“O futuro da nossa nação já não tem direção.”
A frase ia saindo do megafone de Anabela Alves enquanto a professora de matemática começava a percorrer os primeiros metros da manifestação, Avenida da Liberdade abaixo. De apito na mão e de camisola preta, com a imagem da personagem Mafalda desenhada, Anabela Alves comandava o grupo que chegou ao ponto de encontro para a marcha de protesto dos professores, a praça Marquês de Pombal, em Lisboa, ao início da tarde. Vieram do Seixal com uma lista de reivindicações em tudo semelhante à dos milhares de colegas de profissão que desfilavam lado a lado na avenida, em direção ao Terreiro do Paço. A manifestação dos professores tinha começado há menos de meia hora e aquele grupo já estava sincronizado nos cânticos — graças, sobretudo, ao ritmo do apito de Anabela Alves.
Sempre à frente da faixa gigante que as suas colegas levantavam, e que identificava a Escola António Augusto Louro, os gritos sobrepunham-se às conversas paralelas, que se iam cruzando. O objetivo era não deixar que o silêncio entrasse se instalasse naquela avenida e, por isso, os cânticos iam variando. Depois de palavras sobre futuro, nação e direção, ouvia-se “a luta continua, nas escolas e na rua”. A regra, essa, era sempre a mesma: frases curtas, com rima.
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“É assim que nós lutamos”, ia dizendo esta professora, ainda antes de chegar a meio da Avenida da Liberdade e enquanto tentava acompanhar os colegas que tinham vindo consigo. Havia pressa na descida, força na voz e, ao longo de toda a rua, muitos tambores e até um grupo dos caretos de Podence, de Macedo de Cavaleiros, quis apoiar os professores.
Nas últimas semanas, milhares de professores têm feito greve, têm saído à rua, e este sábado ficou a certeza de que estes profissionais não vão “desistir de lutar, também pelos auxiliares e pelos alunos”. E as contas da Fenprof — Federação Nacional dos Professores apontam para cerca de 150 mil pessoas a chegar ao Terreiro do Paço, ponto final daquela manifestação. Mas, além da precariedade e da falta de progressão na carreira, principais bandeiras de reivindicação dos professores, há um ponto que esta professora quer que não se esqueça: as condições em que trabalham os docentes. Foi esta a reivindicação que a levou ali, este sábado.
Na escola onde dá aulas, a humidade invadiu os tetos das salas, os professores têm de imprimir trabalhos em casa e há portas sem puxadores. “Este país não investe em condições dignas”, alerta a professora de matemática, que estava ali, à frente do grupo do Seixal, para lutar precisamente por uma melh0ria das condições das escolas. “Tenho uma sala que tem um buraco e dá para ver a sala de baixo”, conta. E há mais: “Instalaram aquecimento nas salas, mas não o podemos ligar, porque os quadros vão abaixo. Na semana passada, no primeiro andar de um dos pavilhões, o quadro estava sempre a ir abaixo. Os miúdos estão nas salas ao frio, porque não podemos ligar o aquecimento.”
Contratados com mais de 60 anos e “pagar para trabalhar”
Atrás da grande faixa da Escola António Augusto Louro, e seguindo as indicações de Anabela Alves, professores de outras escolas também tinham queixas a fazer. A do salário, associado à progressão na carreira, era a que mais se repetia. E Maria Adelaide é um exemplo disso: prestes a fazer 62 anos, esta professora de português, também do Seixal, leva para casa “1100 e uns trocados” e, em 40 anos de profissão, nunca conseguiu ficar nos quadros. “Por uma questão familiar, não andei muito com a casa às costas, mas paguei o preço, porque aos 60 anos ainda sou contratada.”
O caso de Maria Adelaide é a realidade de muitos professores e, na verdade, tem nome: chama-se norma travão e é a regra que obriga os professores a ter colocação em horário completo durante três anos consecutivos. O Ministério da Educação já anunciou mudanças nesta norma travão, deixando de ser obrigatório ter horário completo durante este período, de forma consecutiva, mas Maria Adelaide não acredita que as mudanças cheguem antes de sair da escola de vez. A idade da reforma está próxima.
“Já não estou a lutar pela carreira, porque já não tenho tempo para a minha carreira. Estou a lutar pela atualização de salários e por quem vier”, ia gritando, à medida que tentava acompanhar os colegas que aceleravam o passo a descer a Avenida.
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Mas há também, no meio dos milhares de professores que estiveram em Lisboa este sábado, quem seja contratado, como Maria Adelaide, e esteja a centenas de quilómetros de casa. Nestes casos, “os professores pagam para trabalhar”, explica Esmeralda, que é de Vila Real mas foi colocada na Damaia, nos arredores de Lisboa. O ordenado, fixado em menos de 1100 euros, não chega para pagar todas as despesas, que incluem o arrendamento de um quarto em Lisboa — numa casa que divide com uma professora do Porto e outra de Barcelos. “Todos os meses tenho de ir às minhas poupanças”, acrescenta.
“As quotas são mais um prego no caixão”
À medida que os professores iam chegando ao Rossio, uma espécie de meio caminho até ao Terreiro do Paço, tinham à sua espera uma carrinha da organização da manifestação (convocada pela Fenprof e que contou com a participação de uma dezena de organizações sindicais), de onde duas pessoas gritavam o nome das escolas ou dos sítios de onde vinham os manifestantes. Foi o que aconteceu quando um dos muitos grupos de Lisboa chegou ali: gritaram, bateram palmas e, lá no meio, Aida Gracioso levantava a bandeira dos Açores. “Sou dos Açores, mas tive de vir dar aulas para o continente e por cá fiquei.”
E a queixa repetia-se: não concorda com o sistema de quotas e de avaliação dos professores, que impede que muitos docentes não possam progredir na carreira. E até os alunos desta professora de história e de português já sabem em que consiste este sistema: “Vocês tiveram todos muito bom ou excelente num teste. E agora só pode passar para o 6º ano um aluno. E eles dizem: ‘professora, isso é injusto’. Pois, é injusto, mas é o que está a acontecer.”
Este sistema de quotas, que não permite a subida de escalão de todos os professores é, para alguns manifestantes, “mais um prego no caixão”, como descreveu Manuela Trigo, que levava consigo um caixão feito em papelão. “Nunca vamos chegar ao topo da carreira. Este caixão significa que o Governo está morto”, explicou, acrescentando que, se a tutela não ouvir estes gritos, o ensino terá também os dias contados.
Sindicatos de costas voltadas?
Os professores demoraram várias horas a percorrer o percurso definido para esta manifestação — entre o Marquês de Pombal e o Terreiro do Paço. E ainda não tinham chegado todos os professores quando Mário Nogueira, líder da Fenprof, começou a discursar. As palavras não são novas: “O que estamos a negociar no Ministério são os concursos de professores, o que queremos negociar no Ministério é o tempo de serviço da carreira docente, são as vagas e as quotas na carreira, é a aposentação, é o regime de monodocência, são os técnicos especializados que são professores e é a mobilidade por doença dos professores.”
Novidade foi mesmo o facto de o líder do S.TO.P, André Pestana, ter discursado ao mesmo tempo, também no Terreiro do Paço, em cima de uma carrinha de caixa aberta. Longe de Mário Nogueira, e apontando o dedo à estrutura sindical da Fenprof, André Pestana foi bem claro: “Não falámos ali, porque eles não quiseram. Eles é que não quiseram. Nós estávamos disponíveis. Mas mesmo assim viemos pela escola pública, viemos juntar forças. Não abandonámos. Assim se vê a diferença.”