaspar Castelo-Branco.

As FP-25 e a liderança que nunca assumiu

Em 1983, Vasco Lourenço avisava Otelo para ter cuidado com as pessoas com quem andava a relacionar-se na organização que criara. O coronel Rodrigo Sousa Castro descreve-o como “ingénuo”. Diz que Otelo meteu-se com as pessoas erradas: “Eram autênticos bandos”.

Otelo foi um dos condenados no processo das FP-25

LUIS VASCONCELOS/LUSA

Quando a Polícia Judiciária começou a investigar os ataques das FP-25, interrogou um grupo de suspeitos de um assalto no Porto que disse fazer parte do grupo terrorista. Um deles, que acabaria depois por ser assassinado por elementos do grupo, disse à polícia que em algumas reuniões em que participara estava Otelo Saraiva De Carvalho. Em 1984, centenas de polícias saíram à rua para a Operação Orion com uma lista de 100 alvos na mão. Foram detidos cerca de 80. A polícia foi à casa de Otelo em Oeiras, mas não o deteve. O material que lhe apreendeu, porém, cruzado com os documentos apreendidos na sede do partido que criou, revelaria uma ligação do grupo terrorista ao partido. Era a fação ilegal, o braço armado que financiava a parte legal da organização.

Os cadernos de Otelo foram a prova fundamental do processo, mas o militar recusou sempre a ligação entre as duas organizações, admitindo, no entanto, poder haver elementos comuns às duas. Negou sempre saber dos crimes cometidos, mas o juiz de instrução que o prendeu nunca acreditou nessa tese. Nem depois o coletivo de juízes que o condenou no Tribunal do Monsanto.

O processo acabaria por andar anos em recurso, com Otelo já em liberdade. E uma lei da amnistia, negociada pelo socialista Almeida Santos — que chegou a visitar Otelo na cadeia —, acabaria por perdoar os crimes imputados a Otelo e aos co-arguidos acusados de organização terrorista. Já os crimes de sangue acabaram por ser atribuídos apenas a quem os confessou.

No livro “Acusação e Defesa em Monsanto”, que acabou de escrever a partir do Forte-Prisão de Caxias, já com mil dias de prisão preventiva e quando ainda era apenas acusado de liderar a organização terrorista FP-25, Otelo avançou sempre com a tese que manteve depois em entrevistas: foi vítima de uma cabala do PCP, que, à data, diz, dominava a magistratura. Procuradores e juízes do processo não têm dúvidas de que Otelo sabia o que os operacionais das FP-25 faziam e que beneficiava do fruto dos seus crimes.

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